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Onde você estava no domingo às 8 da noite?

Grandjean e Ott
"Aumente a audiência ou você será demitida!" Ott (Carol Schuler, à esquerda) e Grandjean (Anna Pieri Zuercher) colocam suas diferenças de lado e examinam uma pista no primeiro episódio de 'Tatort' ambientado em Zurique Srf/sava Hlavacek

Há testemunhas? Tatort, a série dramática criminal mais antiga do mundo, faz 50 anos no domingo. A Suíça participou desta singular co-produção internacional durante quase metade de sua vida - mas não sem algumas reviravoltas e assassinatos (de personagens).

“Um Tatort Suíço sem críticas demolidoras? Sim, isso é possível”. O portal de notícias suíço Watson mal conseguiu esconder a sua surpresa no dia 19 de outubro, um dia depois de o 1.140º episódio ter chegado às telas de televisão.

A história começou obviamente com um estrondo – ou melhor, um cadáver em chamas e lutas entre jovens manifestantes e a polícia. Embora a questão seja atual, dados os recentes protestos violentos de rua em todo o mundo, dos Estados Unidos e Hong Kong à Bielorrússia, as cenas de tumultos eram imagens reais de Zurique há 40 anos atrás.

Eis como começa esse episódio, ‘Züri brännt’ (Zurique em chamas), com as filmagens originais entrecortadas com os tiros de um dos novos investigadores a caminho do ‘Tatort’ (local do crime, em alemão). O que liga o cadáver carbonizado e um crânio misterioso com a cena punk de Zurique dos anos 80?

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Abertura do episódio de Tatort Züri brännt

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Tatort em Zurique

Este conteúdo foi publicado em Abertura do primeiro episódio de Tatort rodado em Zurique, Züri brännt (Zurique em chamas)

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As mídias, sociais e tradicionais, ficam sempre excitadas com o mais recente Tatort, mas os críticos tinham afiado as suas canetas ainda mais do que o habitual para este episódio, que trazia uma nova cidade suíça como cenário (anteriormente foram Berna e Lucerna) e novos investigadores.

“Conceito imbatível”

O fenômeno Tatort não tem equivalente, nem mesmo no mundo de cinema e TV anglófono. Em cerca de 30 domingos por ano – mais ou menos a cada quinze dias – um mistério de homicídio de 90 minutos começa às 20h05 na televisão pública suíça, SRF, e dez minutos mais tarde na Alemanha e Áustria.

O que o torna único, porém, é que os homicídios se alternam em várias cidades e são resolvidos por vários investigadores (existem atualmente 23 equipes). A SRF contribui com dois programas por ano, a ORF na Áustria com dois ou três, sendo o resto partilhado entre nove estações de televisão regionais na Alemanha. E depois há a questão da língua – chegaremos a isso mais adiante.

Tatort é a série policial mais antiga do mundo. Para assinalar o seu 50º aniversário, os investigadores de Munique e Dortmund vão juntar-se para um episódio duplo a ser exibido em 29 de novembro e 6 de dezembro.

A média de audiência caiu de cerca de 25 milhões na década de 1970 para cerca de nove milhões, mas Tatort continua a ser o evento televisivo mais popular na Alemanha. Os episódios suíços são geralmente vistos por cerca de sete milhões de alemães (‘Züri brännt’ atraiu 7,45 milhões).

Um conceito de co-produção internacional semelhante foi utilizado para ‘Eurocops’ (1988-1992), que contava com sete estações televisivas europeias (incluindo da Suíça).

A abertura original de 1970Link externo ainda é utilizada, assim como a música original (à exceção de alguns ajustes sutis em 1979 e 2004), que foi composta por Klaus Doldinger, celebrado na Alemanha como autor da trilha do filme “O Barco – Inferno no Mar (“Das Boot”, 1981).

Wolfgang Petersen, diretor de Das Boot, também dirigiu seis Tatorts, incluindo um episódio controverso em 1977, que exibia Nastassja Kinski, aos 15 anos, em topless. Continua a ser o segundo episódio mais visto.

Roger Moore fez uma ponta emLink externo 2002.

O episódio suíço de 2018 Die Musik Stirbt Zuletzt (A música morre por último) foi filmado em um só take. Foi também o episódio menos assistido do ano.

Tatort tem um conceito imbatível: equipes de investigação de diferentes cidades que se alternam nas noites de domingo”, diz Stefan Brunner, que co-escreveu ‘Züri brännt’. “A gente pode acompanhar os investigadores durante vários anos e envelhecer com eles”.

Ele reconhece o desafio dos serviços de streaming e das séries de detetives, compreendendo temporadas de oito ou dez episódios, tais como The Bridge (A Ponte), The Killing (A Matança) e True Detectives (na verdade, filmes de dez horas) em que os telespectadores podem mergulhar obsessivamente, mas ele insiste que há espaço para séries multipartes e episódios tradicionais autônomos, tais como Tatort, Columbo e Poirot, porque ambos abordam diferentes necessidades dos telespectadores.

