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O encontro de Hugo Loetscher com o Brasil

Hugo Loetscher em 2001 diante de um auto-retrato feito em 1972 pelo escrito Fred Mayer. Keystone

O escritor suíço Hugo Loetscher, que viveu em Portugal e trabalhou durante muitos anos como correspondente da imprensa suíça no Brasil, morreu na terça-feira (18/8), às vésperas de lançar um novo livro e de completar 80 anos.

Uma tese de doutorado recém-apresentada na Universidade Federal do Paraná analisa a obra de Loetscher no e sobre o Brasil, pela qual recebeu em 1994 a Ordem do Cruzeiro do Sul.

Nascido em 22 de dezembro de 1929, no bairro operário Sihl, em Zurique – filho de um mecânico da região de Entlebuch (centro da Suíça) e de uma imigrante alemã—, ele era considerado um cosmopolita por excelência. “Seres humanos não têm raízes, só árvores têm raízes. Seres humanos têm pés para caminhar”, disse certa vez.

Desde 1965, Hugo Loetscher viajou várias vezes pela América Latina, Sudeste Asiático, EUA e também pela Índia e China. Nos últimos anos, fez repetidas viagens ao mundo árabe, Egito, Tunísia e Líbia. Neste verão europeu, planejava ir à Síria.

Na terça-feira (18/9), ele morreu, após uma complicada operação cardíaca em Zurique, três dias antes de lançar o livro War meine Zeit meine Zeit (Meu tempo foi meu tempo), uma espécie de balanço de seu trabalho intelectual. Suas obras mais conhecidas são Der Imune (O Imune) e Der Waschküchenschlüssel (A chave da lavanderia ou O que seria se Deus fosse suíço).

“O Descobrimento da Suíça”

Hugo Loetscher teve durante muitos anos a companhia de um personagem inquietante – o Imune – que ele classificou de “um ser que decidiu renunciar aos sentimentos para não enlouquecer, que recorreu à imunidade para suportar a vida diária”.

Este personagem aparece também em sua única obra traduzida para o português até hoje, o conto A descoberta da Suíça, originalmente um capítulo do romance O Imune. O conto nasceu de uma pergunta que lhe foi feita por uma criança indígena boliviana: “E quem descobriu a Suíça?”.

Como não encontrasse resposta na história do país, o Imune chega à conclusão de que talvez a Suíça ainda não tivesse sido descoberta e leva os índios bolivianos a subir em sua barca o rio Reno e ir até a sua cidade natal e assim descobrir a Suíça.

Este livro é grátis

Com o sucesso de O Imune e trabalhos para os jornais Neue Zürcher Zeitung e Tages Anzeiger e as revistas Weltwoche e Du, financiou suas primeiras viagens ao exterior – à Itália, Grécia e Portugal.

Na tese de doutorado O espaço brasileiro e as (im)possibilidades utópicas nas obras de Stefan Zweig e Hugo Loetscher, defendida em junho passado na Universidade Federal do Paraná, a pesquisadora Adelaide Maristela Stooss (veja link na coluna à direita), descreve a passagem do escritor suíço por Portugal, no começo da década de 1960:

“De suas experiências naqueles meses em Portugal resultou o filme Ah, Senhor Salazar [Ach, Herr Salazar] (1965). Com apoio da rede nacional de televisão Suíça, o filme foi planejado e aprovado pelo governo de Portugal como um filme de propaganda turística. Todas as filmagens, a propósito, foram acompanhadas por representantes do governo. O texto do autor suíço, porém, crítico e irônico em relação à ditadura vigente no país, mudou o caráter do filme. As conseqüências: o filme não foi liberado em Portugal, o autor perdeu o direito de entrada no país, e, por motivos diplomáticos, também a apresentação pela rede de TV suíça foi cancelada uma hora antes de entrar no ar.

O filme gerou polêmica, o autor ganhou fama, o roteiro foi editado apenas em 1971 no volume Dieses Buch ist gratis (Este livro é grátis). O filme, porém, sem grande valor artístico, como o próprio autor comenta, nunca foi apresentado e perdeu-se nos arquivos da rede de televisão” (pág. 32-33 da tese de Stooss).

Descobrindo o Brasil

Stooss conta também que o primeiro texto lido pelo autor em língua portuguesa foi do Padre Antônio Vieira e que este influenciou a escolha do Brasil como próximo destino de viagem. O Brasil, segundo Loetscher, na década de 1960 ainda não estava presente nos noticiários na Suíça. Era necessário convencer editores e colegas de que o país não era apenas samba. Mas antes de informar o público leitor era necessário conhecer o país.

Segundo o belga Jeroen Dewulf, autor do livro Hugo Loetscher e o “mundo lusófono” – Biografia de um mulato literário, o escritor suíço esteve 14 vezes no Brasil, sempre por alguns meses. Inicialmente conheceu o Rio de Janeiro e a Bahia, mais tarde passou a viajar pelo interior: de Iguatu no Ceará à região missioneira no Rio Grande do Sul.

