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Koyo Kouoh: A arte está nas rachaduras, não no brilho

O prêmio Meret OppenheimLink externo pegou Koyo Kouoh de surpresa, e não apenas porque ela não dá a mínima bola para prêmios. A curadora suíço-cameroniana diz que nunca encontrou muito eco na Suíça por seus interesses artísticos - pós-colonialismo, diáspora africana e políticas de identidade - pelos quais ela coleciona elogios em diversos outros países. 


Koyo Kouoh durante entrevista em Zurique
Koyo Kouoh durante sua conversa com a swissinfo.ch no célebre Platzspitz em Zurique, o parque que abrigava a cena das drogas nos anos 80 e 90. “Este lugar era uma ‘Bagdá’, mas eu costumava vir aqui muitas vezes com meu pai para pescar no rio”, conta ela. Carlo Pisani

Koyo Kouoh, descrita pelo The New York Times em 2015 como “uma das curadoras de arte mais proeminentes da África”, está sempre em movimento, mesmo no meio de uma pandemia. Ela vive atualmente na Cidade do Cabo, na África do Sul, onde dirige o Museu Zeitz de Arte Contemporânea da África (MOCAA), que abriga a maior coleção de arte contemporânea africana do mundo. 

SWI swissinfo.ch a encontrou durante uma breve escapada para a Suíça. Seu marido vive na Basileia, mas seu coração está em Zurique, diz ela, embora ela tenha corrido para Paris antes de tentar voar de volta à África do Sul (mas ela ainda está confinada na Suíça).

Nascida na cidade costeira de Douala, nos Camarões, Kouoh veio a Zurique em sua adolescência para se reunir com sua mãe. Ela prosseguiu seus estudos em finanças antes de mudar sua atenção para as artes.

SWI swissinfo.ch: Como foi a mudança de Camarões para a Suíça?    

Koyo Kouoh: Eu nasci em Douala, cidade costeira, onde a vibração, a atividade, o barulho da vida urbana eram muito fortes. Assim, chegando a Zurique, achei tudo muito tranqüilo, pequeno, limpo; tudo o que é característico da Suíça. Para mim foi uma viagem emocional, extremamente enriquecedora em termos de poder viver com minha mãe novamente, e aprender uma nova língua, o suíço-alemão, que eu sempre quis aprender. Camarões foi uma colônia alemã até a Primeira Guerra Mundial, e muitas palavras alemãs ainda estão presentes em nosso dialeto local.

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Koyo Kouo

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Zurique vista por Koyo

Este conteúdo foi publicado em Koyo Kouoh fala sobre a Suíça e sua formação na Zurique dos anos 80 e 90.

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SWI swissinfo.ch: Seu interesse pelas artes foi uma coisa que já fermentava em você, ou aconteceu por acaso?

K.K.: As pessoas têm muitos ‘tecidos’, e ou você tem um tecido para a criatividade, para as artes, ou não tem. Sou muito contra a ideia de que somente em certos contextos ou com uma certa educação ou formação você tem acesso ou exposição a idéias criativas ou artísticas. Eu vim de uma origem muito modesta; minha avó era costureira. Você não pode crescer na África sem ter acesso à criatividade. Dança, música, roupas são coisas naturais do dia-a-dia. Você não precisa de uma escolaridade específica, é apenas parte do estilo de vida.

Kouoh deixou a Suíça em 1996 para fundar a Raw Material CompanyLink externo, um centro de arte em Dakar, Senegal. Desde então, ela desenvolveu uma carreira mais focada na criação de instituições, tendo estabelecido várias iniciativas na África e Europa que desafiam o eurocentrismo do circuito global de arte, em vez de promover artistas individuais.

SWI swissinfo.ch: Em 2014 apresentou uma proposta para a bienal itinerante europeia Manifesta 11Link externo, que aconteceu em Zurique (2016). A proposta foi rejeitada, mas causou uma certa repercussão na cena artística local. Quais eram as principais questões que você queria abordar ali?

K.K.: Eu nunca me candidatei a nenhuma dessas bienais, mas neste caso o pedido veio deles. Na época eu estava justamente refletindo bastante sobre o circuito das bienais de arte, no espetáculo que ela produz e no marketing que ela gera para a cidade que a hospeda.

