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“O gênero de uma pessoa não deveria constar no passaporte”

Pessoa sorrindo à câmera
Milusch não se sente completamente mulher ou homem. Thomas Kern/swissinfo.ch

Homem ou mulher? Milusch não quer decidir e se define como uma pessoa não binária. Para o/a natural de Zurique, a decisão alemã não abre a porta o suficiente para "um terceiro gênero": Nos documentos oficiais de identificação não deveria constar nenhuma referência sobre gênero.

Milusch Pati não é nem mulher nem homem, nem ela nem ele. A luta dele/dela começa com o idioma. “Não quero ser definido como ‘ele’ nem como “ela”. Para se adaptar à mudança, em inglês a palavra ‘they’ como pronome pessoal é usada com frequência para se referir à pessoas com Milush Pati, em alemão existe o termo ‘sier’ ou ‘xier’ (nenhum deles está no Duden até agora), enquanto no francês e em muitas outras línguas ainda não há alternativas. Esses são sinais da extensão da transformação social que envolve o reconhecimento de um terceiro gênero. Uma pequena revolução, na qual a Alemanha foi um dos primeiros países da Europa a se engajar. (ver box)

A/o jovem de 28 anos poderia passar o tempo explicando que ela/ele não quer que que se dirijam a ele/ela como homem ou mulher: seja em restaurantes, lojas ou no correio. É uma missão impossível! O desejo dele/dela de escapar do conceito binário de gênero leva muito tempo e é o resultado de um longo processo de reflexão.

“Primeiro ficou claro para mim, que eu não gostaria de ser definida como mulher. Mas também não me sentia completamente um homem” As perguntas começaram a ficar mais instigantes, quando um de seus amigos Trans decidiu fazer uma cirurgia de “redesignação sexual” .”Isso me fascinou, mas eu não entendia a razão.”

Milusch Patti
“Se discute bastante sobre a identidade quando participamos da parada gay em Zurique”, diz Milusch. Thomas Kern/swissinfo.ch

No início de 2017, Milusch passou a buscar sua identidade de gênero. “Fui a uma terapeuta especializada em questões de gênero. Depois procurei realizar algumas mudanças para ver que efeitos elas teriam nos meus sentimentos”. Então a química/o de Zurique decidiu, entre outras coisas, adaptar o nome e passou a se chamar Milusch, que ele/ela considera um nome mais neutro do que o dado por seus pais. 

“Não quero tomar testosterona”

Um novo corte de cabelo  lhe trouxe uma sensação de coerência; a nova aparência ficou mais adequada ao seu tipo e à maneira como Milusch se sente. O processo de mudança foi até esse ponto, pelo menos até agora. “Uma pessoa não binária dá outros passos, por exemplo uma mastectomia, ou decide fazer um tratamento hormonal. Pessoalmente, não cheguei a considerar tomar testosterona, porque não ficaria satisfeito/a com todos os resultados.”

Milusch está em um café da moda no coração de Zurique e me explica com uma voz um pouco rouca: “Estou um pouco doente, por isso minha voz está mais grave, o que eu gosto”. A identidade de Milusch fica no limite dos códigos masculinos e femininos, uma maneira sutil de mesclar as características dos dois gêneros.

Uma parte das pessoas do convívio de Milusch se acostumaram com o novo nome. Seus amigos e amigas entenderam bem. “Apenas uma pessoa não quis aceitar e acabei cortando relações com ela. Além disso, algumas pessoas da minha família ainda não estão a par das novidades.”

Há dois anos Milusch se assumiu como pansexual*, um anúncio bem recebido pelas pessoas do seu convívio. Porém, é preciso um trabalho de mais esclarecimento, quando uma pessoa não quer ser nem homem nem mulher. “É muito complicado, porque muita gente não sabe o que isso significa, enquanto que homossexualidade ou transsexualidade são temas conhecidos”, diz Milusch.

Até na comunidade LGBTQI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer e Intersexuais) o tema foi até agora, secundário. “No Orgulho Gay, fala-se de homens homossexuais, e também um pouco sobre lésbicas e às vezes sobre pessoas Trans*- Assim funciona a sociedade patriarcal, os homens são sempre levados mais a sério em todas as áreas.”

“Nem sempre existe uma palavra para descrever as coisas, mas isso não significa que elas não existam”.

Banheiros neutros como em casa

Seja em carteiras de identidade, formulários administrativos, redes sociais ou portais de relacionamentos, em toda parte somos solicitados a preencher o campo para mulher ou homem. “Até quando quero comprar roupa na internet, tenho que definir meu gênero. É chato e não entendo porque isso é tão importante”, queixa-se Milusch.

