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Lembranças da frente suíça na Revolução Sandinista

1984. Arte e combate: Jovens milicianos se preparam para a defesa nas ilhas Solentiname, famosas pelos ateliês de pintura organizados pelo teólogo e escritor Ernesto Cardenal, ministro sandinista de Cultura. Keystone/Magnum/Larry Powell

Vencido Somoza, a Nicarágua atraiu um movimento internacionalista como não se tinha visto desde a Guerra Civil Espanhola. Mais de 800 suíços se somaram aos esforços da Revolução Sandinista para reanimar um país dilacerado por quase meio século de ditatura. Mais de três décadas depois, uma brigada suíça homenageia os que morreram.

É importante uma brigada como essa para reafirmar que a Nicarágua resiste e que a América Latina resiste”, afirma Bernard BorelLink externo, médico pediatra forjado entre os cantões de Neuchâtel e Vaud e entre as urgências de Bluefields, Manágua e Matagalpa.

Sente saudade dos dez anos na Nicarágua? “Não. Sinto ainda essa

Força para continuar acreditando que, apesar de tudo, outro mundo é possível”, responde o médico que chegou à Nicarágua em 1980, pouco depois do triunfo da Revolução SandinistaLink externo.

Sua companheira Marion HeldLink externo, mantém a mesma energia, ela que contribuiu para a vontade sandinista de levar cultura ao povo como os também brigadistas Roland Sidler e Charlotte Krebs, promotores de uma relação de irmandade entre San Marcos (Nicarágua) e Biel (Suíça).

Antes de partirem para a Nicarágua para participar da Brigada 30 Anos, Homenagem e Solidariedade, os dois casais falam para swissinfo.ch suas lembranças daqueles anos em que o país empunhava o arado para reconstruir-se, sem soltar o rifle para defender-se da onda contrarrevolucionária ‘Made in USA’.

Charlotte Krebs (assistente social) e Roland Sidler (outrora professor, carpinteiro e sindicalista), regressaram à Suíça sem deixar a Nicarágua. Promoveram a irmandade entre Biel e San Marcos há quase 30 anos. cortesia

Revolução pluralista

Meia centena de cidadãos suíços, membros de associações, irmandades, sindicatos e ONG integram a Brigada que viaja este mês para a Nicarágua.

O objetivo é homenagear os que morreram durante a Revolução Sandinista e a ofensiva da Contra, tanto internacionalistas suíços e europeus, como vítimas nicaraguenses.

A brigada viaja por ocasião do 30° aniversário dos assassinatos pela Contra do suíço Maurice Demierre, juntamente com cinco campesinas nicaraguenses (16.02), e de seu compatriota Yvan Leyvraz, o francês Joël Fieux, o alemão Berndt Koberstein e os técnicos locais William Blandón e Mario Acevedo (28.07).

“Me fascinou a ideia de colaborar em um país em que tudo era possível”, recorda Roland Sidler. “Havia uma enorme democracia participativa. Governo, povo, intelectuais, ideólogos, pastores, todo mundo trabalhava para alfabetizar a população, dar teto, saúde, fazer uma reforma agrária”.

Oriundo de Courtelary (Berna), o outrora professor de matemática e física voltou às aulas, mas não como professor. Fez um curso de espanhol urgente na Missão Católica Espanhola e viajou para Manágua em 1986 com um grupo de dez militantes de esquerda que, como ele, queriam unir-se a essa revolução destinada a restituir ao povo seu direito a uma vida digna.

“Trabalhamos na colheita do café. Era a primeira vez que víamos um cafezal. Nos disseram: ’peguem os grãos vermelhos’, mas um do grupo era daltônico”. O riso precede outra anedota. “Teve uma espécie de concurso para ver quem tinha o melhor rendimento e uma mulher nicaraguense colheu mais do que nós dez juntos”.

Mas, de sua parte, o também sindicalista e carpinteiro colaborou logo na construção de um centro recreativo comunitário em San Marcos e na fundação da uma irmandade entre essa cidade e Biel.

Laços permanentes

“A ideia era criar laços permanentes”, acrescenta Charlotte. “Houve outras iniciativas, porém muitas morreram com a derrota sandinista em 1990. Nós seguimos em frente. Ali estava essa gente que conhecíamos e que continuava a reconstrução do país. Tínhamos que apoiá-los ainda mais naqueles momentos de incerteza”.

