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Veterano dos direitos humanos na ONU é alvo em seu Brasil natal

O diplomata Paulo Sérgio Pinheiro na ONU
"Vamos fazer de conta que a ONU não existisse. Os conflitos internacionais seriam muito mais intensos, as crises humanitárias não seriam atendidas, os direitos econômicos e sociais seriam menos ainda garantidos" © Keystone / Jean-christophe Bott

Em 2020, o brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro completa 25 anos de serviços à ONU na defesa dos direitos humanos. Ele ocupou alguns dos postos mais delicados dentro do sistema de monitoramento de abusos, foi relator para o Burundi, Mianmar e há quase uma década lidera a comissão de inquérito sobre os crimes na Síria. No Brasil, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, foi o chefe da pasta de Direitos Humanos.

Mas, paradoxalmente, é hoje de seu país – o Brasil – que vem sua maior ameaça: Pinheiro foi incluído em uma lista preparada por sistemas de inteligência de professores, policiais e personalidades que tenham questionado o governo de Jair Bolsonaro e de ter, supostamente, feito parte de um movimento “antifascista”. A lista foi denunciada por grupos de direitos humanos como um ato que reabria o temor da espionagem de estado, algo conhecido apenas durante a Ditadura Militar.

Em entrevista à Swissinfo, o decano dos direitos humanos na ONU fala sobre os desafios dos últimos 25 anos, do multilateralismo, o papel central das vítimas no trabalho da agência e sua situação no Brasil.

Eis os principais trechos da entrevista:

swissinfo.ch: Em 25 anos oferecendo seus serviços para diferentes funções na ONU, qual o papel que o sr. acredita que de fato a entidade pode ter para garantir a proteção aos direitos humanos? 

P.S.P.: Se pensarmos nas Nações Unidas no seu conjunto, desde o começo os direitos humanos estão no seu âmago com a Declaração Universal dos direitos humanos em 1948. Estão presentes em decisões na Assembleia Geral e no Conselho de Segurança . Todas as agências da ONU, como a Unicef, a FAO, a OMS, a OIT e outras protegem mundo afora os direitos humanos. Mas quem mais faz mais para garantir é o Conselho de Direitos Humanos, em Genebra, com seus relatores especiais, desde 1979,  sobre a situação de direitos humanos em países e em temas diversos, assistidos pelo alto comissariado de direitos humanos. 

Houve algum momento de frustração e que mostrou os limites do papel internacional? 

Somente as vítimas, que prefiro chamar de sobreviventes de violações de direito humanos, podem sentir frustração. Nós que lutamos para as violações se tornarem visíveis e punidas, só ficamos frustrados com o mau funcionamento de órgãos da ONU. Em mais de 10 anos de violações de direitos humanos e crimes de guerra o mau funcionamento do Conselho de Segurança faz com que esses crimes não sejam julgados pelo Tribunal Penal Internacional. Além de frustrante, é inexplicável para os sobreviventes na guerra .  

No Burundi, em seu primeiro cargo em 1995, havia uma expectativa real de avanço na situação com seu mandato. isso de fato ocorreu? 

O relator especial não tem varinha mágica para alterar a conjuntura num determinado país. Mas faz diferença ter ali havido relatores especiais e, depois de 2016, uma comissão de investigação. A sociedade civil local se sente mais fortalecida, assim como até membros do governo na área dos direitos humanos. Meu melhor interlocutor durante meu mandato ali era o Ministro dos Direitos Humanos, Eugene Nindorera, mais tarde nos anos 2010 funcionário da ONU em missões de direitos humanos na Costa do Marfim e no Sudão do Sul. 

O senhor também passou anos lidando com Mianmar e sua líder, Aung San Suu Kyi, quando ela ainda estava em prisão domiciliar. Como eram aqueles encontros que o senhor manteve?

