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20 horas testando o transporte público suíço

Passageiros circulando em uma plataforma da estação ferroviária de Lausanne. Keystone

Para muitos suíços o sistema de transporte chegou aos limites: congestionamentos nas rodovias, trens lotados e atrasos constantes atormentam a vida do habitante, influenciando até o resultado dos últimos plebiscitos. Porém será que a qualidade caiu tanto assim? O repórter da swissinfo.ch fez um teste e passou vinte horas viajando através do país com os mais diferentes meios. Ao final, descobriu que o verdadeiro vilão pode ser o tempo.

É fácil se acostumar a um sistema de transporte que funciona. Na Suíça, ele é considerado por muitos especialistas como um dos melhores do mundo. Cada habitante percorre anualmente de trem, em média, 2.274 quilômetros. Já os japoneses percorrem uma distância menor – 1.912 quilômetros – mas utilizam com mais frequência o trem: 69 vezes por ano, enquanto os suíços 51. A densa rede de transportes é obra de uma política consequente de apoio ao transporte público, um dos fatores que ajudou a Suíça a se desenvolver.

Porém também há problemas. Segundo as estatísticas mais recentes, 89% dos trabalhadores (3,7 milhões de pessoas) são pendulares, ou seja, precisam sair de casa para chegar ao local de trabalho. Delas, 1,8 milhões de pessoas utilizam o carro, 590 mil vão de trem e 327 mil de ônibus.

O número de pendulares cresceu sessenta por cento desde 1998. Com esse desenvolvimento, muitos consideram que infraestrutura chegou ao limites de capacidade. Nos horários de pico os trens lotam e muitos passageiros são obrigados a viajar em pé. Nas estradas, congestionamentos intermináveis infernizam a vida do trabalhador.

No caso da Companhia Suíça de Trens (SBB, na sigla em alemão), o desafio logístico de transportar tanta gente provoca sacrifícios. No início do ano a empresa revelou que os objetivos de pontualidade não foram alcançados: apenas 87,5% dos trens de passageiros chegaram em 2012 na hora certa, enquanto que o objetivo era de 89%. Detalhe: segundo os critérios técnicos da empresa, o atraso é contado a partir dos três minutos.

Nos plebiscitos de 9 de fevereiro, um dos temas aprovados nas urnas foi a iniciativa contra a imigração em massa. Um dos argumentos mais utilizados pelos seus defensores é que a imigração crescente vivida pela Suíça nas últimas décadas sobrecarrega o sistema de transportes. Ao mesmo tempo, o outro proposta, também aceito pelo eleitor, foi o projeto de criação de um fundo especial para investir na infraestrutura de trens. 

Ao assistir os violentos protestos de rua contra a má qualidade do transporte público no Brasil, em junho do ano passado, lembrei-me que a situação é dramática em outros países. Assim pergunto-me se os transportes na Suíça estão tão ruins assim? Para testá-lo fiz um teste: passar o maior tempo possível no transporte público em apenas um dia. O trajeto escolhido foi de Berna até Évian-les-Bains, cidade francesa localizada às margens do lago de Genebra (também conhecido como Lago Léman em francês), retornando depois até o Niederhorn, uma montanha no cantão de Berna e conhecido destino turístico. Para atravessar essa área de topografia complicada, utilizo os mais diferentes meios de transporte como barcas, metrô, trens, trens de subúrbio, ônibus, cremalheiras e até teleféricos.

15:35

O trem número IC 726 sai com apenas um minuto de atraso da estação de Berna. Fora do horário de pico, há lugares de sobra para sentar. Através da janela, admiro a mudança constante de paisagens. Os vilarejos e as cidades se sucedem com longas intercalações de campos cobertos de neve e fazendas suíças, com suas típicas casas antigas de madeira, estábulos e celeiros. Um funcionário passa com um carrinho de bebidas e sanduíches. Eu peço um café. Meu iPod toca “Europa Endlos”, do grupo alemão Kraftwerk, a trilha sonora perfeita para a viagem. “…Europa sem fim. A vida é intemporal…”

16:40

Ao chegar em Lausanne, o trem já era esperado por centenas de pessoas na estação. Turistas com malas pesadas em direção ao aeroporto de Genebra se misturam com funcionários de organizações internacionais, trabalhadores e estudantes. O aplicativo da SBB no smartphone indica que preciso caminhar alguns metros até chegar à estação de metrô que me leva ao porto de Lausanne. O metrô foi construído em 1991 e tem apenas duas linhas, somando 7,8 quilômetros de extensão. Parece pouco, mas é suficiente para essa cidade tão inclinada, localizada ao longo de uma colina que termina no lago de Genebra. Ao saltar, sou recebido por um vento forte e gotas de água. Vai chover! No porto, um grupo de “transfronteiriços” – os aproximadamente 113 mil franceses que trabalham na Suíça, mas residem na França –  se forma frente a um cartaz eletrônico da companhia de navegação que faz o trajeto Lausanne-Évian-les-Bains. Ele avisa que todas as partidas estão canceladas até às últimas ordens.