Com a abertura para um “terceiro gênero” a Alemanha deu um passo na direção certa? “Sim, mas acho que seria preciso acabar se distanciando dessas categorias e no futuro o gênero de uma pessoas não deveria constar no passaporte.” “É uma informação que não ajuda em nada. Acho que uma pessoa pode ser identificada com mais facilidade pela cor dos olhos do que pelo gênero.”

A dificuldade para resolver a questão das categorias de gênero tem impacto na busca por um parceiro ou parceira. Muitos aplicativos de encontros oferecem apenas duas opções: homem ou mulher. “Assim que explicar meu caso na minha biografia, por exemplo, no Tinder, e tenho a impressão que muita gente não entende.”

Quando não nos definimos como homem ou mulher, que banheiro devemos usar? Quando estou sozinho/a, vou ao banheiro das mulheres. “Às vezes, quando estou com um amigo, vou ao dos homens mas não me sinto totalmente a vontade, porque a gente sempre passa pelos mictórios primeiro, que ficam na entrada do toalete”, esclarece Milusch. Em vez disso todos os toaletes deveriam ser equipados de maneira neutra. “Já é assim em casa. Seria lógico ter apenas uma separação entre mictórios e cabines.

Milusch está decidido/a mudar os costumes, em especial pelo envolvimento com os Jovens Socialistas da Suíça (JUSO Schweiz – na sigla em alemão). “É importante levar esse tema às arenas políticas. Entre outras coisas, quero sobretudo trabalhar pelo casamento para todos, um direto do qual pessoas não-binárias podem se beneficiar. No entanto, parece que o reconhecimento de uma alternativa para “ele” e “ela” ainda está muito distante, para entrar na Agenda política da Suíça.

E como é possível focar nesse problema, se não há palavras para descrever o tema? “Nem Sempre existe uma palavra, para descrever as coisas, mas isso não significa que essas coisas não existam”, afirma Milusch. 

Homem ou mulher? Na Suíça é preciso decidir

Na Suíça o gênero de uma pessoa, masculino ou feminino, tem de ser registrado logo após o nascimento. No futuro uma possível mudança dessa informação seria mais fácil se o registro pudesse ser feito posteriormente.

Hoje os pais têm um prazo de apenas três dias para informar os sexo do recém-nascido ao cartório de registro civil. Segundo a Academia Suíça de Ciências Médicas esse período é muito curto. Em dezembro de 2016, a Academia solicitou que esse prazo fosse ampliado para 30 dias.

A informação declarada na certidão de nascimento pode, de fato, ser alterada juridicamente mais tarde. Porém, o procedimento é complicado. Os interessados em mudar o nome e o gênero têm que enfrentar uma batalha jurídica. O Ministério da Justiça suíço examina como esse procedimento poderia ser facilitado. Um projeto deve ser colocado em consulta no ano que vem.  É possível que no futuro os interessados em fazer mudanças entreguem um esclarecimento ao registro civil, informando que a informação sobre o gênero e o nome deve ser mudada, segundo o esclarecimento do Departamento Federal de Justiça e de Polícia (Eidgenössische Justiz- und Polizeidepartement –EJPD na sigla em alemão), feito no final de outubro.

(Fonte: sda)

*Pansexual: termo que caracteriza pessoas com potencial sexual ou romântico para ter atração por todos os gêneros e identidades de gênero.

** Redesignação sexual é o nome técnico mas essa cirurgia é conhecida por mudança de sexo, apesar de ser um termo pouco preciso.

Alemanha poderá reconhecer o “terceiro gênero”

Em novembro de 2017 o Supremo Tribunal alemão solicitou que um “terceiro gênero” fosse incluído no registro de nascimento. Com essa nova regra, a Alemanha se tornaria o primeiros país da Europa a oferecer a possibilidade de registro de um terceiro sexo.
De acordo com a decisão do Tribunal Federal Constitucional, o legislativo alemão deve criar um novo regulamento até o fim de 2018, no qual o terceiro gênero deve ser incluído junto com “masculino” e “feminino” com “diverso” ou “inter” ou outro “nome positivo para descrever o sexo”.

Desde 2013, uma regra do legislativo alemão em vigor permite que apenas no registro de nascimento não conste nenhuma informação sobre gênero.

A Austrália e o Nepal já reconhecem um terceiro gênero em documentos de identidade, que poderá ser descrito como neutro ou intersexual; uma identidade de gênero para pessoas que não se reconhecem como homem nem mulher. Na França o Supremo Tribunal recusou, em maio de 2017 a inclusão de um “gênero neutro” em documentos emitidos pelas autoridades e rejeitou o pedido de uma pessoa que declarava ter nascido “sem pênis ou vagina”.

(Fonte: sda)

Tradução: Heloisa Broggiato

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