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Um consultório para atender clandestinos de Zurique

Os ilegais chegam no consultório com vários tipos de problemas de saúde. swissinfo.ch

Vinte mil clandestinos vivem em Zurique, a maior cidade suíça. A grande parte deles não tem nenhuma forma de seguro de saúde. Em caso de doença ou emergência, o medo de ser deportado é mais forte do que a necessidade de ir ao hospital.

Para apoiar essa população invisível, a ONG Médicos sem Fronteiras oferece atendimento gratuito e anônimo no Meditrina, um pequeno posto de saúde localizado num bairro popular da cidade.

Roberta está com dores na coluna. Na verdade, essa mulher de aproximadamente trinta anos tem outro nome e vem do Brasil. Ela vive há dois anos em Zurique, onde trabalha em casas de família fazendo limpeza ou cuidando de crianças. Na Suíça ela ganha muito mais do que no Brasil. Até dá para enviar algum dinheiro para casa.

Porém as últimas semanas foram cansativas para ela. Passar oito horas do dia com o esfregão e a vassoura na mão, se abaixando para tirar a sujeira embaixo dos móveis, carregando cestos de roupas sujas, passando centenas de roupas e polindo os móveis, não é nada fácil. Num momento o corpo deu sinal de alarme e as dores ficaram insuportáveis.

Seu único problema é o mesmo de aproximadamente 20 mil pessoas na que vivem na maior cidade suíça: ela é um “sans-papier”, termo do francês para qualificar os clandestinos que não documentos para residir e trabalhar legalmente no país. Eles vivem à margem da sociedade, apesar de contribuir para o bem-estar geral com os serviços que prestam. Assim como muitos deles, Roberta também não tem seguro de saúde. Para ela é impensável ir ao hospital ou procurar um médico qualquer. Seu maior temor é ser denunciada e deportada da Suíça.

Atendimento gratuito para ilegais

O ambulatório está quase escondido na sala térreo nos fundos de um prédio residencial no Kreis 4, bairro de Zurique com uma grande população de estrangeiros e famoso através da Langstrasse, rua de bares, cabarés e prostituição de rua.

O cartaz em cinco línguas indica a entrada da Meditrina, nome inspirado na deusa romana para a saúde. Aberto no início de 2006 pela ONG Médicos sem Fronteiras, o ambulatório atende qualquer pessoa que não tem acesso ao sistema de saúde helvético. “Geralmente são os clandestinos, mas as vezes até aparecem suíços que não tem mais dinheiro para pagar o seu seguro. Porém nesse caso, indicamos os serviços de assistência social da cidade”, explica Matthias Kuge, chefe de missão da Médicos sem Fronteiras.

Entre cinco e dez pessoas visitam diariamente o centro Meditrina, em grande parte mulheres da América do Sul e da África. Por mês seriam aproximadamente cem consultas médicas. Em primeiro lugar vêm os problemas de coluna e outras dores crônicas no sistema de locomoção. Outras causas comuns para as visitas são as dores de cabeça, problemas ginecológicos, dentários e também de insônia. “Não é de se admirar, levando-se em conta as condições de vida dessas mulheres. Os trabalhos domésticos ou na gastronomia são duros. Muitas delas também são exploradas pelos seus patrões. A isso se acrescenta o medo constante de expulsão”, acrescenta Kuge.

Casos graves

Além dos problemas mais simples, Meditrina também recebe casos mais graves, como AIDS e HIV. “As enfermeiras oferecem gratuitamente os testes de despistagem e explicamos também as formas de contágio. Muitas pessoas desconhecem completamente o problema”, revela o chefe da missão. Quando a doença é detectada num clandestino, ele recebe orientações de tratamento e medicação, fornecidas pelo serviço público de saúde da cidade.

Outras doenças graves que já surgiram no pequeno ambulatório iam de tuberculose – um caso ocorrido com uma imigrante africana e que teve de ser imediatamente comunicado às autoridades – até câncer.

Todos os casos são tratados por um dos dois enfermeiros de plantão. O centro não dispõe de médicos. Em casos de mordidas ou ferimentos leves, eles também podem aplicar uma injeção ou fazer curativos. O centro também dispõe também de um estoque de medicamentos sem receita obrigatória, que são entregues gratuitamente aos pacientes em caso de necessidade.

