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Suíça considera adotar os controversos passaportes de Covid-19

Kit de teste de Covid 19
Ainda não há nenhuma prova de que a infecção de Covid-19 forneça imunidade permanente ou mesmo temporária contra o coronavírus. Keystone / Laurent Gillieron

Empresas suíças de tecnologia e pesquisadores médicos estão desenvolvendo passaportes de saúde digitais que poderiam ser usados para certificar quem é imune ao Covid-19. Mas os cientistas ainda não sabem se ter o vírus confere imunidade, e tratar as pessoas de forma diferente com base em seu status imunológico levanta sérias questões éticas para a Suíça e outros países que buscam essa opção.   

Supondo que exista imunidade ao Covid-19, os prós de um passaporte de imunidade são fáceis de imaginar. O documento poderia ser apresentado para acessar lares de idosos, viajar internacionalmente com segurança e participar de grandes eventos esportivos ou culturais sem colocar em risco a si mesmo ou a outros. Poderia ser utilizado dentro das equipes médicas para que aqueles que não possuem imunidade não entrem em contato desnecessário com os pacientes do Covid-19. E pode ser útil em setores estratégicos para, por exemplo, evitar que todos os trabalhadores de uma usina nuclear adoeçam de uma só vez. 

A criação de passaportes imunitários está bem encaminhada na Suíça, país conhecido por valorizar a privacidade e desenvolver produtos de segurança de qualidade. Aqui também é a sede de inúmeras empresas que trabalham com tecnologias de blockchain, que podem fornecer um sistema de registro seguro para a criação e transferência de informações. 

O passaporte de saúde Covid-19 proposto pela SICPA, uma empresa suíça mais conhecida por seu trabalho em tintas de segurança para moedas e documentos sensíveis, combina a tecnologia blockchain com um código QR. Ele foi desenvolvido em parceria com a Guardtime, empresa estoniana que recentemente mudou sua sede para Lausanne, para ajudar os governos a gerenciar o relaxamento de restrições por causa do coronavírus.  

“O que nossa solução propõe é um atestado do resultado de um teste”, diz Philippe Gillet, diretor de ciências da SICPA. “Associamos a emissão e o resultado do teste do teste à pessoa de uma forma bastante privativa. Estamos protegendo os dados. Mas não estamos dando nenhuma garantia de que o teste seja eficiente ou não”. 

Outra empresa suíça voltada para soluções de blockchain para fornecer certificados de saúde digitais a governos e empresas é a Health n Go. A empresa já utilizou blockchain para distribuir ingressos para grandes eventos esportivos no passado e propõe um código QR – que serviria como uma espécie de certificado – que pode ser apresentado no aplicativo “wallet” (carteira) de um smartphone.  

“Os certificados podem ser revogados remotamente; podem ter datas de validade; ou podem ser administrados de forma centralizada, preservando a privacidade dos dados do titular”, diz Frédéric Longatte, CEO da Health n Go. Ele explica, por exemplo, que um certificado de imunidade pode ser revogado se um lote de kits de teste não for considerado confiável, tornando o resultado do teste inválido.  

Considerações éticas  

Mas alguns acham que é muito cedo para desenvolver passaportes de imunidade sem um entendimento completo de como o vírus funciona e das implicações éticas. 

“O verdadeiro risco significativo aqui – deixando de lado a questão por um segundo sobre se e até que ponto a imunidade existe – é que você está criando esse incentivo perverso para as pessoas saírem e pegarem o vírus e desenvolverem uma imunidade, e esse é um vírus muito perigoso e mortal”, diz Brent Mittelstadt, especialista em ética de dados do Oxford Internet Institute.  

Ele acha que vincular a imunidade ao direito ao trabalho ou à possibilidade de ter acesso normal a serviços, lojas e restaurantes é uma estratificação extremamente prejudicial para a sociedade. Ele também está preocupado com a privacidade dos portadores do passaporte. 
 
“Os passaportes de imunidade estão sendo discutidos como uma forma de basicamente lhe devolver direitos elementares que tenham sido restringidos ou retirados sob um estado de emergência sanitária”, diz ele. “Minha principal preocupação é [que empresas e governos] usem a Covid-19 como porta de entrada para a implantação de tecnologias mais invasivas”.  

“É uma questão de qual é a linha de limite”, diz James Davis, professor de política internacional da Universidade de St. GallenLink externo. Ele vê os passaportes como um passo na direção certa quando a única alternativa é permanecer fechado por muito tempo até que uma vacina ou tratamento sejam desenvolvidos.  “Entendo a preocupação de que isso daria uma vantagem às pessoas que têm imunidade, mas também proporciona uma vantagem para a sociedade como um todo, porque estamos abrindo a economia mais rapidamente”. 