Muitos franceses atravessam diariamente o Lago de Léman para trabalhar em empresas de Lausanne, na Suíça. Keystone

18:00

As águas do Lago de Genebra estão encrespadas como se fosse o final do mundo. Ondas de até dois metros batem com força no cais e balançam as barcas como se fossem de brinquedo. O céu está escurecido. Uma chuva torrencial cai sobre toda a região. A MétéoSuisse, o serviço meteorológico do país, anuncia pelo smartphone que a tempestade com risco “em grau três” tem ventos com velocidade de até 150km/h. A companhia CGN cancela todas as saídas de barcas. Aos transfronteiriços que chegam em número cada vez maior, um funcionário explica aos prantos que não tem culpa pelo problema. “Também vivo do outro lado do lago. Não podemos fazer nada. O negócio é esperar”.

20:00

Finalmente o barco recebe autorização para sair de Lausanne. As ondas continuam fortes. A água bate nos vidros e impressiona muitos passageiros. “Nunca vi algo parecido”, fala um transfronteiriço. Depois de uma hora de viagem, o barco aporta em Évian-les-Bains. Os passageiros, cansados depois de uma jornada de trabalho e as horas suplementares de espera no porto, se despedem e desaparecem nas ruas vazias da cidade, que parece só ter vida no período das férias.

07:00

No dia seguinte o barco chega pontualmente no porto. Na sua lateral, a companhia pintou um simpático bordão “A outra margem nunca esteve tão próxima”. O cais já estava repleto de passageiros. Uma vista rápida mostra muitos rostos já conhecidos da noite anterior. Eles entram e ocupam rapidamente quase todos os assentos. Alguns fazem fila no bar, onde são servidos croissants e café. Na sala inferior, quase na linha d’água, passageiros abrem os computadores ou tablets em cima das mesa e trabalham como se já estivessem no escritório. Muitos dormem e quase ninguém parece dar atenção à paisagem, com o lago de Genebra espelhando as imponentes montanhas dos Alpes franceses.

07:42

Os marinheiros pulam do barco e o prendem com fortes amarras. Ao desembarcar em Lausanne, as pessoas atravessam um parque para chegar na estação de metrô de Ouchy. “O que você está fotografando?”, pergunta agressivamente um dos passageiros. Ao explicar que se trata de uma reportagem, o francês revela que vive do outro lado da fronteira e faz todos os dias o mesmo trajeto. No barco ele aproveita para ler o jornal ou dormir. Questionado sobre a qualidade do transporte, responde laconicamente que “tudo funciona muito bem, com exceção dos dias de mau tempo”.

Conteúdo externo

08:18

O EC 37 sai na hora certa e está quase vazio. Ao olhar no relógio, lembro da reportagem de uma televisão brasileira (clicar no vídeo acima), onde o principal tema é a pontualidade dos suíços. O aplicativo da SBB indica que preciso trocar de trem na cidade de Sion, com cinco minutos para fazê-lo. Na estação, troco de plataforma através de uma passagem subterrânea e pego o pequeno trem regional R4409 até o vilarejo de Leuk. Necessito caminhar dois minutos. Ao lado da pequena estação, o ônibus 471 me espera para levar à Leukerbad, uma estação de esqui localizada a 1.411 metros acima do mar. O caminho sinuoso como em serpentina montanha acima é enfrentado com desenvoltura de equilibrista pelo condutor. Enquanto gira o volante com rapidez, quase encostando nas barreiras de proteção dos perigosos abismos, ele conversa com alguns moradores. Os turistas sentados nos bancos atrás do seu assento arregalam os olhos de medo. A neve começa a cobrir até a estrada. Porém o ônibus parece ser feito para essa topografia de tirar a respiração.

10:10

Atraso de três minutos. Os turistas saltam aliviados e são recebidos por uma deslumbrante vista das montanhas. O vilarejo de Leukerbad está no início do desfiladeiro de Gemmi, que desde a idade média faz a ligação entre o cantão do Valais e de Berna. Para chegar do outro lado é preciso pegar um teleférico que sobe a um ponto a 2.314 metros acima do nível do mar. Dele é possível caminhar através de uma região dos altos Alpes com lagos de água cristalina e próxima aos cumes.

Ao chegar na estação, o técnico responsável pelo teleférico avisa aos turistas que a trilha está bloqueada. Razão: a forte queda de neve da noite anterior colocou a região toda em risco de avalanches. “É muito perigoso”, alerta apontando para a massa branca nas encostas. Assim decido contornar a montanha com ajuda do transporte público.

11:40

O ônibus leva os turistas de volta à Leuk. Ao chegar na estação de trem, o IR 1413 já espera paciente os passageiros para levá-los à Brig. Esse povoado de 12 mil habitantes é cortado pelo rio Ródano, que nasce em uma famosa geleira do cantão do Valais e desemboca no Mediterrâneo ao sul da França.