Pinheiro em Mianmar
Paulo Sergio Pinheiro escuta um oficial enquanto visita o pagode Shwedagon em Yangon, Mianmar, 11 de novembro de 2007. Pinheiro foi autorizado pelo regime militar de Mianmar a visitar o país pela primeira vez em quatro anos em uma missão para determinar quantas pessoas foram mortas ou detidas desde o início de uma sangrenta repressão a manifestantes pró-democracia. Keystone / Str

Mianmar foi um caso excepcional, porque era um governo militar que queria se aproximar dos organismos de direitos humanos da ONU e de entidades da sociedade civil, tendo até recebido uma missão da Anistia Internacional. Durante os primeiros quatro anos, desde 2001, tive acesso a todos locais e instituições que solicitei. Mas nem eu nem outros representantes da ONU no país respondemos satisfatoriamente a essa abertura e o governo tinha pouco a demonstrar do valor dessa abertura e o governo foi deposto. Só voltei ali quatro anos depois em 2007  quando houve uma revolta dos monges e da sociedade civil. 

Já são quase 10 anos de guerra na Síria e o inquérito que o senhor lidera garantiu um acúmulo inédito de informação de uma crise atual. O que pode ser feito com essa informação? 

A comissão de investigação sobre a República Árabe Síria não é um tribunal, nem tem competência em negociação política. O objetivo dessas comissões como a que presido desde 2011 é investigar e documentar violações de direitos humanos, crimes de guerra e crimes contra humanidade. Nós trabalhamos para atender ao direito à verdade que a população da Síria tem.

É este o sentido dos relatórios apresentados ao Conselho de Direitos Humanos três vezes ao ano, de estudos temáticos e todas as intervenções nos órgãos da ONU e na comunidade internacional. Nosso banco de dados tem servido a investigações abertas pelo judiciário de vários países contra perpetradores de direitos humanos no conflito. Nossos dados também têm sido utilizados pelo mecanismo internacional imparcial independente sobre a Síria que prepara processos de investigação criminal para um dia serem apresentadas em tribunais.   

O senhor chegou a falar de crimes contra a humanidade, logo no início da guerra. Isso um dia ainda pode dar base para um processo internacional? 

Certamente os dados que nossa equipe de 30 pesquisadores e especialistas em que se baseiam nossos relatórios, assim como nossas intervenções dentro dos órgãos da ONU, poderão servir a processos junto a tribunais internacionais, como o Tribunal Penal Internacional e a tribunais na Síria. 

2020 também marca os 75 anos da ONU. Há o que de fato comemorar? 

Há mais para comemorar do que para lamentar. Vamos fazer de conta que a ONU não existisse. Os conflitos internacionais seriam muito mais intensos, as crises humanitárias não seriam atendidas, os direitos econômicos e sociais seriam menos ainda garantidos. E a não realização dos princípios da declaração universal e das convenções de direitos humanos teriam sido ainda menos realizados. A minha assistente do Alto Comissariado no mandato sobre o Burundi, Brigitte Lacroix,  logo de saída me disse: Paulo, o que importa mesmo é o que você vai fazer pelas vítimas. Portanto, da perspectiva dos sobreviventes devemos comemorar, pois eles tem a centralidade de nossa ação. 

A ONU e o multilateralismo estão vivendo uma encruzilhada e, em parte, a resposta à pandemia está mostrando isso. Há um risco real para o sistema?

A pandemia devassou com enorme clareza a desigualdade, a concentração de renda, o racismo que continuam a prevalecer em quase todas as sociedades, tanto no Norte como no Sul. Ninguém escapou. Os que eram pobres estão ficando mais pobres, o atendimento na saúde daqueles em pobreza e extrema pobreza se agravou, não apenas no mau atendimento dos afetados pela covid 19, mas no direito à saúde em geral .

Não creio que depois da pandemia haverá automaticamente maior solidariedade, tipo hino da alegria da nona sinfonia de Beethoven, nem melhor atendimento dos sem-direitos. Para isso, será essencial que os estados membros da ONU em vez de negar recursos à entidade, como fizeram com a OMS, que aumentem seu apoio político e recursos financeiros para a ONU.

Ser brasileiro ajudou nesse trabalho ao longo dos últimos 25 anos?

