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Cruz Vermelha promete mais rigor após fraude em campanha contra o Ebola

A Liberian man walks pass an Ebola awareness mural in downtown Monrovia, Liberia in 2015
Um liberiano passa por um mural de conscientização sobre o Ebola na capital da Libéria, Monróvia, em 2015 Keystone

A notícia de que a Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (IFRC) revelou fraudes em sua operação no combate ao Ebola na África Ocidental causou surpresa e consternação.

A declaração foi divulgada com curiosa discrição no site da IFRC no dia 20 de outubro. Para encontrá-la, os leitores tinham que clicar em “Quem Somos”, depois em “A IFRC”, em seguida em “Desempenho e Responsabilidade”, então em “Auditoria Interna e Investigações”, e finalmente, em letras miúdas à esquerda, clicar em “Declaração da IFRC sobre a fraude nas operações do Ebola”.

Os cínicos poderiam suspeitar que a Cruz Vermelha esperava que ninguém notasse esta declaração, entretanto observadores benevolentes repararam que assim que a história vazou, a equipe da Cruz Vermelha e o seu Secretário-Geral Elhadj As Sy, se colocaram à disposição da imprensa.

Ele contou aos jornalistas que a Cruz Vermelha estava descontente e furiosa com as perdas que poderiam chegar a 6 milhões de francos suíços ou ainda mais, nos três países mais afetados pelo Ebola: Guiné, Libéria e Serra Leoa.

Aos olhos dos doadores – países membros, empresas e cidadãos –, essas perdas poderiam ser muito prejudiciais. A Cruz Vermelha é uma das agências de assistência humanitária mais confiáveis do mundo. Onde quer que haja desastres, sejam inundações, escassez de alimentos ou doenças, os primeiros socorristas – voluntários da Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho –, estão lá para ajudar.

De mocinhos a vilões?

Durante a crise do Ebola, os voluntários da Cruz Vermelha foram celebrados por seus feitos heroicos, já que arriscaram suas próprias vidas para salvar outras durante a epidemia de uma doença em que poucos sobrevivem. Portanto, foi decepcionante apurar que alguns dos membros locais na Libéria, na Guiné e em Serra Leoa aparentemente desviaram o dinheiro dos doadores para uso pessoal.

No entanto, antes de concluir que fazer uma doação para a Cruz Vermelha é um desperdício de dinheiro, vale a pena refletir sobre as complexidades de se realizar um trabalho humanitário em zonas de desastre e conflito.

De modo geral, as agências humanitárias atuam nos lugares mais pobres, mais carentes e mais perigosos do planeta. Muito frequentemente – como ocorrido nos episódios do tsunami na Ásia em 2004 ou do terremoto haitiano em 2010 –, a infraestrutura, como a dos bancos, está em ruínas. O dinheiro vivo se torna a única possibilidade de transação comercial. Além disso, as agências humanitárias sempre procuram comprar produtos locais (especialmente quando se trata de alimentos) para que a economia doméstica não seja prejudicada pela enorme ajuda externa.

Esta é uma combinação de circunstâncias a qual, queira-se ou não, fornece a oportunidade para fraude e corrupção, seja sobretaxando alimentos, desviando dinheiro aqui e acolá para o próprio bolso ou nomeando falsos beneficiários para que amigos e parentes sejam favorecidos.

Em resposta às perdas financeiras na campanha contra o Ebola, a IFRC anunciou que irá aplicar medidas mais rigorosas para combater fraudes, incluindo “novos critérios de verificação e execução em todos os níveis de prevenção à fraude, limitação de gastos em dinheiro nas operações de alto risco, deslocamento precoce de auditores treinados como parte da primeira estrutura organizada em operações de emergência, treinamento obrigatório dos voluntários para prevenção de fraude, criação de uma Comissão de Auditoria e Risco do Conselho de Administração da IFRC e o estabelecimento de uma auditoria interna independente”.

Uma longa história

Essas medidas podem ajudar, mas ninguém da comunidade de ajuda humanitária acredita que a fraude possa ser totalmente eliminada. “O risco no gerenciamento desse tipo de operação chegaria a zero?”, perguntou Elhadj As Sy. “Provavelmente não, mas faremos de tudo para nos assegurar”.

Os colaboradores aprenderam por meio de amargas experiências que o extravio do dinheiro doado tem uma longa história. Na Somália, em um certo momento, se estimava que um impressionante número de 50% de toda a ajuda alimentar havia sido roubado, em parte por piratas que sequestravam navios de ajuda inteiros, por assaltos à mão armada de comboios que levavam alimentos para comunidades famintas, ou então por pequenos furtos.

Caso notório se deu com o Fundo Global de Luta Contra AIDS, Tuberculose e Malária. Em 2011, os auditores do próprio fundo descobriram que até dois terços do dinheiro para a ajuda estavam sendo desviados em algumas de suas operações. Relatos terríveis sobre a venda de medicamentos controlados no mercado negro e doações que não estavam sendo aplicadas nos projetos aprovados, mas na compra de carros ou motocicletas, chocaram os doadores. Alguns países, como a Suécia e a Alemanha, interromperam as doações até que o fundo colocasse em ordem as suas operações.

A suspensão do auxílio financeiro é o pesadelo de qualquer agência filantrópica. Significa que alguns dos programas devam ser reduzidos, ou mesmo paralisados por completo. Assim, dadas as dificuldades admitidas na administração dos recursos financeiros nas zonas afetadas, o que mais poderia ser feito para tranquilizar os doadores?

Transparência total

Judith Greenwood, Diretora Executiva da CHS Alliance, acredita que a transparência total é fundamental. “É muito importante quando uma fraude realmente acontece, que sejamos transparentes, garantindo incondicionalmente que uma ação seja tomada”.

A CHS Alliance suporta a Norma Humanitária Essencial para Qualidade e Prestação de Contas. Ela trabalha em rede servindo como elo para agências de filantropia que se uniram em torno dos nove compromissos (The Nine Commitments) que visam aperfeiçoar o trabalho humanitário. A IFRC é um de seus membros.

Greenwood crê que a declaração da IFRC sobre a fraude, as ações realizadas até o momento e a promessa de condenar os responsáveis são bons sinais. Ironicamente, o fato das agências de ajuda humanitária se tornarem mais transparentes quanto à impropriedade financeira poderia apontar que o mau uso do dinheiro está acontecendo com mais frequência, enquanto de fato, provavelmente seja o contrário.

Ainda existe um outro problema: o endurecimento das medidas de prevenção à fraude custa dinheiro, e esta despesa certamente aparecerá no orçamento administrativo da agência de ajuda humanitária, abrindo as portas para os críticos que afirmam que as organizações humanitárias têm a burocracia mais pesada.

Por essa razão ela acredita que a responsabilidade e a transparência devem se aplicar não apenas aos doadores, mas aos destinatários. Todo mundo precisa saber que o dinheiro para um projeto de ajuda não está apenas sendo bem gasto, mas que o projeto em si é benéfico.

“A responsabilidade também conta para as pessoas e as comunidades afetadas pela crise. Acredito que a combinação das duas ajudará a tranquilizar”.

No entanto, ela também afirma que por mais intensas as iniciativas das agências, eliminar totalmente o risco de corrupção pode ser impossível.

“Na prática, adotar as nossas normas padrões ajudaria a minimizar [o risco], ou melhor dizendo, prevenir, apesar de não achar que isso seja realista”.


Adaptação: Renata Bitar

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