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Mia Couto: ‘Estou dentro de um filme. E não é um bom filme’

Mia Couto
"Tenho uma ideia idílica de uma Suíça que abraça a cultura africana" Iannis G./rea/laif

O escritor moçambicano Mia Couto, que venceu a última edição do prêmio literário suíço Jan Michalski, guarda da presença helvética em África uma memória positiva, de "respeito pela diferença". O autor está isolado na sua casa, em Maputo, desde que testou positivo para Covid-19

O ano não começou bem para Mia Couto. O escritor moçambicano testou positivo para a Covid-19 uma semana antes da entrevista à swissinfo.ch, concedida remotamente a partir da sua casa, em Maputo, na última terça-feira. O autor não apresentava dificuldades respiratórias ou outro sintoma severo, queixando-se apenas de dores no corpo, fadiga e medo. “Estou dentro de um filme. E não é um bom filme”, diz.

Nesta entrevista, Mia Couto (Beira, 1955) fala de um tema central na sua obra: a importância da língua. E recorda o papel central que os missionários suíços tiveram na preservação das línguas indígenas em Moçambique . Filho de imigrantes portugueses, Mia Couto integrou o movimento anti-colonial Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Após a independência, em 1975, Mia Couto trabalhou como jornalista durante 12 anos e, depois, retomou os estudos, tornando-se biólogo a tempo inteiro e escritor nas horas livres.

swissinfo.ch: Você recebeu em novembro de 2020 o prêmio Jan Michalski pela edição francesa da trilogia “As Areias do Imperador”(“Les Sables de l’empereur”, Métailié, 2020). Trata-se de um volume de 672 páginas traduzido por Elisabeth Monteiro Rodrigues. Qual foi a importância da tradução para a obtenção deste prêmio?

Mia Couto: Imagino que seja quase tão grande como a minha. Sou de uma linha de escritores que acha que, quando a escrita é transposta para outra língua, o tradutor é um outro autor. É um co-autor. Advogo que o nome do tradutor seja colocado na capa com o mesmo destaque que o do autor – ainda por cima no meu caso, que uso uma linguagem que é muito minha, moçambicana, feita em cima de neologismos, do sabor e da cultura local. Eu entrego a alma ao tradutor. E surpreendo-me quando os tradutores dizem “olha, eu fiz isto” e vejo que a solução é tão rica na língua de chegada como na língua de partida.

A tradutora Elisabeth Monteiro
Elisabeth Monteiro Rodrigues não só traduziu boa parte da obre de Mia Couto para o francês como também promoveu o escritor na Suíça – o prêmio Jan Michalski foi justamente resultado de seus esforços. Samuel Lietmann


swissinfo.ch: A Imani, a personagem feminina principal de “As Areias do Imperador”, é alguém que transita entre duas línguas. É uma intérprete, uma tradutora. Imani é oriunda das poucas tribos que se aliaram aos portugueses e, por isso, não adotaram o idioma dos invasores VaNguni, liderados por Ngungunyane (ou Gungunhane, como ficou conhecido pelos portugueses). A tradução confere poder à Imani?

M.C.: Num meio pequeno, como era a aldeia onde a personagem Imani vivia, essa capacidade de fazer esse comércio entre duas línguas lhe conferiu um poder estranho. Porque ela era uma jovem e mulher – estamos a falar [de uma narrativa que se passa] no final do século XIX, quando a condição da mulher era ainda muito mais grave do que hoje. Esse poder que Imani tinha nas mãos gerava algum incômodo, ela sentia que tinha duas vidas paralelas. Ela tinha esse poder do qual podia usufruir mas era objeto de desconfiança mesmo no seio da família.

Eu próprio concebo-me como um tradutor. Acho que eu estou traduzindo não apenas línguas mas culturas, mundividências, cosmogonias. Se pensarmos no território de Moçambique, veremos que há várias visões do mundo, religiosidades. E tudo isto tem de ser traduzido não só para a visibilidade do mundo moderno mas também da oralidade para a escrita. Há várias traduções, em várias dimensões. 

swissinfo.ch: Os seus livros estão traduzidos em 24 línguas e disponíveis em mais de 30 países. Qual foi a reação internacional à sua obra que mais lhe surpreendeu?

