Por que as reservas do Afeganistão continuam nos bancos suíços

Os ativos do Estado afegão, equivalentes a um quarto do PIB do país, estão congelados em uma conta bancária na Suíça. Eles são geridos por um fundo com sede em Genebra, que não liberou um único dólar sequer desde que foi criado há mais de dois anos. O dinheiro poderia servir de tábua de salvação financeira para a economia afegã.
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Quando o Talibã invadiu Cabul, a capital afegã, no dia 15 de agosto de 2021, Masuda Sultan sabia que as notícias seriam ruins. Ela só não imaginava o quanto.
De início, seu banco nos Estados Unidos se recusou a transferir dinheiro para o Afeganistão – os recursos seriam destinados ao financiamento de sua ONGLink externo, que Sultan coordenava na época. Logo depois, o sindicato de professores do país procurou sua ajuda e de outros defensores dos direitos das mulheres para forçar o Banco Mundial a descongelar a ajuda do Fundo Especial para a Reconstrução do Afeganistão (ARTFLink externo, na sigla em inglês) e desembolsar o valor dos salários de 220 mil educadoras que não vinham sendo pagas há meses.
Sultan ficou então sabendo que o Banco Central do Afeganistão não tinha mais acesso aos bilhões de dólares de suas reservas – uma fonte vital de verbas para ajudar a manter a economia funcionando e evitar a inflação descontrolada.

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“Pensando sobre esse dinheiro fica claro que ele é literalmente a riqueza dos pobres em um dos países mais pobres do mundo”, comenta Sultan, referindo-se às reservas. “É uma das razões pelas quais eu realmente queria apoiar essa questão dos ativos congelados, mesmo que ela possa ser vista como controversa em alguns campos”, completa.
A terrível situação do país estimulou Sultan a agir. Ela ajudou a criar a campanha Unfreeze Afghanistan (Descongele o Afeganistão) em novembro de 2021, a fim de pressionar o governo dos EUA e outros credores, como o Banco Mundial, que haviam suspendido a ajuda, a liberar recursos para que professoras e professores afegãos pudessem ser pagos e os serviços públicos essenciais mantidos.
Quando o Talibã assumiu o poder, o então presidente dos EUA, Joe Biden, congelou cerca de sete bilhões de dólares de ativos mantidos nos EUA pelo Da Afghanistan BankLink externo (DAB), o Banco Central afegão. Metade desse valor foi posteriormente colocada em um fundo fiduciário, o Fundo Afegão, para apoiar a assistência humanitária no país, garantindo que os novos líderes não tivessem acesso ao dinheiro. Outros 3,5 bilhões de dólares foram retidos para financiar uma possível compensação em um processo judicial em andamento contra o Talibã, movido pelas famílias das vítimas dos ataques de 11 de setembro de 2001 nos EUA.
O Fundo Afegão, sediado em Genebra, tem um mandato para lidar com os ativos, que agora valem 3,9 bilhões de dólares. No entanto, desde que foi criado, em setembro de 2022, o Fundo não desembolsou nada. O conselho de curadores, composto por dois especialistas afegãos, um funcionário do Tesouro dos EUA e um diplomata suíço, não revelou publicamente como pretende usar os recursos desse Fundo, nem se o dinheiro continuará retido na Suíça. No entanto, à medida que os doadores humanitários vão se cansando de enviar dinheiro para o Afeganistão, essa inércia está se transformando em uma questão de vida ou morte para a população do país assolado pela crise.

Engajamento ou isolamento
Nascida no Afeganistão em 1978, Masuda Sultan fugiu para os EUA com sua família em 1983 para escapar da guerra soviética que se estendeu por uma década no Afeganistão. Ela se tornou uma ativista dos direitos das mulheres depois de lutar para sair de um casamento arranjadoLink externo em sua comunidade de afegãos-estadunidenses em Nova Iorque. Sultan diz que desde a infância estava convencida de que a pobreza e a guerra seriam os principais problemas do Afeganistão. Com o objetivo de encontrar soluções para isso, ela estudou Economia e concluiu um mestrado em Administração Pública pela Universidade de Harvard. Em 2001, foi uma das fundadoras de uma das maiores organizações de mulheres do AfeganistãoLink externo, um órgão de proteção de mulheres, e passou a assessorar o Ministério das Finanças do governo afegão apoiado pelos EUA de 2007 a 2008.
Em 2021, quando o Talibã foi recuperando gradualmente o poder nas províncias, Sultan enfrentou o mesmo dilema que o Fundo Afegão enfrenta agora: a escolha entre engajamento ou isolamento. Ela optou por manter seu trabalho no país e começou a fazer uma campanhaLink externo pela liberação dos ativos congelados. Sultan ajudou também a financiarLink externo a organização Unfreeze Afghanistan (Descongelar o Afeganistão), que intercedeuLink externo perante o tribunal dos EUA, responsável pelo caso das famílias do 11 de setembro, para que os ativos do Banco Central Afegão fossem preservados e destinados à população do país e para que os ativos mantidos na Suíça fossem devolvidosLink externo.
“Trabalhamos durante 20 anos para combater o Talibã de todas as formas possíveis”, disse Sultan. “Mas então o que fazer? Você os isola na esperança de que alguém os derrube?”, questiona.

