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Os anos de John le Carré em Berna: lavando elefantes e recrutando espiões

John le Carré em Berna
John le Carré no hotel Bellevue Palace em Berna, 2010 Keystone

John le Carré, o espião britânico que virou novelista e cujas narrativas elegantes e intrincadas definiram o thriller de espionagem da Guerra Fria, morreu aos 89 anos de idade. A capital suíça Berna não só desempenhou um papel importante em sua educação, mas também foi palco de várias cenas em seus livros.

Ao explorar a traição no coração da inteligência britânica em romances de espionagem, le Carré desafiou as suposições ocidentais sobre a Guerra Fria ao definir para milhões as ambiguidades morais da batalha entre a União Soviética e o Ocidente.

Em 2008, ele foi homenageado pela Universidade de Berna por reavivar o romance de espionagem e dar-lhe uma dimensão profunda e literária.

Sua alma mater o chamou de analista do “mecanismo do poder e da corrupção que em suas obras descobre a manipulação escrupulosa dos serviços secretos através dos poderes do Estado”.

David Cornwell (seu nome de batismo) tinha 16 anos quando chegou a Berna de trem em outubro de 1948, inquieto e possuído pela curiosidade sobre o mundo de língua alemã.

Ao se matricular na universidade, seu entrevistador diz ter se maravilhado “com sua falta de qualificações”, segundo Adam Sisman, o autor de John le Carré: A Biografia (2015).

“Quando o domínio da língua alemã se mostrou insuficiente para a entrevista,  eles continuaram a conversa em inglês. David disse ao professor que desejava estudar a língua e literatura alemã; o professor sugeriu que ele poderia achar mais fácil fazer um curso introdutório de filosofia, mas David foi inflexível. Com um sorriso irônico, o professor desejou ao jovem sorte e apertou sua mão”.

A vida em Berna

Após a admissão na universidade, foi um ano dinâmico para Cornwell, que logo aprendeu alemão fluente.

Ele fez malabarismos com seus estudos trabalhando como garçom em um buffet de estação de trem, esquiando, e diz ter até lavado elefantes para o Circo Knie da Suíça.

Seu lar era um pequeno quarto que sempre cheirava a chocolate, pois era ao lado da fábrica Tobler, onde o Toblerone era feito. Seu interesse pela literatura alemã veio repetidamente à tona fora da universidade.

“Perdendo-se nas ruas pavimentadas … de Berna, muitas delas cobertas por arcadas abobadadas, ele ficava recitando Hermann Hesse”, escreveu Sisman.

Aos sábados, Cornwell vestia seu melhor terno para o thé dansant (chá dançante) no Bellevue Palace, um elegante hotel empoleirado sobre o rio Aare. Aos domingos, ele passeava ao longo do rio, ou no Gurten, uma popular colina alcançada por um funicular com uma vista imponente sobre a cidade.

Foi também em Berna que Cornwell foi recrutado pela primeira vez para os serviços de inteligência britânicos, após encontrar um par de funcionários consulares em uma igreja no dia de Natal.

A Guerra Fria

Após um período no exército britânico, ele estudou alemão em Oxford, onde informou sobre estudantes de esquerda para o serviço de inteligência doméstica MI5 da Grã-Bretanha.

Após a graduação, ensinou idiomas na Eton, a escola mais exclusiva da Grã-Bretanha. Ele também trabalhou no MI5 em Londres antes de se mudar em 1960 para o serviço de inteligência estrangeira, o MI6.

Transferido para Bonn, então capital da Alemanha Ocidental, Cornwell lutou em uma das frentes mais difíceis da espionagem da Guerra Fria: a Berlim dos anos 60.

Quando o Muro de Berlim foi construído, le Carré (um pseudônimo exigido porque os oficiais do Foreign Office eram proibidos de publicar com seus próprios nomes) escreveu O Espião que Saiu do Frio, no qual um espião britânico é sacrificado por um ex-Nazista que se tornou comunista e agente duplo britânico.

Ao retratar espiões britânicos tão impiedosos quanto seus inimigos comunistas, le Carré definiu o deslocamento da Guerra Fria que afetou e destruiu inúmeras vidas no jogo de superpotências distantes. Os espiões britânicos ficaram furiosos por ele ter retratado o MI6 como incompetente, impiedoso e corrupto – mas ainda assim todos leram seus romances.

O papel de Berna

Em uma cena memorável de Tinker Tailor Soldier Spy (1974), um dos livros mais amados de Le Carré, dois espiões britânicos estão operando na capital suíça em busca de traficantes de armas quando, para fugir da polícia, escapam por um labirinto de corredores e escadarias cheios de espelhos e candelabros pendurados. Era o antigo refúgio de Le Carré, o Bellevue Palace.

Berna é também um cenário importante para Um Espião Perfeito (1986). Neste romance autobiográfico, o protagonista Magnus Pym se encontra nas ruas pavimentadas de Berna depois que seu pai, um vigarista, o envia para lá para lhe fazer um favor.

Magnus permanece em Berna, trabalhando nos turnos da noite transportando  barris de cerveja para uma cervejaria, ou derretendo cera para um fabricante de velas, entre outros biscates: “Ele sempre trabalhava à noite, um animal noturno na luta diária por aquela adorável cidade iluminada por velas, com seus relógios e poços e calçadas e arcadas”.

Berna também aparece em Nosso Tipo de Traidor (Our Kind of Traitor, 2010). O romance foi transformado em um filme, lançado em 2016, estrelado por Ewan McGregor, Naomi Harris, Stellan Skarsgård e o próprio Le Carré fazendo uma ponta.

Mas nessa vida de espionagem, quanto era verdade? “Eu sou um mentiroso”, Le Carré disse para Sisman. “Nascido para mentir, criado para isso, treinado por uma indústria que mente para viver, e praticado a mentira profissionalmente como romancista”.


swissinfo.ch/ets

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