A dificuldade dos brasileiros com os dialetos suíços
A sensação de exclusão, por quem ainda luta para entender, e o uso da língua como poder, pelos que cresceram no país e puderam aprender.
Era uma segunda de sol e calor quando abro displicentemente minha caixa de e-mails e leio uma mensagem de uma brasileira insatisfeita. Como sou estrangeira e também tenho certa dificuldade para entender o dialeto suíço-alemão, não foi surpresa para mim saber de semelhante relato. A queixa nos acompanha em conversas informais. Aquele texto, no entanto, me marcou porque foi diretamente encaminhado a mim. Era quase que como um grito de socorro, um pedido para que o assunto fosse abordado na swissinfo.ch.
Artigo do blog “Suíça de portas abertas” da jornalista Liliana Tinoco Baeckert.
– Eu gostaria de saber o dialeto suíço-alemão para poder publicar um anúncio dizendo que estrangeiros vão à escola aprender alemão, e não dialeto. Aventurar-se pelo idioma já é suficientemente difícil para termos que ouvir críticas dos locais sobre o fato de não entendermos tudo que é dito na língua informal deles, a chamada “Mundart”. Em vez de unir as pessoas, que seria o propósito de um idioma, o dialeto promove separação, em alguns casos. Me sinto excluída, à margem, simplesmente por não compartilhar do mesmo conhecimento linguístico que os nascidos ou crescidos nesse país. Será que não daria para trazer essa discussão no Suíça de Portas Abertas? Gostaria de saber o porquê de tanta discriminação com quem não domina esses meandros do idioma”.
Explicando o dialeto – Para quem não vive na Suíça e ainda não está familiarizado com o conceito de dialeto, vale uma explicação rápida. De acordo com a Sociolinguística, ramo que estuda as relações entre língua e fala, trata-se de uma variedade de uma língua própria de uma região ou território e está relacionado com as variações linguísticas encontradas na fala de determinados grupos sociais.
Colcha de retalhos – A Suíça, ao contrário do Brasil, tem quatro idiomas oficiais. De acordo com o site oficial de informações e turismo My SwitzerlandLink externo, o Alemão é falado por 63,5% da população, o francês por 22,5%, o italiano por 8.1% e o reto-romano 0.5%. Os próprios suíços encontraram uma expressão para explicar a própria barreira cultural que vivem em seu país: o Röstigraben, que significa a diferença na mentalidade de suíços franceses e alemães. A fenda geográfica, que separa duas regiões por um rio, também divide dois mundos e representa também a fronteira linguística e cultural.
E dentro dessa colcha de retalhos, há ainda os vários dialetos, que variam de região para região. Na prática, o migrante chega ao país, aprende uma língua na escola. Quando vai se comunicar na rua, no dia a dia, ouve outra coisa.
E dentro da parte alemã, existem inúmeros dialetos germânicosLink externo. Quantos? De acordo com a professora Elvira Glaser, do Centro de Competência Linguística da Universidade de ZuriqueLink externo, infelizmente não há uma resposta clara para essa pergunta frequente.
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O suíço-alemão da Pensilvânia: uma língua que persistiu
Se fica difícil para eles, imagina para os inúmeros estrangeiros que vivem no país (cerca de 25% da população), que contribuem para a diversidade linguística. Entrevistado para esse artigo, um suíço de Genebra (cantão de língua francesa) que vive na parte alemã relatou: “eu também não entendo os dialetos. Quando me perguntam, em uma reunião formal, se pode-se falar suíço ou alemão, eu respondo: francês, por favor, afinal de contas sou helvético e minha língua não é germânica. Falo na brincadeira, mas só para lembrar do idioma formal, e que nem todo mundo tem obrigação de entender”. Mas é importante destacar: faz parte da cultura nacional e é preciso ser respeitado, assim como qualquer manifestação cultural de cada grupo.
Respeito – Voltando ao desabafo da leitora: a reclamação é a formalização de uma queixa frequente de diversos estrangeiros que vivem no país, principalmente os de língua alemã, como os austríacos e alemães. E como do entrevistado de Genebra e dos suíços dos cantões francês e italiano.
Preconceito – Os expatriados alemães na Suíça dizem que são discriminados. No geral, cerca de um terço se sentiu mal recebido. As reclamações são confirmadas por estudo realizado com o apoio da Universidade de St. Gallen, cujos pesquisadores entrevistaram mil expatriados alemães para descobrir como eles são impactados.
