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Um apelo por mais diálogo na elaboração do tratado sobre pandemia da OMS

Timothy Fish Hodgson & Sara L.M. Davis

A Organização Mundial da Saúde (OMS) precisa aumentar a participação da sociedade civil durante as negociações do tratado para garantir que os direitos humanos sejam levados em consideração.

Nos últimos dias, as redes sociais foram tomadas por comentários e posts inflamados sobre os planos da Organização Mundial da Saúde (OMS) de elaborar um “tratado pandêmico”. Alguns especulam que a OMS poderia usar um tratado do tipo para “ganhar controle total”, anular as leis nacionais de saúde pública e impor bloqueios, restrições de viagens ou censuras.

Embora por aqui nós consigamos entender essas preocupações, não compartilhamos delas. Na prática, as agências da ONU, incluindo a OMS, operam como organizações que somente filiam países membros. São entidades incapazes de impor leis e políticas que atropelem a soberania nacional, portanto. Os Estados membros assinam juntos muitos tratados mas nem sempre concordam em todos. Considerando os tratados assinados, cada país tem o poder discricionário e a autoridade sobre a forma que cumprirá as obrigações previstas.

No entanto, o alvoroço nas mídias sociais e a ameaça de uma campanha contra a proposição de um tratado poderiam ter sido parcialmente evitados se a OMS tivesse conduzido o processo de negociação com maior transparência por meio de um processo de ampla consulta pública. De fato, como membros da Aliança da Sociedade Civil para os Direitos Humanos no Tratado PandêmicoLink externo (apelidada de Alliance), defendemos desde o ano passado uma consulta completa, ampla e efetiva para elaboração do documento na OMS.

Uma ampla consulta fortaleceria quaisquer leis futuras, garantindo que os Estados respeitem, protejam e cumpram os direitos humanos e as liberdades. Enquanto alguns se opõem ao tratado proposto pensando nele como uma ameaça à democracia, nós argumentamos que é precisamente o dano causado às democracias em todo o mundo em nome das respostas à pandemia de Covid-19 que exigem o traçado de um caminho melhor, mais claro e mais democrático para o futuro.

Muitos países em todo o mundo usaram a pandemia como desculpa para usar ou aprofundar a repressão estatal, inclusive por meio da aplicação policial de restrições abrangentes. Alguns acumularam vacinas e outros recursos essenciaisLink externo , limitando o acesso aos imunizantes a outros países que precisavam no Sul Global. Alguns estados implementaram novas e abrangentes formas de vigilância digitalLink externo com pouca base científica, infringindo o direito à privacidade.

Mas todas essas questões de direitos humanos parecem infelizmente distantes da agenda do tratado de pandemia, em parte porque a sociedade civil foi marginalizada no processo de elaboração. A Organização Mundial da Saúde tem sido decepcionantemente tímida em seu envolvimento com os direitos humanos. Por exemplo, o relatórioLink externo do Painel Independente sobre Preparação e Resposta à Pandemia (IPPPR) , que recomendou a elaboração de um tratado pandêmico, menciona as palavras “direitos humanos” somente uma vez e apenas na última página.

Qualquer tratado futuro deve ser fundamentalmente comprometido com a proteção dos direitos humanos de todos – incluindo de seus críticos mais ferozes. Alguns exemplos ilustram a necessidade de colocar os direitos humanos no centro de tal tratado.

Primeiro, o tratado precisa garantir que todas as informações, serviços e produtos de saúde (incluindo vacinas) necessários em uma pandemia estejam disponíveis, acessíveis, apropriados e com alta qualidadeLink externo. Esta é uma obrigação legal imposta aos países por uma série de tratados, inclusive nos termos do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e CulturaisLink externo , do qual a maioria dos países é signatário. No entanto, como vimos durante a pandemia de Covid-19, países não investiram suficientemente em seus sistemas públicos de saúde, causando assim a disseminação global do vírus, o enfraquecimento dos sistemas de saúde e contribuindo para milhões de mortes evitáveis.

Em segundo lugar, é necessário encarar a discriminação contra grupos criminalizados, marginalizados e pessoas desfavorecidas, incluindo pessoas LGBTI, pessoas com deficiência, idosos, migrantes e povos indígenas, para citar alguns –  grupos que sofreram mais na pandemiaLink externo . As mulheres também têm carregado um fardo desproporcional. O tratado deve proibir claramente todas as formas de discriminação – tanto no papel quanto na prática – e enfatizar, em particular, a necessidade de promover a igualdade de gênero.

Terceiro, o tratado deve garantir a proteção de denunciantes, incluindo profissionais de saúde, que relatam surtos, bem como defensores de direitos humanos que se opõem a respostas injustas de autoridades em relação a medidas restritivas.

Quarto, é necessário defender os direitos dos trabalhadores, incluindo os direitos dos trabalhadores essenciais e dos profissionais de saúde. Esse é um tópico particularmente importante, dada a devastação econômica amplamente reconhecida causada pelo Covid-19 e seu impacto no Link externodesemprego e na empregabilidadeLink externo.

A sociedade civil e os grupos comunitários desempenharam um papel crucial durante a pandemia e, portanto, suas experiências também devem orientar o processo de redação do tratado. Organizações lideradas pela comunidade e outras organizações da sociedade civil divulgaramLink externo informações, testes e equipamentos de proteção individual e defenderam os direitos dos mais marginalizados, incluindo trabalhadores essenciais. Alguns grupos forneceram alimentos, medicamentos essenciais e outros serviços sociais que os governos não conseguiram.

De extrema importância, a sociedade civil organizada frequentemente se manifesta contra graves abusos de direitos humanos que resultaram de respostas mal concebidas e antidemocráticas de Estados à pandemia.

É por isso que a Aliança da Sociedade Civil para os Direitos Humanos no Tratado Pandêmico pedLink externoe que o documento seja desenvolvido através de um processo que inclua, desde seu início, a participação plena e efetiva da sociedade civil e organizações comunitárias. Esta participação pode ajudar a conquistar a confiança pública e o impulso de que realmente precisamos para desenvolver novas abordagens à saúde global baseadas nos direitos humanos fundamentais.

Até o momento, nossa atuação na causa ajudou a estimular o órgão da OMS encarregado de negociar o tratado – Órgão Intergovernamental de NegociaçãoLink externo (INB) – a realizar audiências públicas em abril e junho. Mas infelizmente, nos primeiros eventos os debates foram superficiais. Em abril, as apresentações orais foram limitadas a declarações de dois minutos e as apresentações escritas estritamente limitadas a 250 palavras (sem sequer a possibilidade de fornecer links para outros recursos). Como podemos acreditar que a consulta é eficaz quando é tão limitada e não há envolvimento dos estados membros da OMS com nossas propostas? Além de um exercício supostamente semelhante em junho, o órgão da OMS não anunciou planos para consultas mais amplas. A Alliance, em resposta, redigiu e publicou um conjunto de recomendações claras ao INBLink externo  com sugestões para consertar o falho processo de diálogo que testemunhamos até o momento.

Para concluir, embora não concordemos com aqueles que pretendem acabar com o tratado, eles, como todas as outras pessoas em todo o mundo, têm o direito de participar do debate sobre se um tratado é necessário e, em caso afirmativo, o quê o tal tratado deve incluir. Em última análise, um tratado que realmente promova os direitos humanos e fortaleça a democracia só é possível se as pessoas em todo o mundo cujas vidas foram e continuam sendo afetadas pela  Covid-19 tiverem voz em sua elaboração.

Adaptação: Clarissa Levy
(Edição: Fernando Hirschy)

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