Apesar de minha proposta não ter tido sucesso, eu ainda a adoro, pois acho que ela coloca em evidência aspectos históricos que muito poucas pessoas conhecem sobre Zurique.

SWI swissinfo.ch: O que há para se saber sobre Zurique?

Trata-se de um lugar tão pequeno e tão carregado de cultura, tão carregado de riqueza. Eu realmente queria olhar para as fendas em vez do brilho. Teria sido algo que se infiltraria pela cidade, em vez de simplesmente a expor a belas paisagens.

Pensando nessa proposta, eu senti que Zurique não é um lugar que precisa de outra bienal de arte contemporânea, o que Zurique precisa é de um novo diálogo. E naquela época, a Suíça estava totalmente envolvida nas controvérsias sobre racismo, as polêmicas do Partido Popular Suíço [UDC/SVP, de direita] sobre a limitação da migração. E isso é algo continua.

Seria realmente bom relacionar Zurique e a Suíça às narrativas maiores do século 20: pós-colonialismo, pós-modernidade, migração, racismo, colonialismo em suas múltiplas formas.  

Home is where the art isLink externo (Meu lar é onde se encontra a arte), a mais recente exposição de Kouoh no MOCAA, resume sua posição como cidadã mundial, mas também é muito reveladora de sua prática como curadora. A exposição exibe mais de 1.600 obras de arte selecionadas através de um edital aberto a todos os cidadãos da Cidade do Cabo. Trabalhar de perto com a comunidade imediata em torno de uma instituição é vital para curadores como Kouoh que procuram converter o museu em um local vivo ao invés de um mero gabinete de objetos antigos e exóticos.

SWI swissinfo.ch: Após esta rejeição, foi uma surpresa saber que você havia ganho o PrêmioLink externo Meret Oppenheim Link externo?

K.K.: Uma surpresa total. Eu nunca trabalhei na Suíça como curadora ou produtora cultural, ou como expositora. Mudei-me da Suíça para o Senegal exatamente há 24 anos; toda minha trajetória profissional, minha formação profissional não se deram aqui.

Minha juventude sim, e eu aprecio muito esse tempo. Eu não sabia que o Departamento Federal de Cultura em Berna estava me olhando de alguma forma, pela simples razão de que os assuntos que me interessam, as idéias que busco em meu trabalho – diáspora africana, arte conceitual baseada em processos, pós-colonialismo, políticas de identidade – não são exatamente populares aqui. Eu não tive oportunidades de trabalhar neste país nestes campos, mas isso é ok para mim. Eu não considero a Suíça como um local potencial de trabalho.

SWI swissinfo.ch:  O que resta de seus laços suíços então?

K.K.: É uma coisa emocional. Eu amo o país, tenho um passaporte suíço, minha família está aqui, e foi há apenas três anos que, pela primeira vez, recebi um convite da Pro Helvetia para curar o Salon Suisse [para a Bienal de Veneza, um espaço paralelo à exposição do oficial Swiss PavilionLink externo]. Mas eu nunca penso realmente em prêmios. Eu faço o que preciso fazer.

Pessoas partilhando um fondue colorido em instalação presencial da artista Claudia Comte
“Há muitos artistas que eu prezo muito, mas há também arquitetos, cineastas, etc., porque eu realmente acho que a prática curatorial vai muito além de apenas fazer uma exposição. Fazer uma publicação para mim é curadoria, por exemplo, e estou cada vez mais interessada na culinária como uma prática artística. Acho que o artista primordial é um chef de cozinha”. (Na imagem: The Primary Fondue Party, de Claudia Comte, ‘performance relacional’ no Salon Suisse, curadoria de Koyo Kouoh para a Bienal de Veneza, 2017). Gunnar Meier. Courtesy Claudia Comte

SWI swissinfo.ch: Mas você pensa na figura de Meret Oppenheim, a artista?

