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Um ano presa na Suíça por transportar um quilo de cocaína na mala

Avião FAB
Keystone / Johnson Barros

A polêmica da droga em avião presidencial traz espaço para discussão sobre temas como os perigos de favores ingênuos, como transportar bagagens alheias ou atenção às malas em aeroportos

A coluna de hoje é dedicada a algumas reflexões no momento em que se discute os 39 quilos de cocaína encontrados em posse de um integrante da comitiva presidencial. A história da paulistana Zoraide Leal*, que viveu no ano de 2015 a pior situação de sua vida, será usada como pano de fundo para alguns tipos de alerta. A brasileira foi presa no aeroporto de Zurique por tráfico internacional por transportar um pouco mais de um quilo da droga, ficou presa por um ano e teve a entrada proibida na área Schengen por dez anos.

Artigo do blog “Suíça de portas abertas” da jornalista Liliana Tinoco Baeckert.

O assunto é atual e de muita importância para quem viaja para o exterior. Em primeiro lugar, atenção com gentilezas do tipo transporte de malas ou produtos, mesmo que para conhecidos. Em segundo, não deixem que a ingenuidade do deslumbre com boas aparências faça baixar a guarda e não desconfiar de mais nada. O seu lindo namorado pode preparar uma cilada. Atenção também com suas malas em aeroportos. A imprensaLink externo tem notificado casos em que a etiqueta da mala é trocada para transporte de drogas por passageiros inocentes.

E, em terceiro, embora não haja limitação de quantidade específifica, porte de drogas acima do considerado para uso próprio é taxado na Suíça como tráfico, de acordo com o Departamento de Segurança da Cidade de ZuriqueLink externo. E outra questão curiosa: se um quilo teve como consequência um ano de detenção, imaginem quantidades maiores.

A história de Zoraide

De acordo com a brasileira, ela viajou a convite do na época namorado nigeriano para a Espanha, com uma mala emprestada por ele. Ao fazer conexão na Suíça, foi interceptada pela polícia por carregar 1 quilo e 480 gramas de cocaína prensada, escondida entre o forro e a parede da mala.

“Os policiais me explicaram que a droga que eu havia transportado tinha 96% de pureza e que dali abasteceria o mercado europeu, destruindo talvez muitas centenas de famílias. Eles repetiam o tempo todo: a Senhora sabia que está contribuindo para acabar com muitas famílias?”, conta aos prantos.

Após 12 horas de voo entre São Paulo e Suíça, Zoraide estava pronta para descer em Zurique e pegar a conexão para Madri. Ansiosa e sem falar uma palavra de alemão ou inglês, é interceptada pela polícia suíça ao sair do avião.

Primeira viagem ao exterior

Tudo começou porque o namorado de Zoraide, com o nome fictício de Tom, descrito por ela por um nigeriano lindo e charmoso, a convidou para fazer sua primeira viagem ao exterior. Um dia, Zoraide o ouviu conversando com uma mulher, que ele dizia ser um amiga. Nessa conversa, Tom tratava da viagem à Espanha, que ela faria para resolver um problema para ele. Enciumada e certa de que queria aproveitar ao máximo as maravilhas que a vida pode conceder, ela o questionou sobre o porquê da amiga ganhar um prêmio como aquele, se ela estava ali disponível e nunca tinha viajado para outro continente.

Tom concordou. Mandou comprar as passagens São Paulo-Zurique-Madri, reservou um hotel cinco estrelas para ela e a orientou: “ao chegar, uma pessoa da minha confiança irá te buscar no aeroporto e levar você ao hotel. De lá, você busca esse material para mim. Você vai poder aproveitar uns dias em Madri, e depois volta para São Paulo”. Entre as orientações, a de só levar roupas lindas, as melhores que ela tivesse.

Elegante, Tom deu à Zoraide uma mala lilás, de material super leve, para que ela viajasse com muito estilo. Mas o apetrecho tinha algo estranho: cheirava a naftalina. Mal ela sabia que a partir dali, o castelo de areia ruiria.

Narcotraficante internacional

As peças do quebra-cabeça começaram a se encaixar. Ficou claro de onde aquele homem super alto, educadíssimo e charmoso, tirava dinheiro. Tom só usava roupa de marca, pagava os restaurantes caros e da moda. Nesse momento, ela entendeu como arcava com os presentes caros e a razão de precisar de pessoas que fossem à Europa para ele.

