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Suíça enfrenta impasses legais após primeiro uso da cápsula Sarco

Cúpulas de um prédio
Quando em dúvida, a Suíça é liberal, mesmo em relação à sua própria morte. Após o primeiro uso da cápsula suicida Sarco, o país se depara com a questão de saber se é necessária mais regulamentação para o suicídio assistido. Keystone / Thomas Hodel

A primeira morte na cápsula Sarco reacendeu o debate sobre a regulamentação do auxílio ao suicídio na Suíça.

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O primeiro suicídio na cápsula Sarco aconteceu em setembro de 2024, em uma área florestal no cantão de Schaffhausen, próximo à fronteira com a Alemanha. A pessoa que optou pela morte assistida foi uma americana de 64 anos que sofria de uma doença autoimune. Em uma gravação em vídeo, ela explicou brevemente os motivos de sua decisão, entrou na cápsula e, quando o sistema estava pronto, apertou, sem hesitar, o botão. Poucos minutos depois, ela estava morta.

Foi assim que uma fotógrafa do jornal holandês Volkskrant, que presenciou o suicídio junto com membros da organização de auxílio ao suicídio The Last ResortLink externo, descreveu o evento posteriormente.

Philipp Nitschke, ativista do direito ao suicídio assistido e inventor da cápsula, acompanhou o ocorrido da Alemanha. Dessa forma, ele evitou ser preso, diferentemente dos presentes no local.

O cantão de Schaffhausen já havia deixado claro, em meados do ano, que o uso da cápsula resultaria em processos criminais. A primeira pessoa que desejava terminar sua vida com a ajuda da Sarco, também uma americana, desistiu diante dessas ameaças. Posteriormente, ela tirou a própria vida com o auxílio de uma organização de suicídio assistido bem estabelecida na Suíça. Antes de sua morte, ela fez acusações graves contra o grupo.

Uma floresta europeia.
A área arborizada em Merishausen, perto da fronteira com a Alemanha, onde a cápsula suicida foi usada pela primeira vez. Keystone / Ennio Leanza

Na segunda tentativa, a organização de auxílio ao suicídio ignorou os avisos das autoridades suíças. E isso aconteceu justamente no dia em que o Conselho Federal (n.r.: governo federal) também se pronunciou sobre a cápsula: segundo a ministra suíç da Justiça, o uso da Sarco não é permitido na Suíça. É uma situação que deixa muitas questões em aberto.

Processo contra a organização

A maioria das pessoas que presenciou o suicídio na floresta de Schaffhausen foi liberada pouco depois de ser presa. Florian Willet, co-presidente da The Last Resort e ex-porta-voz da imprensa da Dignitas AlemanhaLink externo, por sua vez, permaneceu 70 dias em prisão preventiva, sendo solto apenas no início de dezembro.

No mesmo dia, o Ministério Público anunciouLink externo que não havia suspeita de homicídio. Contudo, havia um “forte indício de incitação e auxílio ao suicídio”.

Um homem
Florian Willet Keystone / Ennio Leanza

Ainda não está claro se haverá uma acusação formal. Uma ação judicial estaria, de certa forma, alinhada aos objetivos da The Last Resort. Na Suíça, o enquadramento legal para o auxílio ao suicídio tem sido amplamente definido por decisões judiciais importantes do Tribunal Federal.

Uso ilegal na Suíça?

É provável que o Tribunal Federal decida isso em algum momento. No entanto, é igualmente provável que a resposta seja não. Embora várias autoridades na Suíça tenham classificado o uso da cápsula como inadmissível, as justificativas apresentadas parecem um tanto arbitrárias e dificilmente resistem a um exame mais rigoroso.

Por exemplo, o cantão de Valais argumentou que a cápsula não havia sido aprovada pela agência reguladora de medicamentos SwissmedicLink externo. No entanto, o órgão declarou que não era responsável pela cápsula, pois ela não se enquadra como um produto médico.