K.K.: Claro! Quando comecei a me interessar por arte, o movimento surrealista era uma referência óbvia, o legado do Dadaismo estava muito presente, então, é claro, Meret Oppenheim era uma figura importante. Também porque ela era uma mulher numa época em que ter uma voz ou uma posição, especialmente entre todos aqueles supermachos surrealistas como André Breton, era uma grande conquista para uma mulher vinda de um país tão pequeno. Além disso, o feminismo para mim é minha primeira natureza. Estou muito envolvida na voz das mulheres, mas não faço muito barulho em torno disso. Eu não preciso carregar uma bandeira, a coisa vem naturalmente.

SWI swissinfo.ch: A Suíça tem uma estranha relação com o Modernismo. Embora Dada tenha começado em Zurique, o movimento ainda é muito timidamente ensinado nas escolas.

K.K.: Veja, nos anos 80, o espírito do Cabaré Voltaire foi reavivado de uma certa maneira. Mas temos que considerar que existe um nível tão elevado de especialização na cultura suíça, especialização em tudo. Vejam como a educação é estruturada na Suíça. As pessoas ficam presas em diferentes campos muito cedo, e não têm acesso ao conhecimento de outros campos. Diferentemente de lugares como Camarões ou Brasil, ou outras áreas pós-coloniais, onde tendemos a ter um conhecimento variado, um conhecimento generalista, onde se conhece e se aprende coisas diferentes. Aqui você sabe muito sobre apenas uma coisa, basicamente.

A Suíça também tem um grande complexo de inferioridade, em termos de tamanho, de autonomia. Não há uma verdadeira uniformidade no país. Falamos alemão, francês, italiano – não existe o “suíço” como tal. Tenho observado ao longo dos anos que é um país que gosta de ficar na calçada e fornecer o asfalto para pavimentar a rua – e ganhar dinheiro com isso. Você também vê isto nos estudos coloniais e a história colonial: a Suíça sempre afirmava “oh, nós éramos neutros, não éramos imperialistas, nós nunca participamos de nada disso”. É claro que participaram! Até hoje. Lembre-se de que os maiores mercados de matérias-primas estão em Zug, por exemplo.

SWI swissinfo.ch: Uma nova geração de historiadores suíços tem trabalhado nos últimos anos para abrir a lata do passado e do presente colonial da Suíça. Mas isso também ainda não chegou às escolas.

K.K.: Ainda vai demorar algum tempo para chegar às escolas. O bom e o ruim deste país é que tudo anda muito devagar. É ruim quando se está com pressa, mas isso vai acontecer. A lentidão tem suas vantagens, mas nos tempos que estamos vivendo agora, as coisas deveriam ser mais rápidas. Toda essa conversa tem que chegar até os lares. Porque há muitos suíços ainda vivendo estas mitologias sobre o país que não têm pé na história, e todas essas mitologias precisam ser desempacotadas. Isto não é para envergonhar de forma alguma o país. É realmente para dar uma imagem completa do país.

Harald Szeemann
Harald Szemann (1933 – 2005): para qualquer curador de minha geração, ele é uma figura primordial e tinha muito orgulho de ser suíço, como eu sou, mas não sou de forma alguma nacionalista. Eu realmente não me importo muito de onde as pessoas vêm. Keystone / Yoshiko Kusano
Not Vital em meio a uma de suas instalações artísticas
Not Vital tornou-se um grande amigo ao longo dos anos, e eu acho que ele é um artista totalmente subestimado. Embora ele seja bastante estabelecido e conhecido na Suíça, acho que ele merece muito mais estudo e compreensão de seu trabalho. (Na foto: Not Vital posa em sua instalação “700 Snowballs” (700 Bolas de neve), no museu de arte dos Grisões (Bündner Kunstmuseum) durante a exposição NOT VITAL. univers privat (Chur, Suíça, setembro de 2017). © Keystone / Ennio Leanza
Instalação de Ursula Biemann, curadoria de Koyo Kouoh
Desenvolvi uma relação profissional com a artista de Zurique Ursula Biemann não só porque sua prática é surpreendente, mas também porque sua biografia profissional é muito próxima à minha. (“Sahara Chronicle” (2007-2009) de Ursula Biemann, que trata da migração ilícita na bacia do Saara. O capítulo filmado no Senegal foi encomendado por Koyo Kouoh). Ursula Biemann

swissinfo.ch/ets

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