Seguindo em frente 

Apesar de tais preocupações, a ideia de vincular a liberdade de movimento aos resultados dos testes do coronavírus parece estar ganhando terreno à medida que os testes se tornam mais difundidos e os países se apressam a reiniciar suas economias e a amenizar os lockdowns. O Chile foi o primeiro país a fornecer certificados a pessoas que se recuperaram do Covid-19, embora a nação latino-americana tenha tido que recuar e rebatizar seus certificados de imunidade como “certificados de alta médica”, após semanas de debate global sobre se os pacientes recuperados são realmente resistentes ao vírus.  

Os prós e contras dos passaportes de imunidade estão sendo discutidos no Reino Unido e nos Estados Unidos, assim como calorosamente debatidos em toda a Europa. Os especialistas alemães em ética estão analisando o assunto a pedido do governo. “A questão do significado para a sociedade quando algumas pessoas são atingidas por restrições e outras não, toca os próprios fundamentos que mantêm a sociedade funcionando em conjunto, disse o ministro da Saúde alemão Jens Spahn no início deste mês, após assegurar milhões de novos testesLink externo de coronavírus da farmacêutica suíça Roche. 

A Organização Mundial da SaúdeLink externo adverte que tais certificados podem aumentar em vez de reduzir o risco de transmissão contínua. Algumas pessoas podem assumir que estão imunes a uma segunda infecção porque receberam um resultado positivo no teste e, assim, passam a ignorar os conselhos de saúde pública.    

“Neste ponto da pandemia, não há evidências suficientes sobre a eficácia da imunidade mediada por anticorpos para garantir a precisão de um ‘passaporte de imunidade’ ou ‘certificado sem risco'”, escreveu o órgão baseado em Genebra em um sumário científico.  

Mas essa avaliação – como tantas outras feitas em relação ao Covid-19 – pode muito bem mudar com novas evidências. 

Os cientistas querem estar preparados 

Na Suíça, os esforços estão cautelosamente em andamento para avaliar a melhor forma de tratar as informações sobre imunidade dos pacientes de Covid-19 recuperados. A Força Tarefa Nacional Suíça Covid-19Link externo emitiu um documento abordando os aspectos éticos dos testes serológicos que detectam anticorpos produzidos em resposta ao vírus. E a Escola Suíça de Saúde PúblicaLink externo está desenvolvendo um estudo nacional sobre a soroprevalência de anticorpos contra o novo coronavírus. 

“Antes que a ciência nos mostre que essas pessoas têm mais proteção, temos que agir com muito cuidado”, diz Idris Guessous, chefe da equipe de medicina de cuidados primários dos hospitais da Universidade de Genebra. “É uma questão de tempo até sabermos”. 

Guessous e seus colegas estão atualmente fazendo em seu laboratório amplos estudos serológicos para verificar a presença de anticorpos Covid-19 e realizando um estudo aleatório com 6.000 pessoas para ajudar a medir a extensão da propagação do vírus na área de Genebra. Os dois principais obstáculos que ele vê para introduzir o passaporte de imunidade são o baixo percentual da população que contraiu o vírus (estimado em menos de 10% na Suíça) e a incerteza sobre se ter anticorpos contra a Covid-19 significa um risco, mesmo que reduzido, de contrair o vírus novamente. Obstáculos políticos e éticos também devem ser superados antes da introdução de certificados de imunidade digital. 

O pesquisador baseado em Genebra acredita firmemente na busca de soluções de passaporte de imunidade para que eles estejam prontos para ser emitidos rapidamente, se necessário. Isso pode ser o caso se a Suíça enfrentar uma segunda onda de infecções graves, e é parte do motivo pelo qual ele se uniu à SICPA para experimentar a aplicação de blockchain. Como ponto de partida, diz Guessous, a tecnologia poderia ser usada para certificar a presença ou ausência de anticorpos, e depois evoluir para um certificado de imunidade se houver provas de que os anticorpos reduzem o risco de infecção. Na ausência de uma vacina, o aplicativo poderia estimular as pessoas a fazer testes de anticorpos novamente para garantir que elas permaneçam imunes.  

Seu estudo acadêmico sobre certificados de imunidade em Genebra, que será submetido para revisão por um comitê de ética em poucos dias, também integrará uma pesquisa para ajudar a avaliar a receptividade da população em geral à ideia.  

“Estamos trabalhando no cenário do ‘e se…?’, diz ele. Estamos fazendo isso para o caso de nós, como nação, decidirmos usá-lo. Se é só para os militares, se é só para os prestadores de serviços de saúde, só para os pilotos, ninguém sabe”. 

Mas o Departamento Federal de Saúde Pública da Suíça diz que a introdução do passaporte de imunidade Covid-19 não está na agenda, por enquanto. 

“É muito cedo demais”, disse à swissinfo.ch o porta-voz Grégoire Gogniat. “Desde que tenhamos confirmação de que os anticorpos de fato levam à imunidade a longo prazo, pode fazer sentido. Também se tornará relevante assim que uma vacina for desenvolvida”. 

swissinfo.ch/ets

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