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Genebra continua o centro do mundo?

Como acabar com a espera de bilhões de pessoas pela vacina contra a Covid

Funeral workers in Zimbabwe lower the coffin of a Covid victim into the ground
Os países em desenvolvimento têm sido duramente atingidos pela pandemia. Mas eles estão lutando para conseguir vacinas, pois o "nacionalismo vacinal" tomou conta e as empresas farmacêuticas preferiram vender para os países ricos. Keystone / Aaron Ufumeli

Uma suspensão dos direitos de propriedade intelectual poderia ser a solução para conseguir mais medicamentos e vacinas contra a Covid para os países em desenvolvimento. Mas os países, as ONGs e a indústria farmacêutica estão divididos quanto à melhor maneira de conseguir mais suprimentos para as bilhões de pessoas em países de baixa renda.

Os defensores da suspensão argumentam que ela facilitaria o acesso a produtos que salvam vidas. Mas outros, incluindo a Suíça, afirmam que essa não é a solução. As negociações se intensificarão numa conferência ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), a partir de 30 de novembro, em Genebra. 

Mais de cem dos 164 países membros da OMC apoiam uma proposta de renúncia temporária das patentes apresentada pela Índia e pela África do Sul. A proposta utiliza como argumento o artigo 31b do Acordo TRIPS (sigla em inglês para Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio) da OMC , que prevê a suspensão “em caso de emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência”. As negociações estão em andamento há mais de um ano, mas o apoio de dois terços dos membros à suspensão ainda não é o suficiente. Geralmente, é necessário um consenso para que as negociações possam ser adiadas para além da próxima conferência. 

“Uma MC12 sem uma suspensão seria um fracasso”, diz Yuan Qiong Hu, do Médicos sem Fronteiras (MSF) em Genebra, que tem defendido a medida na OMC. A ideia é que mais laboratórios ao redor do mundo possam ter acesso à tecnologia e produzir versões genéricas. Isso, na opinião dos autores da proposta, tanto reduziria o custo das vacinas contra a Covid em particular quanto ampliaria a produção global.

O que está em jogo?

Uma simples análise dos números da pandemia evidencia a urgência de proporcionar maior acesso a tratamentos e vacinas: mais de cinco milhões de pessoas morreram em todo o mundo. E, mesmo que os países pobres com sistemas de saúde que já eram fracos tenham sido duramente atingidos, mais de três quartos das 5,5 bilhões das vacinas aplicadas mundialmente foram em países de renda alta e média-alta, que representam pouco mais de um terço da população mundial. Em comparação, menos de 5% das pessoas na África foram vacinadas. 

O MSF e outras ONGs, incluindo a Anistia Internacional, dizem que empresas como a Pfizer e a Moderna têm usado seus direitos de propriedade intelectual (PI) para priorizar a fabricação e o fornecimento de suas vacinas em países de alta renda, a fim de manter preços elevados. As empresas negam que estejam fazendo isso.

“A proposta da Índia e da África do Sul nasceu da frustração com a demora na implementação das vacinas nos países em desenvolvimento e com uma série de importantes relatos de que os proprietários de PI, particularmente os relacionados às vacinas, não estavam se envolvendo no licenciamento voluntário”, diz Duncan Matthews, diretor do Queen Mary Intellectual Property Research Institute, sediado no Reino Unido.  

Ele destaca relatos de que potenciais fabricantes em Bangladesh, África do Sul e Canadá solicitaram licenças voluntárias, mas tiveram seus pedidos negados. “Então, isso meio que levantou um grande questionamento internacional sobre, bem, se existe uma pandemia global, por que os proprietários da PI se recusam a conceder licenças voluntárias para aumentar a capacidade de fabricação?”

Como funcionaria uma suspensão de PI?

“O que o acordo da OMC sobre PI faz é estabelecer padrões básicos para a proteção à PI, que devem estar na legislação nacional dos países membros da OMC”, explica Matthews. “Muitas vezes, há o entendimento equivocado de que essa suspensão removeria automaticamente os direitos de PI para as vacinas e tecnologias relacionadas. Ela não faz isso automaticamente. O que ela faz é dar a um país membro da OMC o poder discricionário de colocar esses direitos de lado. A Índia, a África do Sul e seus apoiadores afirmaram explicitamente que o que realmente queremos são licenças voluntárias. E, se não conseguirmos obtê-las, queremos poder dizer aos proprietários de PI: se você não negociar a questão em termos justos e razoáveis, temos agora o poder definitivo de suspender seus direitos de PI sob uma lei nacional.” Trata-se de dar mais poder aos países em desenvolvimento enquanto eles tentam negociar voluntariamente, conclui ele.  

As licenças voluntárias são uma ferramenta comercial comum para os proprietários de PI comercializarem seus direitos de propriedade intelectual, “porque, se você assinar um acordo de transferência voluntária de tecnologia, você receberá royalties”, explica Matthews.  Sob tais acordos, o conhecimento é compartilhado de forma confidencial e, se isso for violado, o proprietário da PI pode abrir um processo. Sob a proposta de suspensão de PI, não haveria royalties e não seria possível nenhum recurso legal.