“Claro que se pode mergulhar mais fundo nas personagens de uma série [multipartes], mas as pessoas não gostam de embarcar constantemente em viagens mentais tão longas. Uma série como Tatort, por outro lado, é uma constante: um velho amigo com quem se pode contar. Encontramo-nos todos os domingos, mas também podemos pular um domingo, se quisermos”.

De fato, é isso que muitas pessoas fazem, por exemplo no restaurante Piccolo Giardino de Zurique, que há anos realiza exibições públicas de Tatort.

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‘Escandalosamente ousado’

Embora a maioria das pessoas pareça contente em assistir os homicídios serem agora cometidos em Zurique e não em Lucerna, chegar a Zurique tem sido uma aventura e tanto.

O primeiro Tatort foi realizado pela NDR (estação de TV do norte da Alemanha) e transmitido a 29 de Novembro de 1970. O primeiro episódio austríaco seguiu-se pouco menos de um ano depois. A ideia era que Tatort fosse mais do que um simples enigma: deveria haver história local e cor local, muitas vezes através dos costumes e das expressões idiomáticas.

Em ‘Züri brännt’, por exemplo, os espectadores alemães aprendem sobre os tumultos juvenis dos anos 80, o estatuto suíço de limitações ao homicídio (30 anos), que Zürichberg é uma zona chique para viver e que um café pode custar mais de CHF 5 (US$ 5,50). Além disso, uma das novas inspetoras tem um sotaque francês, um lembrete de que nem todos os suíços falam suíço-alemão.

A Suíça só aderiu à produção em 1990, quando o detetive bernês Howald e o seu assistente Carlucci tiveram de resolver um caso na capital suíça envolvendo negócios de armas duvidosos, a morte de um funcionário do Ministério das Relações Exteriores e a morte da própria filha de Howald.

Howald no set de Tatort
O primeiro episódio suíço de ‘Tatort’ sendo filmado na cidade velha de Berna em abril de 1990. Da esquerda para a direita: o diretor Urs Egger, Carlucci (Andrea Zogg) e Howald (Mathias Gnädinger) Keystone

O episódio destacou-se, não só porque era a produção televisiva suíça mais cara até então, mas também porque (spoiler!) Howald estava envolvido na morte da sua filha e no final do episódio suicida-se.

“Penso que é escandalosamente ousado da parte dos suíços apresentar um inspetor como culpado logo no primeiro episódio”, disse um crítico austríaco de Tatort na época.

Howald foi substituído, mas em 2002, após 12 casos, Tatort foi transmitido de Berna pela última vez. A razão oficial era dinheiro. A emissora pública alemã ARD tinha alegadamente pedido à SF (Schweizer Fernsehen, como a SRF era conhecida então) que dobrasse a sua produção para dois episódios por ano. A SF hesitou e saiu fora.

‘Tiro de misericórdia’

No entanto, em 2010 os suíços mudaram de ideia e voltaram à aliança Tatort, produzindo dois episódios por ano a partir da pitoresca Lucerna. As coisas começaram de forma sinistra.  

O primeiro episódio tinha sido originalmente programado para abril de 2011, mas foi cancelado pela SRF por razões de qualidade. “O filme não cumpre os nossos padrões. Este Tatort dá uma péssima imagem nossa”, disse Nathalie Wappler, chefe de cultura da SRF na época. Ela culpou o roteiro cheio de clichês e a atuação pouco convincente da atriz greco-italiana nascido na Suíça, Sofia Milos (que tinha trabalhado seis anos na série americana CSI: Miami).

Gubser e Milos
Flückiger (Stefan Gubser) e Lanning (Sofia Milos) no set de filmagem com vista para o lago de Lucerna, 2010. Keystone

Não ajudou em nada o fato de algumas cenas fazerem alusões negativas ao Partido Popular Suíço (SVP/UDC), de direita – acusação que a SRF negou. Assim, o episódio foi retirado, retrabalhado (levando a críticas de censura por parte de políticos de esquerda) e acabou por ser transmitido só em agosto.

Milos foi despedida após apenas um episódio; a nova dupla de Lucerna tratou de 16 casos até que o machado também caiu sobre eles em 2018. O seu episódio final saiu em outubro de 2019 e recebeu críticas de um modo geral negativas.

Um “tiro por misericórdia”, foi como o jornal Neue Zürcher Zeitung encarou a decisão de acabar com os Tatorts de Lucerna. “Os episódios de Lucerna sempre pareceram um caso insolúvel”, escreveu ele.

“Os episódios suíços têm sido lentos e ponderosos – não tanto por causa [dos dois atores], mas mais por causa dos roteiros desajeitados e das tramas primárias. Os filmes concentraram-se mais no cenário do Lago de Lucerna do que no caso criminal”.

Clichês vs. autenticidade

É neste equilíbrio entre realismo e clichês de “bem-vindo à Suíça” que os Tatorts suíços acabaram se perdendo muitas vezes, segundo Charlotte Theile, uma jornalista que cresceu na Alemanha e vive agora em Zurique.