M.C.: A China foi uma surpresa enorme. Em Xangai e em Pequim, os editores publicaram logo cinco livros em uma assentada. Eu vi coisas de extraordinária qualidade. O modo como a obra é tratada, a qualidade do livro enquanto objeto, a excelência das livrarias. No lançamento, estavam 12 pessoas numa mesa: o autor, o tradutor, o editor, o agente literário e outras pessoas que participaram na edição. O designer que faz a capa também tem direito de falar e explicar as suas opções. E as pessoas que apresentaram o livro, no meu caso sempre mulheres, eram profundas conhecedoras da obra e tinham conseguido captar coisas que muitas vezes me escapava.

swissinfo.ch: A pandemia impediu que houvesse uma cerimônia de entrega do prêmio na Fundação Jan Michalski, em Montricher, no cantão de Vaud. Mas você já esteve na Suíça para divulgar a sua obra. Qual é a imagem mental que guarda dos helvéticos?

M.C.: A Suíça é um país pequenino que já existia como uma nação inventada, [na minha cabeça], antes mesmo de eu visitar a Suíça. Porque os suíços tiveram um papel muito importante em Moçambique. Os missionários suíços tiveram durante dois séculos uma relação com a África que passou por um caminho diverso da do resto da Europa – aliás, isto está na trilogia “As Areias do Imperador”. Era por razões de evangelização? Sim, era. Não se tratava de uma nação completamente desinteressada, mas era uma presença muito mais verdadeira. Os missionários não estavam aqui de passagem, para fazer um pequeno negócio e voltarem. Estavam aqui dedicando toda a sua vida e isso teve uma influência enorme, por exemplo, no Movimento de Libertação Nacional. Muitos dos nacionalistas moçambicanos que lutaram pela independência tinham sido educados por missionários suíços. Depois, durante a luta de libertação, havia um comité de apoio na Suíça. Portanto, a Suíça para mim são essas pessoas. Tenho uma ideia um pouco idílica, romantizada, de uma Suíça que abraça a cultura africana. Sei que a Suíça não será toda assim, mas a Suíça que tenho como mito é esta. 

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Este conteúdo foi publicado em O escritor moçambicano Mia Couto explica a sua percepção dos missionários suíços na África, que se comportavam de maneira distinta dos enviados pelas potências coloniais europeias. 

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swissinfo.ch: A diplomacia suíça também teve um papel importante na assinatura recente do terceiro tratado de paz em Moçambique. Esta imagem idílica que se constrói à volta da Suíça também está ligada à mediação de conflitos?

M.C.: Sem dúvida. É um papel antigo. Trata-se de uma relação amistosa de quem aceita o outro na sua diferença. Ao contrário de outras potências coloniais que depois se misturaram dentro Moçambique,  os suíços brigaram sempre para que as línguas indígenas de Moçambique fossem as línguas das pessoas e que tivessem suas gramáticas ensinadas nas escolas. E há muita gente que ainda hoje diz: “Eu encontrei-me africano, ou seja, reconciliei-me com a minha própria identidade africana, porque os suíços me disseram que eu não tinha um dialecto mas sim uma língua”. Então acho que esta relação mantém-se renovada na cabeça de muita gente que ainda está viva. Há gente que teve contacto com os pais e que hoje percebe que a Suíça intervém de uma maneira que parece desinteressada. E respeitosa da diferença. E este papel que a Suíça tem em conflitos que ainda persistem em Moçambique é  simplesmente uma renovação desse respeito mútuo.

swissinfo.ch: O seu mais recente romance, “Mapeador de Ausências”, explora a ideia do regresso ao local da infância. O seu berço é a cidade da Beira, que foi quase destruída em Março de 2019 pelo ciclone Idai. Como está a Beira hoje?