Algumas empresas farmacêuticas realizaram tais acordos voluntários, notadamente a AstraZeneca com o Serum Institute of India (SII), que também tem um mandato para fornecer vacinas para a iniciativa COVAX da Organização Mundial da Saúde.  O objetivo da COVAX era fornecer 2 bilhões de doses de vacinas aos países em desenvolvimento até o final deste ano, mas teve que rever suas projeções repetidas vezes devido a problemas de fornecimento. 

A Pfizer fez, tardiamente, um acordo com a Biovac, da África do Sul, para iniciar a fabricação local de suas vacinas para a África em 2022. Matthews acredita que a pressão na OMC para uma suspensão de PI “foi um fator decisivo para que a Pfizer se envolvesse nessa colaboração com a Biovac na África do Sul”.

“Parte da solução”

Os principais opositores a uma suspensão são a União Europeia, o Reino Unido e a Suíça, todos com indústrias farmacêuticas fortes. “Acreditamos que a proteção à propriedade intelectual na verdade é parte da solução e não do problema”, diz Didier Chambovey, embaixador da Suíça na OMC. “É um incentivo para que laboratórios de pesquisa inovem e desenvolvam novas vacinas e tratamentos.”

Chambovey argumenta que muitos dos gastos com pesquisa foram feitos com capital de risco privado na década anterior à pandemia, o que talvez não tivesse sido possível se houvesse a ameaça de uma suspensão dos direitos de propriedade intelectual. As contribuições governamentais reforçaram essa iniciativa, especialmente desde 2020, disse ele à SWI swissinfo.ch. “Assim, esse é um ecossistema onde temos uma cooperação entre o setor privado e o setor público, e ambos estão contribuindo muito. Está funcionando, está gerando inovação.”

O representante suíço diz que as empresas conseguiram aumentar a oferta através de parcerias voluntárias e que estas são a única maneira de criar a confiança necessária. A Suíça também reconhece que existe um problema de distribuição e que a taxa de vacinação em muitas regiões do mundo é “baixa demais”. Todavia, Chambovey não acredita que seja uma questão de propriedade intelectual. Ele diz que a ONU já possui instrumentos para ajudar a enfrentar o problema. Limitar as restrições à exportação e remover obstáculos ao comércio de produtos médicos essenciais também poderia melhorar a situação.   

A UE apresentou uma proposta alternativa com o objetivo de esclarecer as regras do TRIPS para facilitar o comércio e a fabricação de alguns pontos de entrave para as vacinas e medicamentos contra a Covid. Opositores dizem que isso não é suficiente.  

A indústria farmacêutica também se opõe à proposta de suspensão apresentada pela Índia e África do Sul. “Uma suspensão é a resposta simples, mas equivocada, para algo que é um problema complexo”, disse em maio a Federação Internacional de Fabricantes e Associações Farmacêuticas (IFPMA), com sede em Genebra. “Pelo contrário, é provável que leve à interrupção [da produção], ao mesmo tempo em que tira a atenção dos verdadeiros desafios para o aumento da produção e distribuição de vacinas contra Covid-19 no mundo: a saber, a eliminação das barreiras comerciais, a resolução dos pontos de entrave e da escassez de matérias-primas e ingredientes na cadeia de abastecimento, e a disposição dos países ricos para começar a compartilhar doses com os países pobres”.

Para além das vacinas

Essa declaração do IFPMA foi feita após os EUA, sob o governo de Joe Biden, anunciarem em maio que, ao contrário da administração Trump, apoiariam uma suspensão das patentes das vacinas contra a Covid. O governo Biden, contudo, não manifestou apoio à proposta mais ampla, que também incluiria medicamentos e coisas como “know-how em tecnologia complexa, modelos de diagnósticos e respiradores, e também quaisquer direitos autorais que sejam relevantes para essas tecnologias”, de acordo com Matthews. 

Michelle Childs, da ONG Drugs for Neglected Diseases, afirma que também é necessária uma suspensão das patentes de medicamentos e diagnósticos para a Covid. Com novos medicamentos começando a ser aprovados, ela teme que o “nacionalismo vacinal” possa se transformar em “nacionalismo terapêutico”, com os países ricos encomendando antecipadamente novos medicamentos promissores para a Covid. 

A empresa suíça Roche é das que teve um medicamento para a Covid aprovado pela OMS. Hu, do MSF, afirma que tal medicamento é caro e que há suprimentos limitados. Ela argumenta que os países em desenvolvimento precisam de “todas as ferramentas” para combater a pandemia, sejam vacinas, medicamentos ou respiradores. Mesmo que todos concordem com ela, o problema está nos detalhes.

Adaptação: Clarice Dominguez

Adaptação: Clarice Dominguez

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