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Liberdade de expressão nas urnas: o caso suíço

Man pulling plants on plastic sheet through street
Ativistas de uma campanha ecológica protestam nas ruas de Genebra em 29 de abril de 2021. Keystone/Martial Trezzini

Como o voto contribui para a promoção da liberdade de expressão? Como a moderna democracia direta consegue garantir que os cidadãos sejam ouvidos? A experiência suíça oferece algumas lições.

A história moderna da Suíça registra aproximadamente a realização de 700 plebiscitos e referendos nacionais. Eles não apenas modificaram leis vigentes, mas também até incluíram novos artigos na Constituição helvética.

Em detalhes: as estatísticas oficiais registram 455 iniciativas de cidadãos (n.r.: projeto de lei levado à plebiscito após o recolhimento de um número mínimo de assinaturas de eleitores) e cerca de 240 referendos. Isso para não mencionar inúmeras outras tentativas de lançar plebiscitos, mas que terminaram fracassando quando os autores da proposta não conseguiram as assinaturas necessárias.

Os números podem levar um observador externo a acreditar que a Suíça merece sua reputação de campeã da participação dos cidadãos e seja considerada um “porto seguro” para a liberdade de expressão.

Talvez mais do que isso:  muitas vezes os plebiscitos e referendos trazem questões de grande impacto na sociedade, política e economia, mas, por vezes, até problemas aparentemente menos urgentes como o horário de verão, a renda básica incondicional e a proteção dos chifres das vacas.

Por isso não surpreende que os eleitores suíços tenham sido os primeiros no mundo a opinar nas urnas sobre a lei que, dentre outros, determinava apoio amplo à economia para compensar o impacto negativo das restrições impostas pelo governo para combater o Covid-19.

Faça ouvir a sua voz!

Série SWI #liberdade de expressão

Em princípio está tudo claro. Os artigos 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos ONU (1966) estipulam que “Toda pessoa terá o direito à liberdade de expressão; esses direitos incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, de forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha”. Na Europa, a Convenção Europeia sobre Direitos Humanos (1950) confirma a liberdade de expressão como um direito juridicamente vinculante (artigo 10). A Suíça consagra esta liberdade fundamental no artigo 16 de sua Constituição de 1999.  

Na prática, porém, muito permanece contestado. Muitos governos em todo o mundo não protegem o direito à liberdade de expressão, mas o atacam. Em outras partes do mundo, indivíduos e grupos se aproveitam da “liberdade de expressão” para justificar discursos discriminatórios e de ódio. Mas, embora seja um direito universal, a liberdade de expressão não é um direito absoluto. Garantir e aplicar essa liberdade é equilíbrio bastante delicado.

Na nova série de artigos da SWI swissinfo.ch, abordamos vários aspectos, desafios, opiniões e desenvolvimentos em torno da liberdade de expressão, tanto na Suíça como no mundo. Fornecemos uma plataforma para que os cidadãos se expressem sobre o assunto, oferecemos análises de acadêmicos e destacamos desenvolvimentos locais e globais. E, naturalmente, os leitores são convidados a participar da conversa posteriormente e a fazer se ouvir.

A votação foi incomum, pois a chamada Lei do Covid-19 expira de todas as formas no final do ano. Porém muitos dos seus oponentes aproveitaram a oportunidade de opinar sobre ela para protestar contra a política oficial, incluindo a campanha de vacinas e o estado de exceção impostos pelo governo federal por alguns meses. Resultado: 60,2% dos eleitores aprovaram no final a Lei.

Explicito e implícito

Nos últimos 173 anos, a Suíça só votou duas vezes para definir explicitamente os “limites” da liberdade de expressão. Uma ocorreu em 1994: foi quando eleitores aprovaram a legislação antirracista. Depois, em 2020, a maioria apoiou a proibição de discriminação em termos de orientação sexual.

Em um sentido mais amplo, entretanto, as restrições à liberdade de expressão já estiveram muitas vezes na agenda política do país. Dentre elas, votações sobre os direitos das minorias religiosas – tanto recentemente como no século 19; censura na década de 1930 e restrições para as emissoras de serviço público, só para apenas algumas delas.

Marc Bühlmann, cientista político da Universidade de Berna e diretor do “Année Politique SuisseLink externo“, um centro de estudos da política suíça, considera que o tema já foi colocado em questão uma dezena de vezes. “Talvez a liberdade de expressão não tenha sido explicitamente o foco principal de um plebiscito, mas possivelmente foi parte de uma discussão mais ampla sobre direitos básicos”, afirma Bühlmann.

O cientista político menciona discussões sobre limitações nos comitês extraparlamentares e o papel do governo em campanhas. Outro seria o debate sobre o conteúdo do livreto de votos, o material informativo enviado a todos os leitores pelo governo para explicar e orientar sobre os temas dos plebiscitos e referendos marcadas para ocorrer em uma determinada data.

Em setembro de 2021, o eleitor suíço opinará sobre a proposta de permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo, já aprovada pelo Parlamento. Seu questionamento em plebiscito ocorre graças a iniciativa de comitê de políticos de direita e conservadores, contrários à proposta.

Definição da plataforma e agenda

Outros aspectos a serem considerados são o âmbito das iniciativas e argumentos utilizados nas campanhas. É possível dizer alguma coisa? Qualquer questão pode ser levada a plebiscito ou referendo sem exceção? E se for o caso, quem estabelece então esses limites?

Bühlmann ressalta que violações dos direitos humanos e a proteção da privacidade são basicamente as únicas áreas consideradas “tabu”. “A Suíça é muito tolerante ao tratar de iniciativas”, concorda Georg LutzLink externo, cientista político da Universidade de Lausanne e diretor do Centro Suíço de Especialização em Ciências Sociais.

