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Novo tratado pandêmico precisa ser poderoso na prática

Jagan Chapagain

Já faz mais de um ano que o mundo foi atingido pela pandemia mortal do coronavírus. Mesmo que na época não soubéssemos a gravidade do que viria, deveríamos ter nos preparado melhor. Um novo tratado pandêmico pode nos impedir de cometer os mesmos erros no futuro?

Frequentemente, não se pensa muito sobre questões legais em meio a uma emergência. No entanto, o debate acerca de que regras aplicar aos governos, às comunidades e ao setor privado tem sido o centro das atenções durante a pandemia de Covid-19.

A Organização Mundial da Saúde (OMS), junto à União Europeia e a líderes de 23 países, afirmou que pretende criar um novo tratado internacional sobre pandemias, aproveitando a situação atual. É uma oportunidade de reavaliar como podemos garantir uma abordagem mais eficaz e justa para futuras crises.

Desde 2003, a IFRC (Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho) e seus membros têm sido encarregados pelos Estados membros das Convenções de Genebra de oferecer assessoria e conhecimentos especializados acerca do Direito dos Desastres. Na atual pandemia, nosso monitoramento mostrou que muitos Estados têm contado com decretos de emergência para lidar com lacunas entre saúde pública, gestão de emergências e leis e instituições de proteção social – na tentativa de fornecer uma resposta abrangente ao que se tornou simultaneamente uma emergência de saúde pública, um choque econômico global e uma crise política e social.

Quando as funções e os mecanismos de coordenação não estão claramente definidos na legislação nacional, corre-se risco de perder um tempo precioso e a confiança do público. Em países onde já existia uma preparação legal sistemática para emergências, como na Coreia do Sul, vimos, desde o início, uma resposta mais eficaz e abrangente. Devemos ser claros sobre a responsabilidade de todos na superação de uma pandemia. As leis sobre desastres devem garantir que nos dediquemos completamente e capacitemos as comunidades, principalmente seus voluntários, assim como a sociedade civil em geral.

Por quê? Porque as pessoas fazem uma enorme diferença. No ano passado, em uma aldeia da Somalilândia, uma pessoa que estava com febre, tosse seca e dificuldade para respirar procurou uma voluntária do Crescente Vermelho. Como ela era uma líder de saúde oficial e de confiança na comunidade, as pessoas sabiam que podiam lhe pedir ajuda. A voluntária, já treinada e preparada, reconheceu os sintomas e os relatou através de um aplicativo especialmente projetado para isso. Esse acabou sendo o primeiro caso de coronavírus na Somalilândia. A mesma voluntária ofereceu conselhos sobre higiene, isolamento e como lidar com as percepções da comunidade.

Com recursos, coordenação e orientação técnica da IFRC, os voluntários das Sociedades Nacionais da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho deram apoio a uma em cada 12 pessoas em todo o mundo durante a pandemia. Eles mostraram como uma abordagem voltada para a comunidade pode levar a resultados expressivos em saúde pública, renovar a confiança pública enfraquecida e atender a uma ampla gama de necessidades humanitárias.

Para ter um melhor desempenho, os governos precisam reconhecer plenamente o papel especial das Sociedades Nacionais como auxiliares das autoridades públicas em situações de emergência e conceder a elas acesso irrestrito aos grupos vulneráveis. Em Bangladesh, um dos países mais propensos a desastres no mundo, o Crescente Vermelho de Bangladesh há muito desempenha um papel de liderança conjunta com o governo, oferecendo apoio para que as comunidades “se preparem”. Desde o início da pandemia, eles têm trabalhado para manter as pessoas seguras e, agora, para levar vacinas à população.

Talvez o lugar onde esse tipo de atuação é mais crucial seja o Cox’s Bazar, o maior campo de refugiados do mundo. Nele, há todas as condições para uma propagação incontrolável do vírus: está superlotado e o acesso à saúde e à informação é limitado. A presença confiável de voluntários, sua ligação com as autoridades locais e um mandato claro e legal para atuar têm ajudado a controlar os impactos que poderiam ser colossais e, atualmente, as vacinas já estão sendo administradas.

Durante as emergências, aqueles em situações de risco – tais como pessoas que sofrem violência, migrantes, refugiados e pessoas que vivem em favelas – são empurrados cada vez mais para as margens da nossa sociedade, nas quais eles lutam para ter acesso a serviços básicos. As leis de desastre e de saúde pública podem e devem protegê-los. Precisamos de regras bem elaboradas e implementadas, que deixem claro quem pode acessar informações confiáveis, equipamentos de proteção pessoal, vacinas, tratamentos e proteções econômicas, sem discriminação.

Em Samoa, o Plano Nacional de Gestão de Desastres reconhece que mulheres, crianças pequenas, idosos e pessoas com deficiências frequentemente são os mais severamente afetados durante desastres. O plano requer a integração de gênero, diversidade cultural, deficiência e direitos humanos na avaliação, análise, planejamento, monitoramento e resposta às necessidades. Ele também apresenta disposições específicas para garantir dignidade, acesso, participação e segurança a todos.

Qualquer novo tratado deve basear-se nesses esforços nacionais para garantir que sejam alcançados os seguintes objetivos: equidade em intervenções que salvam vidas; sérios compromissos para não excluir os necessitados das iniciativas de recuperação, inclusive as de recuperação econômica; e um apoio maior ao trabalho, muitas vezes esquecido, daqueles que atuam diretamente nas comunidades.

Essa crise foi definida por desigualdades profundas e persistentes. Apesar da nobre retórica sobre solidariedade internacional, os 50 países mais ricos realizaram em média 38 vezes mais testes per capita que os 50 países mais pobres, e apenas 2% das doses de vacinas administradas no mundo foram nestes últimos. Esses dados foram disponibilizados pela Universidade de Oxford, na publicação Our World In Data, e pela União Europeia, no seu INFORM Severity Index, um indicador de gravidade de crises.

Esse é o cenário global apesar da iniciativa Covax, uma tentativa pioneira de garantir um mínimo de equidade no acesso às vacinas Covid-19. Na nossa crise atual, precisamos que aqueles com acesso às vacinas encontrem uma maneira de dividi-las em maior quantidade e mais rapidamente. É um imperativo tanto moral quanto de proteção à saúde global. Para o futuro, precisamos de compromissos vinculativos que nos orientem quando enfrentarmos a próxima crise de demandas esmagadoras e tratamentos limitados.

Leis e iniciativas cuidadosamente pensadas, acordadas e implementadas ajudarão a evitar, no futuro, o caos e a confusão que têm prejudicado a atual resposta. Com a experiência internacional da IFRC, estamos prontos para trazer e aplicar nosso conhecimento, para tornar um tratado como esse não apenas poderoso no papel, mas transformador na realidade.

As opiniões expressas neste artigo são exclusivamente do autor e não refletem necessariamente a posição de SWI swissinfo.ch. Este artigo foi publicado pela primeira vez em 15 de abril no Geneva SolutionsLink externo.

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Adaptação: Clarice Dominguez

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