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Quando o retorno desperta o sentimento de luto

A psicóloga Gabriela Broll Ribeiro.
A psicóloga Gabriela Broll Ribeiro estuda a adaptação de migrantes na sociedade suíça. swissinfo.ch

De repente o espírito é tomado por uma escuridão que dói a alma. A pessoa se sente deslocada onde quer que esteja: no exterior, ou no país de origem, para onde volta por achar que pode se reencontrar.

Pois é ali mesmo, cercada de antigos amigos e familiares, que se dá o inesperado: a percepção de que algo se perdeu enquanto ficou longe e que nada mais faz sentido, de que as coisas e as pessoas mudaram. Segundo a psicóloga Gabriela Ribeiro Broll, a esse sentimento dá-se o nome de síndrome do retorno. Acostumada a lidar com migrantes que sofrem com o problema há 11 anos, Gabriela fala à swissinfo.ch sobre o desafio de lidar com a readaptação ao país de origem e das dores que o migrante terá que enfrentar.

* Artigo do blog “Suíça de portas abertas” da jornalista Liliana Tinoco Baeckert.

swissinfo.ch: O que é a síndrome do retorno?

G.R.B.: Eu diria que se trata do verdadeiro estrangeiro global, não se reconhece em nenhuma cultura e sofre com uma crise de identidade, esteja na rua onde cresceu ou a milhares de quilômetros de casa. É pego de surpresa quando retorna ao seu país, já que voltou para se sentir em casa; mas é tomado pelo susto de não conseguir se aclimatar.

A readaptação pode ser um período que desafia o viajante por meio de um conjunto de respostas emocionais e comportamentais que muitas vezes são inesperadas e geram sofrimento. A Síndrome do Retorno ou Regresso é a forma de vivenciar essa tentativa de ambientação, que pode vir acompanhada de dor, sensação de desajuste e de muito esforço desprendido para sentir-se bem em um local que um dia foi seu lar, lugar de referência. Isolamento, confusão em relação a identidade, sentimentos como raiva e tristeza podem mostrar que a adaptação na volta pode ser mais difícil que a da ida.

swissinfo.ch: E quem recebe o migrante de volta, como se sente?

G.R.B.: Na maioria das vezes, as pessoas que convivem com a vítima da síndrome também padecem, porque não têm o verdadeiro alcance do que acontece. Quem ficou no país não compreende as experiências vividas no exterior e não pode entender o distanciamento e sofrimento de quem chega. Interpreta como arrogância, desinteresse, obsessão pelo que passou e até mesmo falta de consideração com quem ficou.

swissinfo.ch: Poderia explicar como acontece o processo da síndrome do retorno? 

G.R.B.: Uma boa forma de entender esse momento, que pode durar de seis meses a dois anos, é saber que se trata de um período em que o migrante enfrenta muitos lutos. Quando há uma perda significativa, há luto. Ter a oportunidade de migrar e viver as maravilhas de estar em contato com outras culturas traz muitos ganhos que vêm acompanhados de perdas. Migrar é vivenciar a dor da morte na ida e na volta.

Na ida, todas as referências precisam ser deixadas para trás. O cérebro e a atenção precisam deixar de lado o velho para abrir espaço para o novo: idioma, comida, amizades. Isso dispende muito esforço cognitivo e emocional. Essas conquistas geram novos gostos, ampliam os horizontes e possibilidades se abrem, novas competências e habilidades se desenvolvem. E assim, da superação do luto do que era conhecido e do aprender uma nova forma de viver, um novo sujeito nasce dessa experiência.

Na volta, tudo de novo. No entanto, o luto no retorno pode ser mais dolorido, pois é assustador se deparar com a sensação de perder o controle e o carinho com aquilo que um dia foi tão conhecido. Certo grau de confusão e culpa é esperado, pois geralmente há expectativas positivas e ânimo ao embarcar de volta rumo ao seu lugar de origem, às pessoas amadas, a tudo aquilo que um dia foi aconchego. No entanto, pode ser muito desconfortável chegar nesse contexto e perceber que parte da intimidade foi perdida. Às vezes, o sentimento é de que a própria identidade da pessoa está sendo ameaçada.

swissinfo.ch: Como se dá evolução do problema e como se desencadeia o sentimento de luto?

G.R.B.: Uma boa forma de lidar com a dificuldade é entender o luto. Se o migrante o compreende pode entender seus sentimentos e criar estratégias. A dor da morte pode ser dividida em cinco fases, de acordo com a psicóloga suíça Elisabeth Kubler-Ross.

A primeira é a negação, mecanismo de defesa que possibilita que a pessoa negue a questão e, de alguma forma, se engane, achando que não está vivendo o problema. O principal motivo é a dificuldade de entender e aceitar o que está acontecendo. Os motivos de retorno ao próprio país são muitos: acabou o intercâmbio, o contrato de trabalho na empresa, o relacionamento terminou, o visto acabou, entre tantos outros. Mas se a pessoa não escolheu e nem gostaria de voltar, o problema pode ser agravado.

