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A fantasia do paraíso deixado para trás

Mulher olhando através da janela
Olhar a realidade através da janela, mas estar pensando em outro mundo. swissinfo.ch

A saudade e o sentimento de exclusão podem transformar a mais dura das realidades em um ilusório conto de fadas.

Uma das faces perigosas da saudade é a maquiagem da realidade. Em uma tentativa de autodefesa e da manutenção de uma referência positiva, quem saiu de casa esquece os defeitos e problemas do país de origem e cai na armadilha da ilusão. Outros se apegam às adversidades da migração para amenizar a falta. Com isso, não resolvem os inconvenientes, vivem uma existência irreal e ainda abrem a guarda para ser explorado por familiares no país de origem. E o pior de todos os males, não conseguem se desapegar do passado, deixando de desfrutar da nova vida no exterior.

* Artigo do blog “Suíça de portas abertas” da jornalista Liliana Tinoco Baeckert.

A literatura sobre a relação da família com a fantasia não é muito farta. A ideia para a matéria veio quando a swissinfo.ch entrevistava brasileiras sobre saudade e ouviu espontaneamente algumas respostas do tipo: “já senti muito, mas me cansei de ser solicitada para ajudar financeiramente” ou “tento focar nos defeitos para melhorar a minha existência na Suíça”. Admitir ser explorado pela família é um processo que demanda muito tempo, autoconhecimento e experiência; muitas vezes nem acontece. Mas a tendência à ilusão de uma terra ou vida perfeita quando distante existe, é fruto de diversos estudos e inerente ao ser humano.

Cuidado para não desvalorizar a cultura

A psicóloga intercultural Simone Torres Costa, que escreveu tese de mestrado sobre estratégias de adaptação, lembra que é muito importante a valorização e o respeito dos traços culturais do país de origem para que o processo de integração se torne mais consciente e, dessa forma, mais leve. Alguns migrantes, no entanto, preferem focar nas imperfeições para poderem lidar com o fato de terem ido embora.  Outro retorno ouvido, também referente ao não enfrentamento da realidade, é se apegar aos defeitos do Brasil para amenizar a saudade.

De acordo com a psicóloga intercultural Simone Torres Costa, esse tipo de constatação é muito perigosa porque é importante valorizar a memória positiva. É ela que alimenta a identidade do indivíduo e, no caso, ajuda a estimar a cultura do indivíduo. Segundo Simone, fantasiar tem seu lado negativo mas ajuda a manter a imagem positiva do passado. “É preciso dissociar a família do Brasil. O importante é saber que os parentes são apenas uma parte dessa história, mas outras referências devem ser levadas em conta. Se a pessoa tem familiares que exploram financeiramente e coloca o sentimento negativo no país como um todo, acaba por prejudicar a sua adaptação no exterior, já que ela tenderá a negar a sua cultura”, diz Simone.

A saudade substituída pela decepção – Quando questionada se sentia falta do Brasil, a brasileira *Lauriana Müller disse que já tinha passado dessa fase. Após 16 anos na Suíça, aprendeu que idealizou uma família que não existia só para aplacar a saudade, mas que na verdade só se lembrava dela quando precisava comprar algo. A resposta de Lauriana é um misto de desabafo, por ter investido quantia proveniente de faxinas para ajudar vários familiares; e de arrependimento, por não ter aproveitado a renda extra para construir uma vida melhor no país de acolhida, o que inclui tanto o lado financeiro quanto o de aproveitar mais as férias para conhecer outros lugares, sem se ater tanto à sua cidade natal, Maceió.

“Eu passei 14 anos limpando casas para enviar dinheiro para minha mãe e irmãos. Canso de receber mensagens dos meus sobrinhos que querem comprar um celular novo. No final das contas, as pessoas acham que estamos ricos só porque estamos fora do país. O que não é verdade. Eu vejo também que muitos deles não querem trabalhar para melhorar de vida, acham mais fácil pedir. É preciso muita coragem para levantar e ir atrás dos nossos objetivos”, diz Lauriana.

A psicoterapeuta e psicóloga Telma Witzig
A psicoterapeuta e psicóloga Telma Witzig. swissinfo.ch

Exploração e culpa

De acordo com a médica baiana *Carina Souza, que saiu de Salvador para trabalhar no Sul do Brasil, a saudade era tanta que ela recriou a imagem de uma mãe que nunca existiu. Depois de passar por várias sessões de terapia, Carina consegue hoje ver com clareza a criação de uma fantasia, porque estava distante de casa, associada ao sentimento de culpa por ter ido embora e ganhar bem. “Um dia, eu estava contando sobre a minha mãe para uma colega do hospital, que se disse impressionada pelo ótimo relacionamento que eu tinha com ela. Foi nesse momento que eu vi a dimensão da minha utopia, já que a nossa relação não era assim”, explica a médica.