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Visto que o Talibã tem na mira mulheres e meninas, com um sistema de repressão que os especialistas da ONU rotulamLink externo de apartheid de gênero, a posição de Sultan pode parecer surpreendente. Seu questionamento, contudo, é: não se envolver com quem de fato governa causa ainda mais dor à população civil comum.
“O Afeganistão está sofrendo muito com problemas que podemos resolver”, afirma Sultan. “Embora não possamos controlar o que o Talibã faz, podemos fazer o possível para ajudar o povo do país. Ou seja, devemos fazer pelo menos isso”, conclui.
Crise de liquidez
A decisão dos EUA de congelar os ativos do DAB, paralelamente a uma queda repentina da ajuda internacional ao desenvolvimento, afetou seriamente a economia do Afeganistão. O Banco Central do país não conseguiu mais abastecer os bancos comerciais com dinheiro em espécie. Os afegãos correram para reaver seu dinheiro e encontraram os caixas eletrônicos vazios. A crise de liquidez tornou-se tão grave que, em dezembro de 2021, a ONU começou a enviar dólarLink externo em espécie para Cabul, a fim de financiar programas de ajuda emergencial.
Aproximadamente quatro bilhões de dólares em espécie chegaram ao AfeganistãoLink externo por avião desde o início do programa da ONU, ajudando a estabilizarLink externo a economia do país, embora em um nível precárioLink externo. Agora essa tábua de salvação está se esvaindo, à medida que os doadores internacionais vêm reposicionando seu foco para crises em outras partes do mundo, reduzindo, assim, a ajuda humanitária ao Afeganistão. Isso ocorre apesar das estimativas feitas pelo Banco Mundial, em 2023, de que a redução das remessas de dinheiroLink externo em 25% levaria a uma queda no PIB afegão, o que poderia forçar um grande número de famílias a tomar medidas drásticas para sobreviver, incluindo a venda de filhas para casamentos infantis.
Um déficit de financiamento forçou o Programa Alimentar Mundial a reduzirLink externo sua assistência emergencial ao Afeganistão em 2023, o que levou ao corte de alimentos e à retirada do apoio a dez milhões de pessoas. Em 2024, menos da metade da reivindicação da ONU para ajuda humanitária, no valor de 3,1 bilhões de dólares, foi atendida, deixando uma lacunaLink externo de financiamento de 1,6 bilhão de dólares. A ONU prevêLink externo que quase 15 milhões de pessoas – mais de um terço da população do Afeganistão – vai sofrer de insegurança alimentar aguda até março de 2025.
“Não podemos depender da ajuda e das remessas de dinheiro para sempre”, declarou Sulaiman Bin Shah, ex- vice-ministro da Indústria e do Comércio do Afeganistão até a tomada do poder pelo Talibã e hoje diretor de uma empresa de consultoria de negócios em Cabul. “Nós realmente precisamos recuperar a confiança dos investidores e dos bancos no país. Mas as garantias financeiras necessárias só podem ser obtidas se o Banco Central funcionar como um banco central normal, e para isso ele precisa dos ativos”, argumenta.
Em uma carta aos negociadores da ONU que lidam com o Afeganistão, datada de junho de 2024 e analisada pela SWI swissinfo.ch, Bin Shah reivindicava a recapitalização do Banco Central afegão através dos 3,5 bilhões de dólares mantidos na Suíça. A carta, assinada também por vários líderes empresariais e da sociedade civil sediados no Afeganistão, propunha permitir que uma empresa de auditoria reconhecida internacionalmente monitorasse cada pagamento feito pelo Banco Central e usasse os juros obtidos sobre as reservas para facilitar o comércio internacional e investimentos no país.
Até o momento, o Fundo Afegão manteve-se em silêncio sobre suas intenções e sobre possíveis planos de devolução dos ativos ao DAB em breve.
“Acho que parte do motivo pelo qual eles não se pronunciaram é que ainda não está claro qual será o papel do Fundo”, declarou Graeme Smith, analista da ONG International Crisis Group. O Talibã não reconheceu a legitimidade do Fundo Afegão e está exigindo a devolução imediata dos ativos ao Banco Central, acrescentou Graeme Smith. O Fundo, contudo, foi projetado para garantir um processo lento e um veto dos EUA sobre os recursos, com o objetivo de evitar manchetes sobre o Talibã nadando em dinheiro estadunidense. “É possível dizer que o Fundo está funcionando como pretendido, a fim de manter o problema longe dos noticiários”, conclui Graeme Smith.
Política acima das pessoas
Shah Mohammad Mehrabi, um dos quatro membros do conselho do Fundo Afegão e professor de Economia no Montgomery College, nos EUA, concordou em ser entrevistado pela SWI swissinfo.ch, embora tenha deixado claro que fala apenas em seu nome e não no do conselho administrativo do Fundo, que precisa de unanimidade para tomar decisões. Mehrabi, que também é membro do corpo diretivo do Banco Central do Afeganistão, já defendeu no passadoLink externo a devolução de fundos por meio de parcelas devidamente monitoradas, com o objetivo de estabilizar a economia afegã.
Isso não aconteceu até agora, pois nem os EUA nem qualquer outro país reconheceu o Talibã como governo legítimo do Afeganistão, observa Mehrabi. “Essa é a principal razão pela qual não houve muita movimentação do nosso lado”, explica.
Também levou tempo para estabelecer a organização e implementar as estruturas e os procedimentos de conformidade necessários, esclarece Mehrabi. Segundo ele, a diretoria precisou, de início, estabelecer uma estrutura de governança robusta: foram tomadas medidas como a criação de uma entidade legal na Suíça, a adoção de uma estratégia de investimento, o desenvolvimento de políticas de gestão de risco, o esclarecimento sobre como verificar os fornecedores e a elaboração de procedimentos de conformidade para questões como lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo.
De acordo com Mehrabi, o Fundo está agora tecnicamente em condições de fazer desembolsos direcionados. Segundo ele, o conselho concordou que nenhum dinheiro será usado para ajuda humanitária, já que as reservas devem ser utilizadas para estabilizar os preços e as taxas de câmbio. Com a redução das remessas de dinheiro da ONU, a escassez de dólares poderia aumentar a inflação e tornar essas injeções necessárias.