Charlotte e Roland viveram em uma família na qual a assistente social de Genebra a lavar e corar roupa, a reconhecer um terremoto e a entender que os nicaraguenses viviam intensamente cada dia porque o amanhã podia ser somente uma mera possibilidade.

Para Bernard Borel (médico e deputado) e sua companheira, Marion Held (artista) as vivências na Nicarágua, onde contribuíram nas brigadas médicas e la socialização cutural, constituíram uma escola de vida. cortesia

Socialização da cultura

Marion e Bernard chegaram a Manágua como membros da ONG GVOM, procedentes de Neuchâtel, em 1980, um ano depois do triunfo sandinista. Ele com seu diploma de médico, ela com seu da Escola de Teatro Jacques LecoqLink externo. Em pouco tempo o médico estava incorporado ao Ministério da Saúde e sua companheira ao da Cultura.

A tarefa de Marion consistia em capacitar instrutores e participar no resgate e difusão da cultura nacional.

“Antes da Revolução havia somente o elenco do Teatro Nacional, para os ricos”, narra Marion. Com a conquista sandinista “muita gente (grupos de mulheres, gente do exército, estudantes). Todos queriam fazer teatro, mas também poesia, dança

A população combinava suas tarefas de colheita de café e de algodão com suas atividades artísticas, porém o recrudescimento da contraofensiva fez com que muitos grupos foram extintos porque os jovens tinham que ir para a linha de frente.

Marion criou então o teatro infantil Triquitraque que apresentava obras em parques e bairros e trabalhou também com cegos através de uma metodologia especial para que pudessem entrar em cena. Entre as peças, fala daquela em que um ator provoca a hilaridade queixando-se: “Este bairro está tão mal iluminado. No se vê nada”. 

Esse espírito festivo e a capacidade crítica a encantavam. “É algo que nunca vi en otra lugar”. Marion considera “uma sorte incrível” sua experiência na Nicarágua.

Escola de vida

É um ponto de vista compartilhado por seu companheiro.”Foi tão impactante para mim que influenciou tudo o que fiz e faço”. Médico e militante político (Partido Operário Popular – POP), Bernard Borel especializou-se em pediatria (Manágua e Lausanne). Agora instalado em Aigle (Vaud), impulsiona uma Pediatría SocialLink externo não alheia a suas experiências dos temos de brigadista sanitário.

“Era bonito ver a mobilização social durante as campanhas de vacinação ou de limpeza para prevenir a malária e a dengue”. Como eram poucos os recursos, os brigadistas instruíam promotores comunais e os visitavam todo mês para que pudessem detectar e tratar as doenças mais comuns, o que ajudou muito a resolver problemas menores.

O médico evoca suas consultas em escolas, na parte de traz das igrejas ou nas casas. O curioso apelido que os pacientes colocaram de Dr. Pildora, porque evitava as injeções. O pasmo dos primeiros tempos quando lhe falavam de “dores de cérebro” e “retorções de barriga”. A generosidade das pessoas que o fazia voltar para casa carregado de frutas nos dias de consulta.

“Em dez anos a mortalidade infantil foi reduzida pela metade, Foi Tremendo. Não é que melhorou muito o status das pessoas. No começo da revolução eram pobres e uma década depois continuavam sendo pobres, porém sabiam um pouquinho mais como cuidar de seus filhos e tinham gente por perto para atendê-los”.

Nicarágua hoje

Bernard Borel: “Já não é a revolução com que sonhamos aos 25 anos, mas é um governo que beneficia o povo mais do que fez a oposição. Cortaram as asas da Revolução Sandinista com a impulsão da guerra interna (contrarrevolução)”.   

“En 1990 la gente no votó por el FSLN porque era la única manera de poner fin a la guerra. Para volver al poder en 2007, el FSLN tuvo que hacer concesiones, incluida la prohibición del aborto”.

Roland Sidler: ““O governo de Daniel Ortega hoje é muito diferente daquele dos anos 80. Não há participação popular e a cúpula decide tudo. No entanto, a situação das pessoas melhorou em relação aos governos neoliberais de 1990 a 2007”.

Charlotte Krebs: É lamentável a decisão de proibir o aborto. Muitas mulheres participaram da luta e agora lhes negam o dereito de decidir sobre seu corpo.

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Adaptação: Claudinê Gonçalves

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