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“Aqui também há violência contra mulheres”

"Violência contra a mulher não é uma exclusividade do Brasil", afirma Carminha Pereira. swissinfo.ch

A comunicadora intercultural e chefe do departamento de finanças e administração do FIZ, Centro de apoio às mulheres migrantes e vítimas de tráfico de mulheres, Carminha Pereira, analisa os trágicos episódios das adolescentes que sofreram recentemente estupro coletivo no Brasil e compara o cenário brasileiro com o suíço.

A paulista Carminha Pereira conhece muito bem a cor, o cheiro, o drama e o pavor que permeiam a vida das mulheres que sofrem violência. Ela atua há 25 anos na área e há 20 anos faz parte da equipe do FIZ (Fachstelle Frauenhandel und Frauenmigration), Centro de apoio às mulheres migrantes e vítimas de tráfico de mulheres, com sede em Zurique. De lá, ela e sua equipe atendem as mulheres violentadas por seus companheiros na Suíça, as vítimas de tráfico, e fornecem treinamento a policiais e assistentes sociais. “Os maus-tratos físico, psicológico e sexual contra as mulheres não são exclusividade de uma classe social, nível educacional e muito menos de um país”, explica Pereira, que é chefe do departamento de finanças e administração do FIZ.

No entanto, o Brasil acabou se destacando no noticiário internacional em junho com as histórias de duas adolescentes que sofreram estupro coletivo: uma, de 16 anos, do Rio de Janeiro, e outra, de 17 anos, em Bom Jesus, no Piauí. Os crimes geraram um movimento de mobilização nas redes sociais, que seguiu para as ruas do país, com protestos em diversas cidades. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a cada 11 minutos uma mulher é violentada no Brasil.

Na Suíça, segundo a especialista, a situação da violência contra as mulheres também é desafiadora. No ano passado, o FIZ, que tem um trabalho focado na violência contra as migrantes, atendeu 359 mulheres. Em 2014, foram 425 casos acompanhados. Na estatística estão inclusas vítimas de violência, tráfico de mulheres, orientação para trabalhadoras do sexo, entre outros tipos de atendimento.

A seguir, Pereira faz uma análise da situação e aponta os desafios.

swissinfo.ch: Quais são as diferenças entre a Suíça e o Brasil em relação à violência contra as mulheres?

Carminha Pereira: Violência contra a mulher não é uma exclusividade do Brasil. É algo que existe no mundo inteiro. Na mesma linha da descriminação de minorias, de negros, de homossexuais. Não é à toa que existe uma instituição como o FIZ, os abrigos para mulheres, a secretaria para igualdade entre homens e mulheres. Uma pesquisa publicada recentemente afirma que na Suíça as mulheres ganham até 25% menos que os homens. Ao se investigar quais seriam os aspectos que menos favorecem as mulheres, constatou-se que um dos grandes problemas é a maternidade. Ou seja, não estamos falando somente que as mulheres, em geral, ganham menos. Mas as mães ganham ainda menos do que as mulheres que não são mães. Ou seja, na Suíça existem vários problemas, que estão longe de serem resolvidos.

swissinfo.ch: E em relação à violência contra as mulheres?

C.P.: Tanto aqui quanto no Brasil a violência não é um fenômeno específico de uma classe social, ou de um determinado grupo. Muitas mulheres não se abrem, não acham que têm que reclamar, ou então têm uma série de dependências, psicológicas, financeiras, sociais, que ainda as impendem de quebrar o ciclo. A vida de mulheres que vivem sozinhas, cuidando dos seus filhos é tão difícil aqui na Suíça quanto no Brasil. Até é compreensível o fato de que muitas acabam ‘dando um jeito’, aguentando a situação para o bem das crianças. No entanto, sabemos que essa opção de permanecer com o marido violento por causas das crianças têm consequências negativas. É uma ilusão achar que a criança vai passar por essas experiências sem ser afetada.

swissinfo.ch: Entre 2014 e 2015 houve uma pequena redução no total de casos atendidos pelo FIZ. Mas como têm sido as ocorrências de tráfico ao longo dos últimos anos?

C.P.: Publicamos anualmente o número dos casos que atendemos. Dentro desses casos, existem alguns que demandam mais esclarecimentos, mais confirmação sobre o que realmente ocorre. Na verdade, não podemos dizer se os casos estão aumentando ou se mais casos estão sendo descobertos por haver um aumento da sensibilidade com relação à esse tema. O FIZ vem investindo muito nos últimos anos no trabalho conjunto com a polícia. São eles, muitas vezes, que chegam primeiramente aos lugares. Por isso, é muito importante esse trabalho de capacitação profissional. Em muitos lugares em que não há esse preparo, as mulheres são presas, e por não ter permissão para ficar no país são deportadas. Não se procura saber a razão de ela estar aqui, em quais condições estava trabalhando e tudo mais. Então, o trabalho com a polícia tem sido fundamental para detectarmos os casos e atendermos as vítimas.

O trabalho do FIZ

O FIZ (Centro de apoio às mulheres migrantes e vítimas de tráfico de mulheres) tem sede em Zurique e opera em 3 frentes. Uma delas é o departamento de formação e de trabalho político. “Damos palestras nas faculdades de serviço social, para grupos de policiais, para pessoas que trabalham na identificação de vítimas, para pessoas que trabalham nos centros de refugiados”, explica Carminha Pereira.

Outra área de atuação é o trabalho direto com os migrantes, vítimas de violências em geral. E o terceiro departamento – o chamado FIZ Makasi – faz atendimento as vítimas de tráfico de mulheres. Esse último completou 10 anos de existência em 2015. “Temos também acordos com vários cantões para os quais trabalhamos em casos de atendimento das vítimas de tráfico.