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Entretanto, há obstáculos significativos a serem superados antes que os ativos possam ser descongelados, o que remete à questão política do reconhecimento. Para o conselho, é fundamental que o Banco Central impeça que o fundo seja usado para lavagem de dinheiro ou financiamento do terrorismo, alerta Mehrabi. Para garantir isso, é necessária alguma espécie de empenho e treinamento técnico da equipe do Banco Central, mas o isolamento internacional do Talibã tem dificultado tais medidas, finaliza.
Um impasse entre o Talibã e os EUA sobre a nomeação do diretor do DAB está também impedindo a devolução dos fundos congelados. O regime incumbiu um funcionário, que havia sido alvo de sanções dos EUA e da ONU, como governador interino em 2021. Em julho, ele foi substituído por outro funcionário, Noor Ahmad Agha, também alvo de sanções.
“Acho que o Talibã precisa mudar”, aponta Masuda Sultan, ao demonstrar sua frustração com a recusa das lideranças afegãs em concordar com as exigências internacionais de que os direitos das mulheres devem ser protegidos. E também sua frustração quanto à nomeação de Agha, visto que ambas as ações estão perpetuando o sofrimento do povo afegão.
“O problema é político em sua essência”, comenta Sultan sobre os ativos congelados na Suíça, voltando ao ponto inicial da escolha fundamental entre engajamento ou isolamento. “A menos que resolvamos as questões políticas subjacentes, não há como esse dinheiro ser usado”, constata.
Edição: Nerys Avery/vm
Adaptação: Soraia Vilela
A produção desse artigo foi apoiada pelo Centro Pulitzer de Reportagens em Centros de CriseLink externo.

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