“É possível que os telespectadores [alemães] possam dizer, ‘Ah, vá lá, é um Tatort da Suíça – quero ver algumas montanhas e sonhar um pouco e não ser conduzida apenas pelas ruas sujas de Zurique”, diz ela. “O problema é que os críticos e os espectadores suíços não têm qualquer interesse nesse tipo de filme. Eles querem mais autenticidade”.

As avaliações da dupla de Lucerna foram, de fato, as piores de todas as equipes de Tatort nos últimos anosLink externo. (Os episódios ambientados na cidade alemã de Münster foram os mais populares.) Será essa a razão para a retomada em Zurique?

“A prioridade máxima a partir de agora é trazer para as telas casos emocionantes e empolgantes”, disse Urs Fitze, chefe do departamento de cinema da SRF, no ano passado. “Ao fazê-lo, queremos deixar para trás a experiência de Tatort em Lucerna, onde era importante incluir na história tópicos socialmente relevantes – como os refugiados ou a eutanásia. No futuro, os casos serão mais baseados nas personagens e, portanto, menos ancorados na realidade”.

A chegada a Zurique

E assim, cá estamos agora em Zurique. Theile pergunta-se porque é que a SRF levou tanto tempo para mudar o cenário de Lucerna para Zurique, uma cidade que é um “abrigo para bandidos de todo o mundo – especialmente os ricos”. 

Ela observa que a maior cidade da Suíça é também a sede de organizações que faria salivar qualquer autor de histórias criminais: a FIFA, a sede europeia da Google, dezenas de reservadíssimos bancos privados, os laboratórios do Instituto Federal de Tecnologia (ETH Zurique).

Stefan Brunner diz que o desafio para os roteiristas de Tatort é retratar a cidade nas principais personagens e histórias. “O que é que a cidade representa? Quais são os seus destaques? Quais são os seus lados negros? Uma vez que Zurique é provavelmente a cidade mais rica de Tatort, demos-lhe o tema básico ‘capitalismo tardio e luta de classes'”.

Züri brännt é o 1.140º Tatort e o primeiro ambientado em Zurique. O título é o nome de uma canção de 1979 da banda punk TNT, que se tornou um hino juvenil.

As novas investigadoras são Isabelle Grandjean (interpretada por Anna Pieri Zuercher) e Tessa Ott (Carol Schuler).

Grandjean, uma policial experiente, vem da Suíça francófona e trabalhou no Tribunal Penal Internacional em Haia antes de se juntar à polícia cantonal de Zurique. Ela tem um filho que vive com o seu pai em Haia. Ott é uma analista de casos que trabalhou anteriormente como Conselheira de Investigação Comportamental na Alemanha. Ela é de uma família rica de Zurique, é nova na força e parece ter conseguido o emprego graças à amizade dos seus pais com o procurador do Ministério Público cantonal.

O roteiro foi escrito por Lorenz Langenegger e Stefan Brunner, que assinou vários episódios em Lucerna e irá escrever pelo menos quatro episódios em Zurique.

Züri brännt parece definitivamente mais cinematográfico do que os episódios anteriores, desde a direção de arte e iluminação até as cenas gravadas por drone sobre a cidade e a Ópera de Zurique à noite.

A língua

Mas embora a edição e a tecnologia tenham certamente evoluído ao longo dos anos, uma coisa que não mudou é a língua. Os Tatorts suíços são filmados em suíço-alemão, que os espectadores na Alemanha e na Áustria têm uma certa dificuldade em compreender.

Como resultado, os Tatorts suíços são dublados para a televisão alemã e austríaca – à excepção dos primeiros dez minutos! Estes são refilmados, linha por linha, com os atores suíços a falar alemão casto (Hochdeutsch) – evitando que os lábios se movam distraidamente fora de sincronia (pelo menos inicialmente). Só depois de dez minutos é que a dublagem chega, altura em que se espera que o público já esteja fisgado…

Embora isso pareça um compromisso inteligente, nem todos são a favor. Quando a SWI swissinfo.ch entrou nas redes sociais depois de Züri brännt, muitos dos comentários foram críticos em relação à dublagem, apelando para a versão original com legendas.

“Os filmes legendados em língua original são muito menos aceitos pelos espectadores na televisão alemã”, diz Lars Jacob da ARD. “É por isso que os filmes exibidos no canal Der Erste [ARD] numa língua estrangeira, ou com um sotaque difícil de compreender, quase nunca são legendados, mas sim dublados”.

Theile acredita que a língua é certamente um problema – “há muitos momentos perdidos na tradução que não ajudam na autenticidade” – se bem que, para ela, as fraquezas de alguns episódios suíços vão muito além da língua. “Mas o suíço-alemão certamente não torna as coisas mais fáceis”.

O segundo Tatort de Zurique já foi rodado – ambos os episódios foram filmados antes da Covid – e sairá no início de 2021. O drama centra-se no assassinato do chefe de uma fábrica de chocolate. As canetas já estão a ser afiadas

swissinfo.ch/ets

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