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Invenção tira água do ar e transforma em potável

O contêiner pode ser instalado em qualquer lugar, como aqui em um campo de refugiados no Líbano. Guilherme Aquino

A pleno vapor, uma empresa extrai água do ar, aos pés dos Alpes. Coeficiente suíço num ciclo virtuoso da água, o líquido vital para o planeta é cada vez mais precioso. O sistema pode ser usado em muitas situações.

O contêiner jorra a água como se fosse um chafariz. Ele não está ligado a nenhuma fonte ou poço artesiano, mas a um gerador de energia elétrica. Na verdade, esta máquina suíça produz o precioso líquido a partir do nada, aparentemente. A matéria prima é invisível, gratuita e existe em abundância: trata-se do ar que se respira nos quatro cantos do planeta.  

A transformação física ocorre sem a ajuda de nenhuma química.  A magia atende pelo nome de condensação térmica do vapor d’água em suspensão, um princípio elementar. Depois se recolhem e purificam as gotas, aos milhares de metros cúbicos. O ciclo se encerra na distribuição da água tratada para quem precisa e, sendo o caso, na aplicação em diferentes campos, da indústria à agricultura, passando pelo setor da construção civil e da hotelaria.

Virtualmente, ela foi apresentada num dos dias mais quentes e úmidos do mês de agosto, no Pavilhão da SuíçaLink externo, na Expo de Milão, quando as filas dos bebedouros eram quilométricas. Uma condição atmosférica ideal para a fabricação da água pelo contêiner “mágico”.

Pena que ele não pôde ser transportado até ali, por razões burocráticas e logísticas. Ao final da apresentação audiovisual, fica a certeza de que a empresa SeasLink externo não descobriu a pólvora mas acelerou o processo do rastilho, não inventou a água quente mas criou uma nascente inesgotável, abriu uma mina de ouro azul, não nos ventres das montanhas alpinas mas nas entranhas tecnológicas de um contêiner localizado em qualquer parte do planeta, calotas polares a parte.

O equipamento reproduz uma etapa do ciclo da água através da refrigeração e do aquecimento. Ele aspira e lança o ar do meio ambiente numa superfície fria interna, depois de passar em filtros sofisticados como os de uma sala operatória. A diferença de temperatura, sempre abaixo a do ambiente externo, varia até chegar ao ponto de precipitação. E quando ali dentro chove, cho-ve.

É como se a máquina reproduzisse uma nuvem e a “espremesse” para tirar quase toda a água concentrada em forma de vapor. Assim, como se torce um pano encharcado dentro de um balde.

Depois ela passa por diferentes e patenteados filtros tecnológicos. Finalmente, estará pronta para ser servida ou usada, dentro de um reservatório especial- que inclui um “banho” de radiação ultravioleta de um micro biorreator, ainda equipado com sensores que controlam e mantém estáveis os parâmetros químicos de qualidade da água. Os dados são enviados em tempo real, à distância, via satélite para a empresa, na Suíça.

“Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, já anunciava o cientista francês Antoine Lavoiser (1743-1794).  As diferenças de temperatura provocam fenômenos interessantes e quase descontados, de tão normais. Comuns a todos são o sereno de noite, quando o teto dos carros se cobre de uma sutil película de água, as gotículas de orvalho sobre as plantas ao amanhecer. Para não citar a chuva propriamente dita, quando o céu se tinge de nuvens escuras, densas de água e descarrega um temporal sobre a terra ou o mar.

A geringonça suíça absorve o ar e recria as condições atmosféricas ideais para a extração da água. Ao final do processo, dependendo do uso, ela pode ser potável, destilada, ou mineral.

O clima ideal para o seu funcionamento ocorre quando a temperatura beira os 30 graus Celsius e a umidade relativa do ar é de 70%. Nesse ambiente, em 1 metro cúbico de ar flutuam 21,9 gramas de vapor d’ água e, deste total, 60%  vão virar água de beber dentro do contêiner, capaz de produzir 2.500 litros, por dia. Mas, dependendo do modelo, esta quantidade pode chegar aos 10 mil litros, ou mais.  A partir de condições extremas de temperatura e umidade, as soluções existem mas devem ser personalizadas.