A ministra suíça da Justiça, Elisabeth Baume-Schneider, afirmou ao Parlamento que a cápsula Sarco não atende aos requisitos da legislação de segurança de produtos, além de o uso de nitrogênio na cápsula infringir a lei de produtos químicos.

imagem
Keystone / Ennio Leanza

No entanto, questiona-se se essas leis são aplicáveis no contexto do auxílio ao suicídio, que toca o direito fundamental à morte autodeterminada. Isso é levantado, entre outras coisas, por uma decisão do Tribunal Federal de março passado: no caso mais notório dos últimos anos, o mais alto tribunal suíço absolveu Pierre Beck, o ex-vice-presidente da organização de auxílio ao suicídio ExitLink externo.

Beck havia auxiliado uma mulher saudável de 86 anos a cometer suicídio, que queria morrer junto com seu marido gravemente doente. O Tribunal Federal decidiu que nem a lei de medicamentos nem a lei de narcóticos eram aplicáveis neste caso. Vários observadores já expressaram a opinião de que a Lei de Segurança de Produtos citada pelo Conselho Federal não se aplica à cápsula Sarco.

Nesse caso, a única base legal restante seria o artigo 115 do Código Penal. Na Suíça, o auxílio ao suicídio é proibido quando realizado por “motivos egoístas”; além disso, o suicídio deve ser realizado pela própria pessoa (embora esse ponto seja controverso entre juristas). Ao avaliar o estado de saúde e a capacidade daqueles que desejam morrer, também se aplicam as obrigações de diligência médica.

Além disso, a Academia Suíça de Ciências Médicas emite diretrizes para os médicos envolvidos, mas essas diretrizes não têm caráter legalmente vinculativo. As organizações de auxílio ao suicídio, por sua vez, formulam suas próprias condições e restrições para seus serviços.

Regulamentação mais rígida?

Em resumo, pode-se dizer que não. Swissinfo.ch fez essa pergunta às organizações suíças estabelecidas de auxílio ao suicídio. A favor de uma limitação está apenas a conhecida assistente de suicídio Erika Preisig, da organização Life Circle, e isso apenas em um ponto: “Sou da opinião de que qualquer organização recém-fundada deve obter uma licença de funcionamento, assim como um médico que deseja abrir um consultório”.

ExitLink externo, a maior do país, argumenta de forma mais enfática contra uma regulamentação mais rigorosa. “Qualquer lei especializada restringiria o auxílio ao suicídio em relação ao que é permitido atualmente. Detalhes desnecessários seriam regulamentados”.

Uma mulher
Erika Preisig EPA/THORSTEN WAGNER

Em sua visão, é melhor deixar a interpretação desses detalhes, como tem ocorrido até agora, para a jurisprudência, que sempre reflete o espírito do tempo. Tanto o Dignitas quanto a Exit na Suíça francófonaLink externo também se opõem a uma regulamentação mais rígida.

Um tema importante para as organizações suíças estabelecidas de auxílio ao suicídio continua sendo a abordagem legal dos casos de morte. O objetivo seria que, com uma documentação completa do suicídio assistido, as autoridades dispensassem uma investigação forense, bem como a presença da polícia no local.

Atualmente, alguns cantões já estabeleceram um processo simplificado, em particular o cantão (estado) de Solothurn, que desenvolveu uma solução modelo com a organização de auxílio ao suicídio Pegasos, implementada em dezembro. Ainda assim, em muitas regiões da Suíça, altos custos estão envolvidos e os parentes são incomodados pelas autoridades durante o processo de luto.

O renomado defensor da ajuda ao suicídio e pioneiro Ludwig A. Minelli, juntamente com sua organização Dignitas, também defende a legalização da eutanásia ativa na Suíça. O modelo holandês, que permite a eutanásia ativa para pacientes com demência, sob uma série de condições, serve de exemplo para Minelli, 92 anos.

