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Prisão em 2ª instância também é exceção na Suíça

Sala com toga de juíz
Uma sala do Tribunal Regional de Saane, no cantão de Friburgo. © Keystone / Anthony Anex

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) pelo fim da prisão em 2ª instância teve como consequência a soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Hoje a questão é debatida pelo Congresso brasileiro. E como funciona a 2ª instância na Suíça e quais possibilidades de recursos? Dois juristas respondem. 

A questão da prisão em 2ª instância está sendo amplamente discutida no Brasil. Uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) já foi instalada na quarta-feira (04 de dezembro) na Câmara dos Deputados e no Senado há um movimento intenso para que ela seja aprovada na Comissão de Constituição e Justiça até o final do ano.

A BBC Brasil publicou há poucoLink externo um artigo, onde compara os sistemas judiciários do Brasil com os do EUA e vários países europeus. Nestes, a prisão em 2ª instancia também ocorre, mas geralmente, porque os condenados aceitam acordos para se declarar culpados para obter descontos nas suas penas. Ou também porque há menos possibilidades de recursos (três instâncias, como é o caso da Alemanha).

Na Suíça o sistema também reconhece as três instâncias na JustiçaLink externo. Os acusados respondem em liberdade aos processos, mas há casos em que podem ser presos. O regime de progressão de pena permite também mudar o regime prisional através de benefícios. Porém grande parte das decisões judiciais já são aceitas em primeira instância. É o que explicam dois juristas.

Fabian MeierLink externo – advogado no escritório de advocacia Am Neuhausplatz-Recht.ch e docente na Universidade de Friburgo.

Martin KilliasLink externo é consultor e professor aposentado de direito e criminologia das universidades de Lausanne e Zurique.

swissinfo.ch: Se uma pessoa cometer um crime na Suíça, a partir de quando é presa?

Fabian Meier: A prisão preventiva na Suíça está prevista no Código de Processo Penal (StPOLink externo, na sigla em alemão). Porém o princípio da liberdade está determinado no Artigo 212Link externo, parágrafo 1. Isso significa que uma pessoa acusada deve permanecer livre enquanto ocorrer o inquérito (até começar a cumprir a pena, se condenada). Em determinadas circunstâncias há exceções. Vamos a elas.

A prisão provisória pode ser aplicada em caso de um flagrante de crime ou delito. Também se há um mandato de busca e apreensão contra a pessoa. Também em casos em que o suspeito se recusa a divulgar os dados pessoais, ou não vive na Suíça e não oferecer garantias de que irá pagar uma multa esperada. E, finalmente, nos casos em que é necessário impedir que essa pessoa cometa outras violações contra a lei (Art. 217Link externo).

Uma detenção provisória também pode ser realizada por civis na Suíça se alguém for apanhado em flagrante delito ou contravenção, mas apenas se a assistência policial não puder ser obtida a tempo (Art. 218Link externo).

Após a detenção feita pela polícia, a pessoa detida deve ser liberada após 24 horas ou ser posta em prisão preventiva através de uma decisão do Ministério Público.

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Drei Richter, ein Gerichtsschreiber und der Beschuldigte

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Assim funciona um tribunal suíço

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swissinfo.ch: Quando se aplica a prisão preventiva? 

F.M.: Na Suíça, a prisão preventiva é ordenada pelo tribunal se houver uma suspeita urgente da infração e se um ou mais dos seguintes motivos de detenção como estipulado no artigo 221Link externo:

– Risco de fuga, o que ocorre geralmente quando o suspeito é um cidadão estrangeiro. No entanto, isso também pode ser aplicado para os cidadãos suíços quando existe a possibilidade de evasão no país.

– Risco de eliminação de provas. Essa justificação à prisão é dada se a pessoa presa puder destruir ou alterar provas, intimidar testemunhas ou coordenar declarações com outros participantes do crime.

– O perigo de reincidência existe se houver sido cometido um crime grave que ponha consideravelmente em perigo a segurança de terceiros, se já foram cometidos crimes semelhantes no passado. Os crimes anteriores podem ter ocorrido através de precedentes, ou ter ocorrido durante os inquéritos.

No entanto, a prisão preventiva é subsidiária. Isso significa que, se outras medidas tiverem o mesmo efeito, elas devem ser decretadas. As medidas possíveis incluem a monitorização eletrônica, exames regulares de sangue e urina ou o confisco de passaportes e identidade.

A prisão preventiva só pode ser decretada por um período limitado. Decorrido o prazo, o Ministério Público deve solicitar uma prorrogação ao tribunal, onde a defesa pode se pronunciar. O tribunal examina então se as condições para a prisão preventiva ainda estão sendo atendidas. Se a pena for prorrogada várias vezes, verifica-se também se o período de detenção preventiva não durou quase tanto tempo como a pena prevista. Mesmo assim, a prisão preventiva teria de ser suspensa.

swissinfo.ch: Um réu pode esperar em liberdade até que um tribunal possa chegar a uma decisão?

F.M.: Na maioria dos casos, a pessoa acusada espera em liberdade pela condenação, uma vez que a prisão preventiva só pode ser utilizada como último recurso. Isto também está previsto na lei (art. 212Link externo). A maioria dos acusados não é presa. Como expliquei, a prisão preventiva só é ordenada nas condições mencionadas acima.

swissinfo.ch: Como recorrer a uma pena de prisão na Suíça? É possível fazê-lo contra uma decisão de primeira instância? Há diferenças se o caso é civil ou criminal?