“A máquina foi projetada para este padrão climático porque ele cobre a faixa onde estão os países com maiores problemas de falta de chuvas e necessidade de água, como as nações do norte da África, na América Central e parte da América do Sul”, revela para swissinfo.ch o engenheiro e diretor geral da Seas, Rinaldo Bravo. Não por acaso, dois contêineres já funcionam no México, e outros dois estão sendo negociados no Peru, onde o problema é a qualidade e a quantidade da água- muita ou pouca, depende da época do ano – numa fábrica de alimentos, na beira do rio Amazonas. “Mas mesmo a 25 graus e com a umidade de 50%, vamos até o sul da Itália com ótimos resultados”, diz Rinaldo Bravo que, recentemente esteve visitando o nordeste do Brasil, na região de Campina Grande, uma ampla zona árida do país e potencial novo cliente.

Protótipo e produto

O conceito em si é simples, mas a realização “artificial” é bastante complexa, principalmente se os fatores ecológicos e econômicos transpiram por todos os lados. Os pesquisadores começaram o projeto em 2010. O desafio era ir de encontro ao mercado – cada vez mais sedento de soluções para a questão hídrica mundial – com custos reduzidos e o máximo de eficiência.

Ele foi realizado pelo departamento de física da universidade de Pavia, na Itália.  “Numa fase bem inicial, queríamos compreender as potencialidades de uma máquina frigorífica para fazer água a partir do ar” diz para a swissinfo a professora Anna Magri.

“Os pesquisadores realizaram estudos preliminares de termodinâmica, física e condições climáticas. Mas o mais complicado foram as simulações e os cálculos para otimizar o produto ao máximo. O ideal é termos uma temperatura não muito alta, mas com elevada umidade. Acima dos 50 graus centígrados não convém e abaixo dos 5 ficamos muito perto do ponto de congelamento para extrair a água”, explica ela.  

Meia década e cinco milhões de francos depois o protótipo se transformou num produto. Quatro investidores, sendo dois italianos, um americano e um suíço decidiram abrir uma start-up no cantão do Ticino, para levar ao mercado uma fábrica de água, de grande potencial e neutra, até por definição geográfica.

O design, nas dimensões e na forma de um contêiner, foi pensado para deslocar o equipamento com facilidade, por qualquer meio de transporte e chegar rápido onde for necessário. E não faltam locais no planeta com escassez de água ou com água de má qualidade. Cerca de 85 % da população mundial sofre com esse problema.

“Vivemos três emergências no mundo: a de água, a de energia e a do meio ambiente. Temos que ter energia para conseguir água e precisamos de água para gerar energia. E ambas necessidades agridem o meio ambiente. O nosso objetivo é de obter a maior quantidade possível de água, da melhor qualidade, e usando menos energia possível. O efeito colateral do nosso processo é que produzimos também ar quente e frio e a sua aplicação gera redução do consumo energético”, afirma um dos donos da empresa, o suíço Marco Honegger, já de olho na futura integração completa do equipamento com as fontes renováveis de energia.

Economia e ecologia

E se a concorrência principal “cria” água potável, por exemplo, com os aparelhos de dessanilizar – que produz resíduos que alteram o equilíbrio do meio ambiente – a empresa suíça aposta na mobilidade, em zonas distantes do mar, e na fabricação e distribuição “in loco” do produto final, sem deixar vestígios quaisquer na natureza ao redor, além de equilibrar, em muitos casos, a quota de água pública destinada aos cidadãos e que deve considerar o abastecimento para a indústria e a agricultura.

Uma das aplicações possíveis dessa tecnologia é a irrigação. SEAS

A tecnologia empregada é horizontal. Isso significa que a integração do processo de conversão do ar em água é completa e autônoma, além de ser “verde”. “ Ou seja, temos eletrônica, termodinâmica, física e mecânica. Controlamos o ponto de chuva da máquina, estudamos bem o fluxo de ar ali dentro, monitoramos tudo à distância. Mas o salto de qualidade foi no conceito de não jogar nada fora”, diz para swissinfo.ch Rinaldo Bravo.

O calor e o frio do processo podem aquecer a água até 50 graus e esfriá-la até 7 graus, além de fornecer ar fresco, a uma temperatura de 24 graus e umidade de 40%. “O uso de tudo isso abate a zero o custo da água potável”,completa ele.