M.C.: Aquilo que poderia ser feito pelas pessoas da Beira está feito. Quem percorrer hoje a cidade da Beira não percebe a dimensão da grande tragédia que aconteceu ali. Mas em termos de grandes infra-estruturas – pontes, estradas e edifícios do Governo – a coisa não está tão bem ainda. Há uma lentidão nos processos. Há dinheiros que foram prometidos e ainda não chegaram. Há dinheiros que foram prometidos e entretanto foram reduzidos porque houve a Covid-19. Gasta-se muito dinheiro em estudos que são realizados por empresas dos próprios países doadores e, de repente, o que chega realmente a Moçambique é muito tarde e muito pouco. Sei que posso estar a parecer uma pessoa ingrata. Mas é preciso que isto seja dito porque eu conheço quem está à frente da comissão de reconstrução da cidade e sei que os dinheiros não chegam.

swissinfo.ch: Qual é a memória mais antiga que guarda dessa Beira que foi destruída?

M.C.: Lembro-me da presença do mar. A minha primeira memória é de medo. Havia o pavor de que o mar nos engolisse porque a Beira está abaixo do nível das águas do mar e, portanto, periodicamente o mar ocupava aquele território que, de resto, era dele. A Beira foi mal construída, ela repousa  num lugar onde não devia haver uma cidade. Esta ausência de limite entre água e terra me fazia ter medo.

swissinfo.ch: Enquanto biólogo, debruça-se precisamente sobre o estudo das zonas costeiras. Por que escolheu esse mesmo limite entre a terra e a água como profissão?

M.C. Eu queria ser zoólogo. Era apaixonado pela fauna da savana: leões, elefantes… Quando mudei de curso [da Medicina para a Biologia] foi de maneira tardia porque tive que interromper os estudos universitários. Quando recomecei, havia já uma guerra civil e não era possível fazer trabalho de campo onde estavam esses bichos que me apaixonavam. Então fiquei na zona costeira. E agora mesmo, nesta entrevista, quando me pergunta qual é a minha primeira memória, eu tive de pensar nisto. Nunca tinha estado tão certo de que havia medo da ausência de fronteira entre mar e terra. E provavelmente isso me persegue na escrita e na ciência. Agrada-me e ao mesmo tempo causa-me medo esta linha fluida, de troca, entre o mar e a terra.

swissinfo.ch: Já disse em várias entrevistas que aquilo que o move são as pessoas e as histórias. 2020 foi um ano de poucos encontros. Isso fez com que o seu ano fosse menos produtivo?

M.C.: Moçambique não foi tão atingido no início e não teve confinamento obrigatório. Tivemos restrições, sim, mas nunca ao ponto em fecharmo-nos em casa. Foi uma oportunidade para que os encontros – face a esta percepção da fragilidade da vida de quem está connosco – ganhem uma dimensão mais profunda. As pessoas querem saber um pouco mais do outro, vão ao nível da intimidade. Para mim, isso foi notório. Eu dizia coisas aos meus amigos e eles diziam-me coisas como quem está a conversar na iminência do fim. Portanto, os encontros foram menores mas tiveram uma outra dimensão. E eu escrevi, sim. Agora, este ano, é que comecei o ano não muito feliz porque testei positivo [para a Covid-19 na segunda semana de janeiro]. Confesso que neste período não consigo escrever. Estou demasiado ocupado com receios e fantasmas dos quais não consegui me libertar.

swissinfo.ch: Consegue descrever os seus fantasmas? Do que é que tem medo?

M.C.: Durante um ano inteiro nós estivemos a ver na televisão essa construção que foi feita em cima do medo. Via-se gente a morrer e eram números gigantescos. E, de repente, esse vírus já não são números, são os meus amigos que estão ficando infectados. E sou eu próprio. Estou dentro daquela estatística que tanto me atribulava. E há histórias com os meus amigos que não correram bem. Há um sentimento de irrealidade. Estou dentro de um filme. E não é um bom filme.


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