Sobre a escolha dos temas para suas reportagens, revelou em 1984 no artigo “A caminho pelo meu Brasil”, que “ao invés de falar de estruturas eu preferi falar da sopa”. Ele escreveu muitos textos sobre a ditadura militar, o “milagre brasileiro”, a “democracia racial” e o “racismo social”, a Amazônia, a questão indígena, a pobreza e a seca no Nordeste.

No começo, cometeu um erro comum a muitos correspondentes estrangeiros de servir o público leitor com aspectos pitorescos e clichês sobre o Brasil. Com o tempo, mudou a perspectiva, procurou apresentar o país do ponto de vista dos brasileiros, fez autocrítica e acabou sendo um assim chamado “autor de literatura engajada”.

Em tom irônico, constatou que a seca no Nordeste era uma constante na literatura brasileira do século 20. “A seca jamais esqueceu os poetas e ajudou o Brasil a ter uma boa literatura”, escreveu no artigo “A seca – uma catástrofe com tradição”.

“Mundo dos Milagres”

Mas a seca também influenciou sua própria obra literária – o Brasil desempenha um papel, entre outros, em O Imune (1975), Mundo dos Milagres (1979) e Os Olhos do Mandarim (1999). A trama de Mundo dos Milagres. Um encontro com o Brasil desenrola-se totalmente no Nordeste brasileiro.

Segundo Stooss, a obra “escrita com muito humor e ironia, na perspectiva de um narrador que se auto-denomina “o estranho” (ou “o estrangeiro”) trata de figurar e comentar a realidade de desnutrição e mortalidade infantil, pobreza, fuga da seca para os grandes centros, ditadura e impossibilidade de mudanças, tendo como referência a realidade de Canindé (no Ceará, hoje com 74 mil habitantes); e estende essa realidade a um futuro possível, o futuro imaginário de Fátima”.

A personagem principal é Fátima, um bebê morto no sertão, cujo enterro foi registrado pelo fotógrafo zuriquense Willy Spiller, que acompanhou Loetscher em muitas viagens. A cena do enterro deu origem ao livro, como revelou o próprio autor. “Ali estava eu que tive a possibilidade de conhecer este Nordeste apesar de não ter o direito, e ali estava em seu ataúde uma criança, que provinha deste Nordeste, à qual não seria permitido conhecê-lo. Então estava claro: meu livro sobre o Nordeste pertencia a Fátima.”

Até a década de 1990, Loetscher ainda publicou esporadicamente artigos sobre o Brasil em diversas revistas e jornais da Suíça. Em 1994 recebeu a Ordem do Cruzeiro do Sul por sua contribuição à cultura brasileira. Em 1999, participou de um congresso realizado na Universidade Federal do Paraná. No mesmo ano, foi lançado o romance Os Olhos do Mandarim, no qual o Brasil marca presença pela personagem Gil.

Na opinião de Adelaide Maristela Stooss, “Hugo Loetscher talvez seja um dos escritores de língua alemã que melhor conhece o Brasil e a ele se integrou. O autor inteirou-se do mundo literário, político e social do país. A afirmação se evidencia ante o grande volume de obras literárias e textos jornalísticos do autor em que o Brasil está presente, mas também ante as perspectivas assumidas por seus narradores e a linguagem de suas personagens.”

Geraldo Hoffmann, swissinfo.ch

Hugo Loetscher nasceu em 22 de dezembro de 1929, em Zurique, onde morreu em 18 de agosto de 2009. Ele é considerado um dos autores suíços contemporâneos mais conhecidos.

Depois de estudar Ciências Políticas, Sociologia e Literatura em Zurique e Paris, foi redator literário da revista du, de 1958 a 1962. Depois foi folhetonista e integrante da chefia de redação da antiga revista Weltwoche (1964-1969). Também foi correspondente dos jornais Neue Zürcher Zeitung e Tages Anzeiger, ambos de Zurique.

Desde 1965, ele teve estadias regulares na Europa, na América Latina e no Sudeste Asiático. Desde 1969, era escritor e publicista. Loetscher foi professor visitante de universidades da Suíça, dos EUA, de Munique e do Porto.

Em 1992, ele recebeu o Grande Prêmio Schiller da Fundação Schiller na Suíça.

Em 1994, recebeu a Ordem do Cruzeiro do Sul por sua contribuição à cultura brasileira.

Hugo Loetscher é autor de várias obras ainda não traduzidas para o português, entre elas, “Wunderwelt. Eine brasilianische Begegnung” (Mundo dos milagres. Um encontro com o Brasil, 1979).

Outros livros

Abwässer, 1963
Die Kranzflechterin, 1964
Der Immune (O Imune), 1975
Herbst in der Grossen Orange, 1982
Der Waschküchenschlüssel und andere Helvetica, 1983
Die Augen des Mandarin, 1999
Es war einmal die Welt, Zurique 2004
War meine Zeit meine Zeit, 2009

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