Segundo a lei, uma vítima tem uma série de direitos”, explica Pereira. “De qualquer forma, procuramos manter sempre nossa independência. Somos partidários das vítimas. Isso significa, muitas vezes, que temos até que ser contra algumas decisões e legislações vigentes. Por exemplo, defendemos que uma vítima de tráfico tivesse o direito de ficar na Suíça independente se ela vai fazer ou não uma delação do seu agressor.

Já a lei prevê que seu direito a ficar no país esteja atrelado à questão da delação. Muitas vezes, as mulheres têm muito medo porque não sabem exatamente as repressões que podem sofrer. Toda essa questão do trafico está muito baseada no medo, na chantagem.” 


swissinfo.ch: Mas a consciência por parte da opinião pública sobre a existência desses casos mudou?

C.P.: Houve um aumento da conscientização sobre o assunto nos últimos anos. Antigamente, as pessoas diziam ‘imagina, isso não acontece aqui’. Acreditavam que aconteciam na África, na Ásia, longe daqui. Veja o caso da violência doméstica. Ela acontece e acontece aqui. Senão os abrigos não estariam cheios. Mas muitas pessoas não querem se confrontar com o fato de que isso acontece em nosso ‘paraíso’. A realidade acaba gerando uma frustração. Ou seja, de que aqui não é tudo perfeito como se fala. Nesse aspecto fica difícil fomentar a consciência pública em relação ao tema. E é um trabalho que temos que fazer. O importante é que as vitimas tenham o atendimento necessário.

swissinfo.ch: Como você avalia o episódio dramático da adolescente carioca estuprada por 33 homens no Rio de Janeiro?

C.P.: O Brasil está passando por um momento bastante crítico. É muito trágico e muito doloroso para a adolescente, para as pessoas que estão ao seu lado. Mas ao mesmo tempo, é preocupante o fato de que o que fez o caso tomar tamanha dimensão foi a reação da mídia, esse fato de ter sido filmado e colocado nas redes sociais. Aí penso: quantos estupros aconteceram e não são filmados, e não aparecem? Não quero desvalorizar esse caso, e nem desmerecer. Mas isso me faz pensar sobre a gravidade da situação. Não é apenas um caso. Acontece cotidianamente.

swissinfo.ch: E, em sua avaliação, como entra o papel da mídia na equação, e também o crescente uso das redes sociais?

C.P.: Às vezes, existe um consumo exacerbado de informação que me preocupa, que não necessariamente é sustentável, nem profundo. De repente, temos um assunto que desperta um interesse enorme. Assistimos a uma comoção por um período de tempo. Mas logo em seguida, o tema morre, e a poeira se assenta. Tudo volta a ser como era antes. Sabemos que não é de hoje que existem vários grupos trabalhando em prol dos direitos da mulher. Abrigos para mulheres existem, mas fracassam ou não vão pra frente por falta de verba ou por falta de uma conscientização maior sobre a violência contra a mulher. Sem desmerecer a tragédia deste fato, para mim, não é algo novo. O novo é essa confusão midiática que se faz. Se isso servir para alguma coisa, tudo bem.

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swissinfo.ch: Desde o anúncio do ocorrido com a adolescente no Rio de Janeiro, várias passeatas e protestos foram organizados por mulheres em diversas cidades do país. Existe uma possibilidade destas novas gerações e seus movimentos conseguirem gerar alguma mudança?

C.P.: Um protesto não gera necessariamente uma mudança substancial na sociedade, mas pode contribuir para uma maior conscientização do problema. O protesto pode fazer com que algumas pessoas comecem a se questionar, a pensar. Mas o que realmente vai fazer a diferença são as mudanças substanciais nas regras. São mudanças não só nas leis, mas em sua implementação, em trabalhos de base, com uma força maior. O Brasil, em termos de lei, nem é tão ruim. Temos a Lei Maria da Penha, que visa aumentar o rigor das punições sobre crimes domésticos. Mas a lei não muda a cabeça das pessoas. A lei apoia as mulheres que estão dispostas a denunciar seus agressores. No entanto, para chegar à denúncia, a mulher tem que superar uma série de barreiras: ir contra a própria família, seguir sem apoio, superar, muitas vezes, esse ‘imaginário popular’ de que o homem realmente tem mais poder – e muitas mulheres aceitam isso e têm essa como uma verdade estabelecida. Ou seja, as mudanças precisam ocorrer em vários níveis: jurídico, comportamental, cultural. E para se implementar tudo isso, precisamos de medidas concretas. E uma Secretaria da Política para Mulheres que apoie essa luta.

swissinfo.ch: A situação é bem desafiadora… 

C.P.: Minha frustração vem do fato de que, se por um lado, tem um grupo de mulheres que vai paras ruas protestar, temos outro grupo, com maior poder, que e joga um balde de água fria nos protestos. E diz: não, esse não é o caminho. São contradições claras. Essas novas gerações podem até ter uma consciência maior sobre seu papel, no sentido da igualdade de direitos entre homens e mulheres. O problema é que essa igualdade pode ser teórica e na prática não se sustentar. Muitas vezes os próprios indicadores socioeconômicos brecam esse equilíbrio, quando constatamos, por exemplo, quando as mulheres ganham menos, mesmo fazendo o mesmo trabalho que seu colega do sexo masculino. As mulheres continuam a ter dupla jornada de trabalho, são as responsáveis pela educação das crianças etc.


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