Também nessa fase há uma supervalorização do que ficou para trás, negando as dificuldades que também se faziam presente no exterior. Às vezes a pessoa cria uma rotina parecida com a que tinha no outro país, trazendo mais frustração já que os resultados não serão os mesmos. É comum chegar no mercado e procurar pelos itens que costumava comprar ou querer fazer os mesmos programas sociais.

A Raiva também faz parte. Acontece quando a pessoa sabe que a realidade não vai mudar; não haverá retorno. Nesse momento, é comum achar uma injustiça ou ainda direcionar o sentimento a outras pessoas e situações.

A Negociação é outra fase. Geralmente faz promessas para si mesma ou pensa que se tivesse agido diferentemente poderia ter ficado lá. São algumas fantasias que criam um cenário ilusório em mente: “Tenho certeza que viverei lá novamente”, “Vou ficar por aqui um tempo e me reorganizar para voltar”, “Vou frequentar lugares que falam inglês para me sentir mais perto”.

Há infelizmente a fase da depressão. Nesse momento, a tristeza fica mais intensa, o migrante se isola e se vê como impotente em relação ao que sente. É o estágio mais intenso do luto, quando se dá conta de que a realidade externa não vai mudar. É uma fase específica e transitória, mas pode trazer a necessidade de um acompanhamento médico e medicamentoso. Cansaços, desânimos, solidão a alteração do sono e apetite são esperados. O migrante precisa de muito apoio de seus amigos e familiares, que precisam entender que toda essa complexidade de sentimentos não é pessoal.

E por fim, a Aceitação, etapa que acontece quando a pessoa consegue se relacionar com a realidade. É quando aceita que mudou e consegue equilibrar os aspectos locais com os conquistados no exterior, integrando-os dentro de si.

swissinfo.ch: É necessariamente obrigatório vivenciar todas as fases do luto?

G.R.B.: É fundamental esclarecer que o migrante pode vivenciar uma, duas ou todas as fases; mas o luto só é superado quando há aceitação. Não tem uma regra específica, é possível revisitar uma etapa mais de uma vez, ou ficar estagnado em alguma. A estagnação, entretanto, invalida a reintegração. Um dos papéis do psicólogo intercultural é justamente ajudar a pessoa a entender e identificar em que etapa se encontra, permitir que o luto aconteça e criar estratégias para superar.

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swissinfo.ch: Todas as pessoas que retornarem ao seu país de origem irão sofrer igualmente?

G.R.B.: As variáveis que determinam porque algumas pessoas sofrem mais que outras são muitas, desde a estrutura psíquica e emocional, capacidade de lidar com mudanças e perdas, se a pessoa teve escolha na decisão de voltar e apoio da comunidade que a recebe. A qualidade da migração também tem seu papel, pois quanto mais plena e consciente foi a experiência, menos arrependimentos e fantasias atrapalham a readaptação.

swissinfo.ch: A pergunta que não pode deixar de ser feita: como lidar com o problema? É possível curar essa dor?

G.R.B.: Apesar desse fenômeno ser angustiante, pode ser superado. O importante é ter paciência e força para enfrentar. Luto não vivido é sentimento não superado. Aceitar que é natural sentir-se assim é importante. Ainda bem que a maioria das pessoas supera e extrai a beleza de cada etapa, vivendo muito bem no país de origem, com gratidão pelo que viveu lá fora, cheia de experiências significativas.

Um psicólogo intercultural como eu, por exemplo, apoia pessoas a viverem situações de migração e encontros interculturais. É um serviço especializado em ajudar o migrante a se adaptar e ser feliz em terras e culturas estrangeiras.  Ou, por exemplo, a se readaptar no país de origem, superando a inesperada Síndrome do retorno. O importante é ficar atento aos sentimentos e procurar ajuda quando necessário.

As cinco fases do luto

Negação – mecanismo de defesa que possibilita que a pessoa negue a questão e, de alguma forma, se engane. Para minimizar a dor, o migrante racionaliza o que está passando, se convencendo, por exemplo, de que “voltou na hora certa” ou que “já estava cansada da vida lá fora.

Raiva – Culpar e criticar são as palavras de ordem aqui: por que ninguém me entende? São válvula de escape. Frases como por exemplo, “Eu odeio o jeito dos brasileiros trabalharem” fazem parte do script.

Negociação –  A pessoa pode se sentir aliviada porque é uma tentativa de fazer a vida de antes voltar, mas ainda se mantém com os pensamentos e coração no exterior, o que a impede de criar estratégias concretas de adaptação aonde está.

Depressão – fase marcada por tristeza intensa e até isolamento. É uma fase específica e transitória, mas pode trazer a necessidade de um acompanhamento médico.

Aceitação – quando a pessoa consegue se relacionar com a realidade. Pode haver saudade, mas também tem prazer nas atividades sociais no país de origem.

Para entrar em contato com Gabriela Broll Ribeiro: http://www.interculturando.com.brLink externo​​​​​​​

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