O blogueiro brasileiro Gustl RosenkranzLink externo postou um texto há três anos sobre o assunto. Intitulado “Brasileiros no exterior, a saudade de casa e a tirania da família no Brasil”, Rosenkranz conta casos de brasileiras conhecidas que trabalham na Alemanha e se sentem obrigadas a ajudar a família. “Conheço tantos exemplos de tirania de famílias de emigrantes que poderia passar alguns dias escrevendo. Sei de casos de quem ajudou durante anos, às vezes sem nem mesmo escutar um muito obrigado. Mas quando uma pessoa que vive no exterior, já cansada de trabalhar tanto para ajudar a família, um dia corta essa ajuda, pode acontecer dela ser rejeitada, chamada de egoísta e escutar que ela é uma pessoa tão ruim que, apesar de nadar em dinheiro, nunca ajudara a família, anulando praticamente tudo que fizera até então”. A tirania da saudade está sempre à espreita; o importante é agir com consciência.

*Alguns nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.

Análise psicológica da realidade fantasiosa

A distância e a saudade colorem o passado e podem trair a visão do que realmente ficou para trás. A culpa também tem um papel importante nessa relação. Essa foi a opinião das três psicólogas brasileiras entrevistadas sobre o tema pela Swissinfo. Segundo a psicóloga Cristina Bandeira, as pessoas apresentam uma tendência a idealizar quando estão distantes ou quando não têm mais acesso a alguma coisa ou pessoa. Muitas vezes esse sentimento utópico é transferido aos parentes e amigos que ficaram no país de origem. “Todo mundo sonha com uma família perfeita. Nessa tentativa, muitos preferem fugir da realidade, que é infelizmente mais dura que a fantasia”, explica.

A psicoterapeuta e psicóloga Telma Witzig, do alto da experiência de 15 anos de consultório em Basel, presenciou pacientes brasileiros que têm extrema dificuldade em se libertar das amarras da família, que espera receber ajuda financeira. Quando o patrocínio é cortado, alguns parentes consequentemente rompem as relações. “Esses pacientes querem acabar com a dependência financeira, porque os incomoda. Mas a assistência os libera da culpa, por estarem em uma situação muito melhor que a família no Brasil; e ainda tem um fator mais profundo: compra o amor e a atenção de entes que nem sempre deram valor a essas pessoas”.

A aconselhadora psicológica Graziela Birrer explica que a saudade apaga os aspectos negativos e deixa somente a saudade. Sua experiência no atendimento a brasileiros em consultório em Luzerna e em Zurique mostra que a culpa por estar bem é outro peso carregado por esses estrangeiros, principalmente por quem tem família mais carente no Brasil. “Além do remorso, essas pessoas carregam uma sensação de dívida eterna”, explica.

Análise intercultural da interdependência familiar

As categorias culturais coletivismo e individualismo são vistas por alguns treinadores interculturais como as maiores responsáveis pelo implícito sentimento de solidariedade esperado por alguns integrantes da família que ficou no país de origem. Segundo a Teoria de Dimensões Culturais de Hofstede, que analisa sociedades sob essa ótica, nos grupos mais individualistas, as crianças aprendem a tomar o caminho do outro; opiniões pessoais não contam muito. A lealdade ao grupo é extremamente valorizada e isso se estende à esperada divisão de bens.

Em seu livro Culturas e Organizações: o software da mente (em inglês Cultures and Organizations: software of the mind, de 2010), Hofstede explica que, nesse tipo de cultura, se um integrante da família tem um emprego remunerado, é esperado que esse componente ajude. Na escala de dimensão cultural, o Brasil ocupa o 38° lugar na categoria e os Estados Unidos a posição 91°, a mais alta do ranking.

A psicóloga intercultural Simone Torres Costa, no entanto, alerta para o fato de não generalizar e estereotipar o país. Autora do livro Desconstruindo o Brasil: entre carnaval, futebol e garotas em pequenos biquínis, Simone acredita que a dimensão de Hofstede não consegue explicar exatamente o Brasil, que é um país muito complexo. Ela atribui à problemática da interdependência a questão social e a região, já que esse tipo de dinâmica é menos esperado por famílias mais abastadas ou moradoras das maiores cidades. 

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