F.M.: No cantão de Berna, os tribunais de primeira instância são os tribunais regionais. A instância superior é o Tribunal Superior do Cantão de Berna. O recurso contra uma decisão em primeira instância deve feita no prazo de 10 dias junto ao tribunal que proferiu a decisão (artigo 399). O tribunal de primeira instância tem então até dois meses para apresentar suas razões por escrito. Depois que isso é feito, os advogados de defesa têm um prazo de 20 dias para informar ao Tribunal Superior que parte da condenação está sendo questionada.

Quantos condenados e presos na Suíça?

No que diz respeito às condenações de adultos, um total de 107.085 condenações por infração ou crime contra o Código Penal Suíço (StGB), Lei de Trânsito (SVGLink externo), a Lei dos Entorpecentes (BetmGLink externo) ou o Código Penal Militar (MstGLink externo) foram pronunciadas em 2018. Em comparação com 2017, em que foram proferidas 107.987 condenações, não ocorreu uma alteração significativa.

Em 2018, a maioria das condenações diziam respeito a infrações contra a Lei do Trânsito (57.023). No caso de condenações através do Código Penal (33 724), pouco menos da metade (44%) foram crimes contra a propriedade.

Segundo as mais recentes estátisticasLink externo (situação em 14.03.2019), atualmente 6.943 cumprem penas em penitenciárias na Suíça.

Fonte: Departamento Federal de EstatísticasLink externo

O Tribunal Superior analisa então a decisão da primeira instância e o motivo de discordância levantado pela defesa. Então julga segundo seus próprios critérios. Ele tem poder de confirmar a decisão da primeira instância ou revisá-la: modificando a pena, aplicando novas medidas e decidindo nova repartição dos custos do processo. Depois de passar pela segunda instância, uma decisão judicial pode então ser levada ao Tribunal Federal (terceira instância) como “recurso em matéria penal”.

swissinfo.ch: A prisão é permitida enquanto a pessoa ainda entrou com um recurso contra a pena?

F.M.: Se os requisitos explicados acima ainda estiverem sendo atendidos durante o processo de recurso, a pessoa permanece detida enquanto o processo estiver rolando. A partir do momento em que o Ministério Público apresenta queixa ao tribunal, a detenção é agora denominada “prisão de segurança” e não mais “prisão preventiva”.

swissinfo.ch: Também é possível na Suíça se opor a uma decisão de segunda instância? Custa alguma coisa? E se a pessoa não tiver recursos? Quem decide na terceira instância? O Supremo Tribunal Federal?

F.M.: Sim, a terceira e última instância é o Tribunal FederalLink externo. É possível recorrer em questões penais contra uma decisão de segunda instância (Art. 78Link externo). Se a pessoa não tiver recursos para pagar o advogado, ela pode solicitar um defensor público (gratuito). Nos casos graves, o acusado precisa ter um advogado (defesa necessária nos termos do artigo 130Link externo).

swissinfo.ch: Execução: em que momento um condenado pode ser libertado prematuramente da prisão?

F.M.: No caso de boa conduta, uma pessoa será libertada da prisão de acordo com o Artigo 86Link externo após o cumprimento de dois terços da pena.

swissinfo.ch: A Suíça também tem o regime da progressão de pena, ou seja, um instrumento legal para restabelecer de forma progressiva a liberdade pessoal do condenado até sua libertação definitiva?

F.M.: Sim, existe um instrumento para restabelecer essa liberdade. Ela ocorre através de saídas sem acompanhamento, férias, residência externa ou exercício externo de um trabalho remunerado sob supervisão das autoridades penitenciárias, tornozeleira eletrônica e, finalmente, a liberdade condicional.

swissinfo.ch: Uma pena pode prescrever na Suíça enquanto o condenado estiver com recursos pendentes?

Martin Killias: O problema das penas que prescrevem enquanto há recursos não acontece na Suíça. Após uma condenação em 1ª instância, o direito de prescrição deixa de ser aplicável.

swissinfo.ch: Por que a Suíça não tem o problema de superlotação e excesso de presos provisórios nas prisões como o Brasil?

M.K.: O número elevado de detentos em prisões brasileiras deve-se provavelmente ao fato de ocorrerem muitos assassinatos no Brasil (como na América Latina em geral), e assassinos recebem sentenças longas em todos os lugares. A propósito, na América Latina em geral as penas são muito mais longas do que na Suíça, o que também explica o elevado número de prisioneiros.

swissinfo.ch: Críticos do sistema judiciário no Brasil afirmam que este oferece recursos demais aos réus, prolongando processos demasiadamente e favorecendo a impunidade. Além disso a justiça é lenta: segundo números de 2018Link externo, há 80 milhões de processos em andamento no Brasil. A proporção de processos judiciais no país é cinco vezes superior à da Alemanha, Suécia, Áustria e Israel. O senhor concordaria com o argumento de que a prisão em segunda instância no Brasil tornaria o país mais justo?

M.K.: Segundo a legislação suíça, enquanto ainda houver recursos pendentes contra uma sentença, a pessoa não pode ser detida provisoriamente a não ser com algumas exceções. Isso seria uma violação flagrante dos direitos humanos. Estou chocado como isso pôde ser praticado no Brasil.

A execução antecipada das penas só existe nos casos em que o próprio condenado a solicita: geralmente porque o processo (em primeira instância) demora mais tempo e o condenado pretende “utilizar” o tempo. Se a pessoa tem certeza da sua condenação, faz sentido começar a cumprir a pena o mais rapidamente possível, ao invés da prisão preventiva

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Cela em uma prisão suíça.

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Porque as penas na Suíça são tão brandas

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