Legislação sobre o auxílio ao suicídio

No Parlamento Federal, o primeiro uso da cápsula Sarco levou a duas monções: a deputada-federal Nina Fehr Düsel (Partido do Povo Suíço – SVP), exige que o governo federal esclareça como seria possível proibirLink externo a cápsula Sarco de forma clara. O deputado Patrick Hässig (Partido Verde Liberal) quer saber como um quadro legalLink externo para o auxílio ao suicídio poderia ser criado.

As duas propostas pendentes provavelmente enfrentarão dificuldades. O governo federal já se pronunciou sobre o assunto e deixou claro que não vê necessidade de regulamentação adicional: o arcabouço legal existente é “claro, mas suficientemente flexível para refletir a posição liberal da Suíça em relação ao auxílio ao suicídio”.

O governo federal remete ao relatório “Cuidados Paliativos, Prevenção ao Suicídio e Assistência ao Suicídio Organizado”, de 2011, que serviu como base para a decisão de não implementar uma regulamentação detalhada sobre o auxílio ao suicídio. As considerações jurídicas contidas nesse relatório foram confirmadas pelo Parlamento em diversas ocasiões.

De fato, várias tentativas de regulamentação específica sobre o auxílio ao suicídio fracassaram na Suíça. Atualmente, aplica-se o Artigo 115 do Código Penal Suíço de 1942Link externo e sua interpretação pelo Tribunal Federal. Apesar das emoções suscitadas pelo caso da cápsula Sarco, é improvável que isso leve a uma reforma na legislação sobre auxílio ao suicídio no país conhecido por sua resistência a mudanças legislativas.

Você tem pensamentos suicidas ou conhece alguém que precisa de apoio? Então entre em contato na Suíça com o serviço “Dargebotene Hand” pelo telefone 143. Contatos por e-mail e chat estão disponíveis no site www.143.chLink externo. O serviço é anônimo e gratuito.

Para crianças e adolescentes, a organização “Pro Juventute” disponibiliza o número de telefone 147. Também é possível entrar em contato via SMS, chat e e-mail. Todos os detalhes estão no site www.147.chLink externo.

Mais informações e contatos em cada cantão podem ser encontrados no site www.reden-kann-retten.chLink externo. Endereços para pessoas que perderam alguém por suicídio estão disponíveis no endereço www.trauernetz.chLink externo.

Uma lista com serviços de apoio na AlemanhaLink externo pode ser encontrada no site da Sociedade Alemã de Prevenção ao Suicídio. Na Áustria, o site Suizidprävention AustriaLink externo oferece ajuda.

Mudanças no cenário

A Exit e a DignitasLink externo afirmam, em resposta a perguntas, que consideram a cápsula de suicídio um fenômeno marginal e presumem uma baixa demanda. As organizações suíças de auxílio ao suicídio descobriram que a maioria das pessoas prefere morrer cercada por seus entes queridos — e que muitas desejam segurar a mão de alguém nos momentos finais. Na cápsula Sarco, conhecida como o “Tesla da assistência ao suicídio”, os últimos momentos da vida são marcados pelo isolamento.

No entanto, a organização The Last Resort indica em seu site que a cápsula também pode ser utilizada para suicídios em casal. Em setembro, um casal britânico atraiu atenção da mídiaLink externo ao anunciar planos nesse sentido.

É difícil prever a real demanda pela cápsula Sarco. Também permanece em aberto até que ponto Nitschke e a The Last Resort dependem da Suíça para sua implementação. Em uma entrevistaLink externo ao jornal NZZ, Nitschke mencionou a Finlândia como uma possível alternativa. Além disso, na Alemanha, um julgamentoLink externo do Tribunal Constitucional Federal em 2020 pode ter criado espaço jurídico suficiente para o uso da cápsula.

A ideia original de Nitschke, de disponibilizar os planos da cápsula para que interessados possam construir o dispositivo com uma impressora 3D, ainda parece ter uma viabilidade limitada. A The Last Resort estima os custos de impressão em 15 mil euros. Além disso, montar uma cápsula mortuária caseira pode ser um projeto grande demais para uma pessoa com doença terminal.

Adaptação: Karleno Bocarro

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