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No Ticino, os “rustici” da discórdia

Um vilarejo em cólera... swissinfo.ch

Os "rustici", antigas construções rurais, herdeiras da tradição de transumância dos vales do Ticino, simbolizam a paisagem nesse cantão de língua italiana.

Sua transformação em casas de veraneio levou a um verdadeiro impasse entre as autoridades federais e Bellinzona. Alguns dos rustici podem até ser demolidos. Reportagem swissinfo.ch

A estrada que passa por Biasca, ao norte de Bellinzona, e vai em direção ao vale lateral de Pontirone, é longa, estreita e bastante sinuosa. No entanto, Alda Fogliani, uma jornalista e colunista local, conduz como se conhecesse o trajeto de memória. E quase isso.

Quando se tornou uma apaixonada pelos rustici, por “força das circunstâncias”, essa sexagenária decidiu lutar contra a “obstinação das autoridades”. Segundo ela, elas cometem um erro ao decretar ordens de demolição apenas para restaurar a lei.

Para isso, ela repete incansavelmente o trajeto várias vezes por semana para acompanhar jornalistas e também simples cidadãos que se interessam por essa causa. O caminho é longo, mas Alda Foglia aproveita a ocasião para lembrar com detalhes as etapas do seu combate. Suas histórias são, por vezes, intercaladas com canções tradicionais do Ticino, que ela canta com sua voz forte e clara.

Transformação

Alda Fogliani luta especialmente contra a ordem de demolição (cujo prazo foi fixado ao final de setembro), e que atinge uma proprietária no fundo do vale, Raffaella Marconi-Rodoni.

Sua pequena casinha de pedras, com um teto de granito e as colunas de madeira aparecendo – os materiais da região – muitas vezes desperta a admiração dos caminhantes que têm coragem de se aventurar até o fundo desse vale selvagem a 1.550 metros de altitude. É um lugar quase desconhecido dos turistas.

Esse rustici se tornou, sobretudo, símbolo da política de “dois pesos e duas medidas” das autoridades. Ele ilustra o costume local perpetuado por alguns proprietários, que restauraram essas antigas casas e as transformaram, sem a autorização oficial, em casas de férias. Essa prática acabou sendo aceita, “pois todo mundo sempre fez isso”, como custumam se defender as pessoas.

Bode expiatório

Até o dia em que uma gota “fez transbordar o vaso”: foi quando a comuna (município) de Biasca – cujas autoridades eram suspeitas até então de ter uma política “relaxada” nessa questão – assinaram uma ordem de demolição para esse pequeno estábulo transformado em um confortável chalé.

Mas Alda Fogliani, Raffaella Marconi-Rodoni e o comitê de apoio formado recentemente acusam a comuna de Biasca e o cantão de “práticas arbitrárias”.

Segundo eles, trata-se de “designar um culpado, uma espécie de bode expiatório para aplacar a ira das autoridades federais” e demonstrar, dessa forma, boas intenções frente ao governo federal em Berna. “Enquanto os abusos são inúmeros em todo o cantão”, protestam os oponentes, que reivindicam agora “uma moratória, acompanhado por multas pecuniárias”.

Sem igualdade na ilegalidade

Mas Marco Borradori, chefe do órgão responsável pelo planejamento urbano no cantão do Ticino, não cansa de repetir: “Não há igualdade na ilegalidade. Todos os rustici transformados fora as zonas de construção serão avaliados e seus proprietários punidos, caso seja necessário”, ressalta.

Essa é uma tarefa difícil. Do norte ao sul do cantão, milhares de construção já sofreram algum tipo de reforma. “Essas intervenções são variadas. Elas vão do pior até trabalhos excelentes, nos quais as regras de construção e paisagismo foram respeitadas”, explica Moreno Celio, responsável há dez anos pelo uso das terras no Ticino, o que lhe valeu o apelido de “Monsieur Rustici”.

O trabalho de Celio não foi fácil até agora. Responsável por uma pasta considerada como uma das mais movimentadas da história moderna do cantão, ele foi obrigado invocar as tradições do Ticino em Berna (capital) e, paralelamente, colocar ordem no que costuma agora chamar de “faroeste dos rustici” no cantão.

Diferentes mentalidades

A isso se acrescenta um rumor persistente: a atitude das autoridades federais transparece arbitrariedade nos últimos anos. “Eu pessoalmente tenho um rustici deixado pelo meu avô. Conheço e posso compreender o apego que os ticineses têm a esse pequeno patrimônio, esse pedaço de natureza e ao sentimento de liberdade que ele traz”, confessa Celio.

Em maio passado, o Parlamento ticinês aprovou o plano urbanístico cantonal. O documento deu origem a um relatório de planificação intitulado PUC-PEIP (plano de utilização cantonal de paisagens com edifícios e estruturas protegidas), submetido há poucos dias ao governo federal de Berna. O órgão competente manifestou desejar algumas modificações suplementares da parte do Ticino.

Mas essa dolorosa questão poderá, em breve, chegar ao seu final: “até em alguns meses”, estima Moreno Celio. “Nós examinamos atualmente se esse instrumento poderá ser a boa resposta do ponto de vista de planejamento territorial e da dimensão cultural, e não apenas sob o ângulo do rigor jurídico”, explica o especialista.

Luta de cidadãos

Mas, nos bastidores desse início de apaziguamento entre Berna e Bellinzona, a luta dos proprietários particulares continua. Para Raffaella Marconi-Rodoni, está fora de questão de abandonar “o sonho de uma vida”. Os trabalhos de reforma custaram a ela quase 300 mil francos e muitos anos de esforço e sacrifício. “O sonho de uma vida”, repete ela.

E enquanto isso, a luta promete se transformar em um combate de cidadãos. No Vale de Pontirone, os partidários de um movimento de resistência advertem: “Se as autoridades tencionam enviar suas pás mecânicas ao local, eles podem vir. Mas nós iremos destruir a ponte que permite o acesso ao vale.”

Os “rusticis”, antigos celeiros, estábulos ou granja, são construções de um tamanho modesto, em pedra e cujo teto é geralmente coberto por placas de granito. As fachadas costumam se desprovidas de janelas.

Ao longo dos séculos, cerca de 60 mil a 70 mil rustici foram construídos nas planícies e nos vales do cantão do Ticino.

Essa arquitetura considerada “pobre” é testemunha das tradições de transumância (migração periódica de rebanhos, esp. de carneiros, da planície para as altas montanhas, no verão, e vice-versa, no inverno) do cantão.

Há cerca de meio século, o principal recurso dos habitantes do Ticino era a agricultora. Mesmo as famílias mais modestas possuíam, muitas vezes, dezenas dessas pequenas construções, disseminadas por diversas altitudes para responder às suas necessidades, segundo as estações do ano.

Moradias construídas fora das zonas legais de construção só estão protegidas se seu aspecto exterior e o contexto do local correspondem a critérios bem definidos.

Os rustici se transformaram no símbolo da paisagem do Ticino. Eles são muito populares entre turistas estrangeiros, sobretudo suíços e alemães.

Esse interesse levou a um aumento considerável dos preços dessas pequenas construções, sobretudo nos vales mais frequentados do cantão como o Maggia ou vale de la Versazca.

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