“Se considerarmos as restrições baseadas em normas antirracistas, quase tudo é permitido”, explica, acrescentando que existe uma zona de penumbra, onde não está claro se as exigências – ou um slogan de campanha específico – infringem as leis.

Lutz observa que alguns grupos, especialmente da direita, esgotaram as possibilidades desta prática liberal, e menciona duas iniciativas controversas levadas à votação na última década com “uma forte conotação islamofóbica”: a proposta de proibição da construção de minaretes e a interdição das burcas (n.r.. vestimenta feminina, similar ao xador, que cobre todo o corpo, inclusive os cabelos, e apresenta uma estreita tela, à altura dos olhos)

Lutz também enfatiza que, em grande parte, os plebiscitos e referendos se tornaram “plataformas de lançamento” para grupos políticos lançarem debates e impulsionarem seus temas centrais.

Parked car covered with red bike lane carpet
Um carpete vermelho com o símbolo de ciclovia colocado sobre carros em uma rua de Zurique para protestar por mais espaço para os meios de transporte “ecológicos”. Keystone/Ennio Leanza

Realidade no estilo suíço

Mas o sistema político suíço de democracia direta permite não apenas que partidos estabelecidos levantem questões, mas também qualquer cidadão. “É uma ferramenta para tornar visível na sociedade as opiniões de qualquer um, pelo menos na teoria”, afirma Bühlmann.

A realidade difere. Se um grupo pode ou não se fazer ouvir depende de vários fatores, dentre eles sua influência política, a capacidade de organização e os recursos (financeiros) disponíveis.

Lutz diz que tais fatores não vigoram só na Suíça. Certamente também seria incorreto “glorificar os instrumentos do referendo e plebiscito como ponta de lança política para garantir a liberdade de expressão”.

Todavia as votações são um palco onde diferentes opiniões podem ser ouvidas. No entanto, segundo Bühlmann, há ressalvas importantes – notadamente, quando a gama completa de argumentos – ou certos tópicos – não chega muitas vezes à esfera pública.

Campaigners for the Alpine Initiative with goats and alphorns outside parliament (black and white photo)
A chamada “Iniciativa Alpina”, uma Lei que busca limitar o tráfego rodoviário trans-alpino, não foi até hoje totalmente implementada apesar de ter sido aprovada pelos eleitores em um plebiscito em 1994. Keystone / Rolf Schertenleib

“São oportunidades perdidas. Seria preciso fazer mais para oferecer um fórum aos cidadãos comuns”, ressalta Bühlmann. Porém, por vezes há exceções: há três anos um simples agricultor suíço conseguiu organizar um plebiscito, propondo uma lei que protegeria os chifres das vacas (n.r.: normalmente são retirados nos primeiros anos do animal).

Na maioria dos casos, no entanto, cidadãos que tentam lançar plebiscitos e referendos falham já no início devido à falta de recursos financeiros e aliados políticos.

Em comparação

A Suíça não parece ser o único país no mundo a permitir ao eleitor de lançar suas próprias propostas em votações públicas. Mas há diferenças consideráveis entre os mais de 40 países onde tais ferramentas estão disponíveis em diferentes níveis, como mostra o Navegados da Democracia DiretaLink externo, uma plataforma de informação e pesquisa mantida pelo Instituto LiechtensteinLink externo.

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O segundo mapa dá uma visão geral dos quase 50 países do mundo onde o sistema político prevê votações populares sobre questões diversas com resultados vinculativos.

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Perdendo confiança no governo

Porém há falhas no sistema: nem todos os cidadãos participam do processo de tomada de decisão política.

Os cientistas políticos Cordula Reimann e Andrea HuberLink externo consideram que a pandemia de Covid-19 – e seu impacto na política e na sociedade – fez aumentar a polarização, gerando protestos e a aparição de movimentos antigovernamentais ou antissistema.

Um deles se denomina “Amigos da ConstituiçãoLink externo” e foi um dos responsáveis pelo lançamento do referendo que colocava em questão a Lei do Covid-19. Reimann e Huber argumentam que tais grupos informais articulam temores ocultos e não devem ser ignorados, mas devem sim incluídos em um estágio inicial, antes que as preocupações cheguem à pauta de votação.

Huber diz que o resultado da votação de 13 de junho foi notável: cerca de 40% dos eleitores rejeitaram a lei nas urnas. Seus oponentes se comprometeram a continuar a lutar contra a mídia pública e as medidas do governo.

“Isto não deve ser subestimado”. Esse movimento mostra a falta de confiança no governo”, diz Huber.

Diálogo na internet

A cientista política espera que as autoridades tomem medidas para evitar um maior fortalecimento das forças antidemocráticas, pois minam a liberdade de expressão através da divulgação de alegações sem fundamentos.

“O governo suíço deveria considerar novas formas de participação e estabelecer o diálogo com os movimentos sociais como antídoto à polarização. Muitas pessoas estão preocupadas com a crise. Como resultado, você tem um terreno fértil para ideias antidemocráticas que se disseminam através das mídias sociais”, avalia Huber.

Ela propõe a criação de plataformas na internet para promover o diálogo na sociedade civil e permitir a criação de grupos focalizados nos temas. Huber critica as autoridades por terem perdido uma oportunidade de fazer isso na primeira fase da pandemia em 2020. O governo teria consultado as instituições políticas tradicionais, mas acabou deixando de fora os grupos com necessidades e preocupações especiais, especialmente deficientes, idosos, crianças ou refugiados.

Adaptação: Alexander Thoele

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