12:36

O InterRegio 1413 sai de Brig em direção à Berna. O vagão está vazio nessa hora do dia. Ao sentar, vejo um cartaz da SBB onde uma mulher aparece sentada em um vagão e admirando a paisagem externa, com uma frase quase enigmática abaixo: “Meu tempo livre”. Pensei: viajar de trem é sinônimo de relaxar. Essa linha foi criada após a perfuração de um túnel de pouco mais de 14 quilômetros através do maciço do Lötschberg em 1911 por trabalhadores, em grande parte estrangeiros. Ela sobe de 600 a 1.200 metros de altitude e percorre uma linha que acompanha o relevo acidentado de grandes montanhas, oferecendo um espetáculo de tirar o fôlego até entrar na escuridão total. Ao sair em Kandersteg, leio na brochura que o vilarejo localizado já no cantão de Berna tem um monumento aos 26 operários que foram soterrados em um acidente com explosivos em 1908. Da janela vejo algumas pessoas praticando esqui de fundo através da planície coberta de neve.

swissinfo.ch

13:28

O trem chega em Frutigen. Hora do almoço. Distante apenas quinze minutos de caminhada da estação está a Casa Tropical, um centro que reúne uma grande estufa de plantas tropicais e um criadouro de esturjões voltado para a produção de caviar. Tudo é alimentado com a água quente que sai das profundezas do maciço do Lötschberg, desde a construção do novo túnel em 2007 para um dos maiores projetos de transporte da Suíça, as Novas Transversais Alpinas (NEAT, na sigla em alemão). Apesar de estarmos em pleno inverno, o centro produz até mamão. Eu escolho no cardápio o prato de tofu com molho de curry, pedaços de mamão e macarrão.

14:30

De Frutigen à Thun gasto apenas trinta minutos. O ônibus da STI, que serve toda a região, sai em apenas dois minutos. A empresa também oferece a  “Moonliner”, uma linha especial em cooperação com outras empresas e cujo principal objetivo é permitir as pessoas sair à noite, beber e não precisar dirigir. Ele percorre a margem do lago de Thun e vai atravessando diversos vilarejos até chegar à estação do Niederhorn, cujo trem à cremalheira e o teleférico levam os turistas até o cume com o mesmo nome, 1.963 metros acima do nível do mar e com uma vista espetacular para os Alpes bernenses. Nela preciso comprar pela primeira vez um bilhete além do ticket diário que vale para todos os meios de transporte. O sistema na Suíça é integrado, mas tem algumas exceções com pequenas linhas privadas ou exclusivamente turísticas.

15:44

Da estação às margens do lago de Thun subo com o trem à cremalheira até Beatenbucht e troco depois pelo teleférico para chegar, finalmente, ao cume do Niederhorn às 16:16. No alto da montanha encontro poucos turistas. Depois de quase vinte horas percorrendo mais de trezentos e cinquenta quilômetros com o transporte público suíço, percebo que os únicos imprevistos foram provocados pelas condições climáticas. Enquanto mordo um sanduíche, aos meus pés se juntam à caça de migalhas algumas gralhas-de-bico-amarelo, uma espécie de pássaro típico das regiões elevadas nas montanhas. O meu smartphone indica que esse tipo de ave já foi encontrada até no Monte Evereste a uma altura de 8.200 mil metros acima do nível do mar. Talvez os únicos que realmente não se incomodam se o tempo estiver ruim. 

População residente permanente: 7,95 milhões (no final de 2011). Crescimento da população residente: 10% (entre 2000 e 2011).

Número de veículos à motor: 5,8 milhões (2012), dos quais três quartos são veículos de turismo (carros de uso particular, por exemplo).

Em 2010, toda pessoa residente na Suíça percorreu uma média de 37 quilômetros no interior do país, 5% a mais do que no ano de 2000. 

A grande parte das distâncias diárias (66%) é feita em transporte individual motorizado.

O lazer representa o principal motivo de deslocamento, com uma parte de 40% das distâncias diárias, na frente dos deslocamentos pelo trabalho (24%).

Custo do transporte financiado pelos governos: 16,6 bilhões de francos. O governo federal assume uma boa parte das subvenções: 54%.

Aproximadamente um terço da superfície habitada e de infraestrutura do país é consagrado aos transportes.

Em 2011, a rede de estradas totalizava 1.799 quilômetros de estradas federais (das quais 1.415 quilômetros de rodovias) e 18.027 quilômetros de estradas cantonais. Nelas são acrescidos ainda 51.638 quilômetros de estradas comunais.

A extensão total da rede ferroviária é de 5.124 quilômetros.

Em 2010, 7 pessoas sobre 10 trabalhavam fora da sua comuna de domicílio (contra somente 5 em 1990). 53% desses pendulares intercomunais se deslocavam no interior de uma mesma região urbana, enquanto que 11% viviam em uma região rural, mas trabalhavam em zonas urbanas.

Em 2008, a Suíça recenseou 8.341 empresas de transporte. Ela é responsável por 139.182 empregos diretos.

Em 2012, 339 pessoas morreram nas estradas suíça, 80% a menos do que em 1970. As razões da queda são de ordem técnica, jurídica e pedagógica.

Fonte: Departamento Federal de Estatísticas

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