Em relação a outros sistemas semelhantes, o suíço conseguiu obter uma produção 35% superior, sem nenhum aumento do consumo de energia elétrica.  A cobaia principal do produto foi a cidade de Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, onde foram realizados importantes estudos, principalmente no campo da hotelaria e complexos residenciais.   “Podemos tranquilamente cuidar da produção de água e da climatização – do aquecimento e do resfriamento – de um hotel de 200 quartos”, explica o diretor Rinaldo Bravo.

A qualidade da água produzida foi tão acima do esperado que se abriu um leque de opções industriais, sem falar na irrigação para a agricultura. “Ela pode ser aplicada de várias maneiras, basta um pouco de criatividade: pode aumentar a eficiência de uma turbina a gás de metano, podemos regular a temperatura de ingresso do ar fresco e garantir uma maior produção de energia, e ainda ter água potável gratuita, por exemplo”, diz para swissinfo.ch Lucia Cattani, responsável pelo desenvolvimento de projetos da Seas.

A pesquisa continua, desta vez mais orientada aos setores farmacêutico e hospitalar, além da indústria petrolífera.

Oásis no deserto

Enquanto isso, no campo humano, um contêiner foi expedido como doação a uma organização não governamental europeia, a UnaKids.

Provavelmente, ela deverá ser instalada no Oriente Médio. “ Ela pode ser usada em todas as estações para matar a sede, para lavar, para aquecer e refrigerar uma tenda de plástico e que fica tão quente no verão. Não é uma caridade, mas é uma saída para o problema. Ela pode fazer a diferença entre a vida e a morte. Talvez, iremos levá-la para o Iraque, onde já temos uma escola e um hospital. Mas entre a máquina e os necessitados existem a burocracia e a política”, diz para swissinfo.ch. Angela Van Wrigth Von Berger, secretária geral da Ong, com sede no Principado de Mônaco.

 Ela sabe que os campos de refugiados proliferam por todos os lados. E neles falta de tudo, a começar pela água. A máquina de fazer água do ar, em tal contexto, é uma gota de humanidade num oceano de carestia, um oásis de esperança num deserto de expectativas. 

Saiba mais

O ar é formado por 21% de oxigênio, 78% de nitrogênio, 0,91 de gases nobres, 0,03 de Gás Carbônico. O resto é de vapor de água e de partículas sólidas, impurezas, em suspensão.

O vapor de água significa umidade.

 Ela é formada pela evaporação dos mares, rios, da transpiração das plantas, da respiração dos seres vivos, entre outros fatores menores.

Seas está para Société de L’eau Aérienne Suisse e a sede fica em Riva San Vitale, perto de Mendrisio.

A Seas, criada no começo de 2014, tem 14 funcionários, a maioria de engenheiros, mas deve chegar a 40, em breve.

A máquina está protegida por 4 patentes. E os equipamentos suíços respondem por 30 % do total do aparelho. O sistema foi batizado de Awa, “ air to water to air”.

Ela mede de 5,5 a 12 metros, depende do modelo. O peso de um contêiner equipado é de cerca de 6 toneladas.

O sistema inclui três módulos: unidade de tratamento do ar aspirado; unidade de refrigeração; instalações eletrônicas, elétricas e de tratamento da água.

Os filtros principais precisam ser trocados a cada seis meses de uso ou depois de uma produção de 200 mil litros.

Uma pessoa gasta, em média, 170 litros de água por dia, para lavar, limpar cozinhar, beber. Num hotel, este dado sobe para 250 litros.

As fontes hídricas no subsolo são muito mais vulneráveis às catástrofes ambientais, como a explosão do reator de Fukoshima, no Japão. Sete dias depois do acidente, o ar ao redor da usina já estava limpo. A terra contaminada vai levar muito mais tempo para se regenerar.

Em 2010, a demanda por água era de 4.500 quilômetros cúbicos e deve passar para 6.350, em 2030.

O preço da água subiu 70% somente nos últimos dez anos, no mercado internacional.

Em 2013, o mercado da água valia 117 bilhões de dólares e deve atingir 195, em 2030.

Até 2030, o planeta vai enfrentar um déficit de água da ordem de 40% (fonte Unesco)

Em 2025, a carência absoluta de água vai atingir 1,8 bilhões de pessoas, projeta a ONU.

 Fonte: Seas, departamento de pesquisa.

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