Com o avanço das investigações, soube-se que ele fugiu, o seu carro foi descoberto em posse de um amigo. Foram encontradas armas, roupa de mulher e balança de alta precisão. Tom, aquele homem que ostentava carro importado, apartamento e roupas de luxo, era um narcotraficante procurado pela polícia internacional. Ela tinha sido seduzida, cooptada e feito de mula. O cheiro da naftalina da mala ficou óbvio: era para despistar caso cães farejadores entrassem em ação.

Como era ré primária, Zoraide pegou 36 meses de cadeia, mas ficou somente um ano por bom comportamento e diminuição de pena por trabalho na penitenciária em Berna, capital suíça. Mesmo alegando inocência, não conseguiu comprová-la. Sofre muito por isso, principalmente porque teve sua entrada na Europa barrada por dez anos e ficado com a ficha suja.

Ela quis contar a sua história para alertar outras brasileiras do perigo de se deslumbrar com homens estrangeiros. Ela quer também falar sobre a importância de cuidar muito do que se traz na mala, principalmente em viagens de avião.

“Eu só gostaria de tirar esse crime que não cometi do meu registro. Mulher não tem que se prender a homem e a coisas materiais. Se você não corre atrás dos seus ideais, ninguém vai te dar nada de graça. Já refiz a minha vida, mas choro até hoje”, desabafa Zoraide, que diz que ficou muito animada com o padrão de vida que Tom a oferecia. “Sou muito vaidosa, gosto de coisas caras e de cuidar da minha beleza. Fui ingênua”, conta.  

“Por incrível que pareça, esses doze meses que passei na prisão feminina em Berna foram bons. Penitenciária na Suíça é quase um hotel, só que sem permissão para sair. Logo que fui presa, passeis dias horríveis em uma prisão em Zurique, não sei dizer o nome. Foram cinco dias sem tomar banho, chorando sem parar.

Nesse período, fui acolhida pelo Consulado do Brasil. Um funcionário muito atencioso foi conversar comigo. Foi ele que avisou minha família em São Paulo. Ele me aconselhou a não aceitar a extradição para o Brasil de jeito nenhum. Por razões óbvias, era melhor cumprir a pena na Suíça, que conheci com o tempo.

Na penitenciária em Berna, eu tinha um quarto só para mim, com televisão e som. Eu podia passear no parque interno, que era muito bonito. A comida era sempre saborosa. Pela manhã, comíamos nutella, geléia, pães. Havia um pequeno supermercado e igreja no complexo. Eu conseguia comprar até guaraná para matar as saudades. Tinha acesso a tratamento médico e psicológico, me era inclusive fornecido antidepressivo.

O que demarcava que eu vivia em uma penitenciária era o fato de que havia horário para tudo. A minha rotina era bem definida. Durante a semana, eu acordava às 7 horas e começava a jornada de trabalho às 8 horas. Tinha 15 minutos de pausa pela manhã. Ao meio-dia, almoçava junto com as outras detentas. Às 13 horas, voltava a trabalhar. O turno terminava às 16 horas. Às sextas feiras, o horário de trabalho terminava após o almoço. As tarefas que eu realizava eram, em geral, colar envelopes para empresas e embalar brindes para festas corporativas. Muitos bancos enviavam esses materiais para os presídios, assim tínhamos trabalho.

Fazíamos até churrasco aos domingos, comprávamos carne com o dinheiro que ganhávamos com esses trabalhos. Eu fiz amizades. Não havia brigas, todas se davam muito bem. Fiz amizade com outras mulheres que faziam tráfico de drogas, inclusive na mesma situação que eu, enganadas por homens. Mas conheci uma brasileira que traficava mesmo e não escondia. No dia em que fui embora, fizeram festa de despedida para mim.

Minha mãe me enviou um alicate e eu ganhava um dinheiro extra fazendo a unha de outras detentas. Meu quarto lotava de mulheres querendo se embelezar.

É interessante saber que alicate era permitido, mas chapinha para alisar cabelo e maquiagem não eram. Mas eu não queria ficar pálida. Eu molhava o lápis cera preto e vermelho, que ganhávamos para pintar mandalas, e passava nos lábios e nos olhos.

O que me deixava muito triste era sair no camburão algemada, em geral para as audiências. Eu não vi quase nada da Suíça, só o que consegui enxergar do buraquinho da película escura que cobria o vidro.

O trabalho e bom comportamento reduziram minha pena de 36 para 12 meses. Com o dinheiro que ganhei trabalhando na prisão, consegui juntar 20 mil reais. Cerca de 60% do montante era guardado para a presa disponibilizar ao fim do período. Foi uma boa ajuda para recomeçar minha vida no Brasil.”

*O nome Zoraide Leal é fictício, a pedido da entrevistada

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