Embora o estudo não explicite que eles sejam julgados por não falarem o dialeto, o relatório afirma algo que não dá para ignorar: a nacionalidade é facilmente reconhecida pelo sotaque, em especial pelos suíços de língua alemã que usam o dialeto no discurso cotidiano, o que é marcadamente diferente do alemão padrão.
O estudo da universidade disse que muitos expatriados alemães ajustam seu comportamento e até mesmo seu modo de falar para não se destacarem. Eles representam o segundo maior grupo de imigrantes no país, seguindo de perto os italianos.
À margem – O problema da leitora é compartilhado por Livia, advogada paulistana que vive no país há dez anos, e que quase desistiu de um curso de atualização profissional por ter que pedir, o tempo todo, para que as aulas fossem em alemão. “Eu paguei o curso, que não foi barato, e tinha que insistir para que todos falassem a língua formal. Mesmo explicando a minha dificuldade, ainda fui questionada pelo professor e colegas, que não entendiam o porquê de eles terem que se comunicar em uma língua que não é deles por minha causa. Tive vontade de ir embora, mas me lembrei do quanto custou e resolvi lutar pelo meu direito de assistir a aula em um idioma no qual eu entendesse. Se o Instituto tivesse anunciado que as aulas seriam em dialeto, daria razão aos meus colegas. Mas não foi o caso, então não acho justo”, conta.
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Superando barreiras linguísticas na Suíça
Infelizmente essas pessoas não estão sozinhas, só engrossam um coro de migrantes que não conseguem adentrar profundamente no mundo dos suíços. “Tentamos fazer amizade, conversar, entender a língua. Mas alguns deles simplesmente não querem ajustar o idioma. Fica muito difícil então manter o diálogo. O mais estranho de tudo é que eu não estou pedindo a ninguém para falar português ou inglês, mas o idioma oficial do país deles”, explica Manoel, que já teve atendimento recusado em uma loja porque a atendente se recusou a falar alemão. “Ela preferiu me atender em inglês”, se diverte o engenheiro português, que vive no país há 16 anos, mas ainda não domina as variações.
Língua: ponte ou muro – Se a língua é instrumento para comunicação, pode funcionar também como ferramenta de separatismo e diferenciação? O que querem os suíços, ou todos aqueles que se recusam a falar uma de suas línguas oficiais, mesmo que um integrante não entenda? Difícil explicar rapidamente. A questão é complexa e tem várias nuances. Vale inclusive outros artigos sobre o assunto. Não sabemos exatamente o que eles querem com essa atitude, mas alguns sinais dão caminhos para compreensão.
Assim como nos jargões profissionais, falar uma gíria ou um dialeto é sinônimo de pertencimento a um grupo; comportamento normal entre os humanos, seres sociais. É, portanto, ferramenta de poder. É importante mencionar também as hierarquias dos grupos sociais e consequentemente sotaques, dialetos e línguas. Assim como alguns cariocas e paulistas riem dos sotaques de outras regiões do Brasil, alguns suíços não querem ou não se interessam em adaptar a língua para a comunicação com pessoas que não lhes interessam ou que não pertençam ao seu grupo de semelhantes. E de novo a hierarquia da língua e social: migrantes ocupam posição de vulnerabilidade.
A BBC trouxe, em maio de 2017, um artigo interessanteLink externo intitulado “O seu sotaque te faz soar mais inteligente?”. No texto, o leitor pode se inteirar sobre aspectos interessantes de preconceitos quanto ao uso da língua. O artigo traz a informação de que estudos mostram que pode levar apenas 30 milissegundos de fala – o suficiente para dizer “olá” – para que os ouvintes identifiquem a origem étnica ou cultural de uma pessoa e façam julgamentos rápidos sobre ela.
Instrumento de poder – Graças a esse tipo de preconceito, os sotaques podem ser um atalho que nos permite “traçar um perfil linguístico” com base nos estereótipos de suas origens regionais, classe, gênero ou etnia. Mesmo sem perceber, podemos usar isso para discriminar. Mais uma triste prova do uso da língua como ferramenta de divisão, exclusão e de barreira. Mas fica a dica: preste mais atenção ao que o seu interlocutor quer dizer, independentemente da língua e do sotaque que ele utiliza ou tem. E continue seus estudos de alemão. Mesmo que ainda não domine o dialeto, o conhecimento formal da língua ajudará no entendimento das variações do idioma dos locais.
E se alguém te criticar por não entender o dialeto, siga o conselho de uma criança de 13 anos, filho de brasileiros nascido na Suíça. “Fala assim: você não sabe falar o alemão, que vergonha”.
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