A América Latina, como diz um antigo embaixador da França no Brasil, Alain Rouquié, num de seus livros, é o extremo ocidente, uma categoria à parte do mundo ocidental. Os brasileiros, por estarem nesse conjunto, são percebidos como independentes. O Brasil, depois da volta a democracia em 1985 até o governo Dilma Rousseff, era considerado um honest broker, um negociador confiável. Porque nesse período virtuoso nunca fomos negacionistas das graves violações de direitos humanos no Brasil. Todo os países queriam estar na foto com o Brasil, até ocorrer o golpe contra a presidenta Dilma. No Conselho de Direitos Humanos, o Brasil estava sempre nas resoluções mais delicadas, por exemplo sobre o homossexualismo, racismo, violência contra a mulher e a criança. Eu acho que essa aura do brasil certamente me beneficiou. 

Como ministro de Direitos Humanos, que Brasil o senhor descobriu que não conhecia como acadêmico ou ativista? 

Os horrores do “mondo cane” da sociedade brasileira ficaram mais evidentes para mim – e exigiram ações de emergência do governo – como o trabalho escravo, as violações sexuais de crianças, a tortura nas prisões,  as redes de prostituição infantil, a exploração do trabalho doméstico, o racismo estrutural. Preparar os Programas Nacionais de direitos humanos 1 e 2 devassaram para mim o Brasil. Constatei uma sociedade civil atuante em todos os estados e limitações enormes da atuação do estado. 

Que Brasil existe hoje nesse começo do século 21 em termos de direitos e cidadania? 

Depois do golpe parlamentar que derrubou a presidenta Dilma, houve retrocesso em todas as conquistas realizadas na esteira da Constituição de 1988. Em direitos humanos, é difícil encontrar uma área onde não tenha havido atraso: controle das execuções de negros e jovens na periferia das grandes metrópoles, proteção ao meio ambiente, a defesa da Amazônia e de suas populações, proteção dos povos indígenas, a luta contra a homofobia, o racismo, desigualdade econômica. Sem falar da política externa de direitos humanos, que havia sido aprofundada em todos as administrações federais sem exceção, para chegarmos a essa situação patética de submissão aos Estados Unidos, incluindo o abandono da defesa direitos do povo palestino, até a celebração da extrema direita em vários países.  

O senhor foi incluído numa lista preparada pelo Ministério da Justiça, no Brasil. Uma espécie de dossiê elaborado contra aqueles que questionam o governo. Como o senhor avalia isso?

O Ministério da Justiça me enfiou num dossiê, criminalizando o antifascismo. Foi uma estranha honra eu ter sido incluído, quando bastaria abrir o Google para ver o que penso, digo e faço no Brasil, nos órgãos da ONU e mundo afora. Foi aparentemente uma lamentável iniciativa de ressuscitar os execráveis dossiês de espionagem política da ditadura militar.

Felizmente, o Supremo Tribunal Federal, numa decisão histórica – de 9 votos a 1 em 21 de agosto, proibiu o Ministério da Justiça de fazer esses relatórios sobre o que alguns cidadãos pensam e agem, proibindo sua distribuição.

De uma forma geral, de que maneira o avanço de tratados de direitos humanos, da criação de inquéritos de violações e da agenda de direitos humanos se encaixa na história da humanidade? 

Para começarmos a partir um ponto preciso, desde que os estados foram constituídos a violência contra os cidadãos esteve presente. Porque o estado é uma entidade contraditória no qual se concentra a capacidade de fazer o bem para a população e por outro lado é o detentor da violência com a qual pode oprimir os cidadãos. As declarações universais, tanto a americana, como a francesa propuseram limitar as violações contra os cidadãos, e defender quem precisa de proteção. A melhor declaração a expressar essa defesa foi a declaração universal de 1948, seguidas pelos pactos internacionais e de convenções que cada vez tornaram mais precisas essa defesa.

Apesar de todos os horrores, o século XX foi o momento maior em que se consolidou a democracia, que é até agora o melhor sistema para realizar os direitos humanos. 

Paulo Sérgio Pinheiro na Comissão de investigação da Síria na ONU
O carioca Paulo Sérgio Pinheiro é um dos pioneiros dos direitos humanos no Brasil e um dos fundadores do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, onde é professor aposentado do Departamento de Ciência Política, e colaborador de longa data de missões da ONU. Dentro do Sistema das Nações Unidas, ele serviu como Relator Especial sobre a situação dos direitos humanos em Mianmar, entre outras atribuições internacionais. Desde 2011, ele é presidente da Comissão Internacional de Inquérito para a Síria. © Keystone / Martial Trezzini



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