Nas situações mais complexas, os enfermeiros procuram auxílio por telefone de um quarenta médicos que trabalham para o programa da Médicos sem Fronteiras. “Trata-se de uma rede voluntária, onde atingimos todo o espectro de especialidades: cardiologistas, urologistas ou mesmo ginecologistas”, explica Kuge.

Quando aconselhado pelos enfermeiros, os clandestinos e outras pessoas sem seguro de saúde na Suíça podem ter consultas com os médicos. Eles cobram apenas 50 francos por ela, um preço irrisório comparado com as tarifas oficiais.

O problema do seguro

“O que muita gente não sabe, é que qualquer pessoa que esteja vivendo na Suíça, legalmente ou não, é obrigada a ter um seguro de saúde. Ao mesmo tempo, as seguradoras são obrigadas a aceitar qualquer um, velho ou novo, saudável ou não, mesmo que não tenha visto e viva ilegalmente no país”, afirma Kuge.

Para o chefe da missão, é preciso reforçar ainda mais as campanhas informativas nesse sentido. Ele e seus colaboradores tentam tirar o medo de muitos clandestinos de serem denunciados pelas seguradoras. “A inscrição no seguro pode ser feita por correspondência. A única coisa que eles precisam dar é o nome e um endereço de correspondência.

Obviamente as seguradoras tentam dificultar a inscrição, com medo dos custos. “Elas tentam colocar diversos empecilhos, mas sabem que a lei as obriga a aceitar as inscrições. Por isso organizações como a nossa, a SOS Racismo ou o Movimento Suíço dos Sem-Papéis ajudam os clandestinos a preencher esses papéis”, revela Kuge.

A importância de ter um seguro está no acesso ao sistema de saúde. Assim como os suíços, os clandestinos assegurados podem visitar médicos, ser operados e tratados nas mesmas condições. Na hora do pagamento, segundo o plano escolhido, além das mensalidades, eles pagam as contas do próprio bolso até o valor estipulado na franquia (no máximo 2.500, na Suíça). As contas que superam esse valor são cobertas pelo seguro em 90%.

E quando não há dinheiro?

Dentre muitos estrangeiros, não ter seguro de saúde é uma questão de necessidade e não de escolha. “O problema é que muitas dessas mulheres ganham tão pouco com o seu trabalho e precisam lutar para viver numa das cidades mais caras do mundo que é Zurique. Por isso até mesmo a escolha de um seguro de saúde barato não é alternativa para elas. Elas simplesmente não podem pagar as mensalidades”, diz chefe da missão.

Sem seguro, muitos clandestinos procuram soluções alternativas. Além de contar com a ajuda de órgãos caritativos, eles também tentam burlar o sistema de saúde. “Eu sei que alguns pagam apenas alguns meses, para depois pedir uma operação ou tratamento quando eles sabem que sua situação é emergencial. Também existem aqueles que utilizam a carteirinha de alguém ou dão nomes e endereços falsos”, revela Kuge.

Ele conta que a pior situação para um clandestino em Zurique é sofrer um acidente na rua e ser levado inconsciente para um hospital. “A pessoa é tratada de qualquer maneira, mesmo se ela não tiver documentos. Os médicos também têm a obrigação de sigilo em relação ao paciente. O problema é a administração do hospital, que irá tentar saber se a pessoa tem seguro. Quando descobre que ela não tem e está ilegal, alguns funcionários podem até contatar a polícia”, lembra. Ele se lembra até de ter escutado de casos de estrangeiros que fugiram do hospital, logo após acordar de uma operação.

Para Roberta a conversa com a enfermeira da Meditrina foi tranqüilizadora. Ela descobriu que a razão das suas dores de coluna está no trabalho. Além dos anestésicos, ela também recebeu conselhos de como carregar peso. Ela também não tem dinheiro para pagar um seguro de saúde. Assim como muitos clandestinos, ela aposta na sua sorte. “Além de cuidar um pouco da minha saúde, me alimentando bem, também rezo bastante”, conta a brasileira antes de se despedir.

O sistema de saúde da Suíça é um dos mais caros do mundo em relação ao PIB. As últimas estatísticas, de 2005, mostram que ele custou 52,9 bilhões de francos aos cofres públicos. E o valor aumenta continuamente: somente entre 2000 e 2005, a progressão média de custos foi de 4,1%.

Uma razão que explica o aumento é o rápido processo de envelhecimento da população e o desenvolvimento constante das técnicas médicas.

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