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O tráfico de seres humanos encontra espaço no racismo e na ideia de lucro fácil

mulher com policiais
O trabalho conjunto do FIZ com a polícia suíça é importante no sentido de ajudá-la a identificar as vítimas e de não focar na repressão Keystone / Gaetan Bally

A série realizada para swissinfo.ch sobre o crime traz mais um lado dessa dramática situação. Hoje, 31 de julho, é o Dia Internacional contra o Tráfico de Seres Humanos, momento de voltar a falar sobre o assunto.

O crime ainda é subnotificado na Suíça; somente nove, dos 26 cantões, tratam do tema com a nomenclatura correta, o que contribui para maquiar a realidade.

Os agressores não são doentes, são pessoas que sabem que o tráfico envolve muito dinheiro. É maldade somada a um desejo capitalista de lucro acirrado com pouco trabalho”. Dessa maneira, a austro-holandesa Eva Danzl tenta explicar o crime no qual lida diariamente há 24 anos.

Artigo do blog “Suíça de portas abertas” da jornalista Liliana Tinoco Baeckert.

Aconselhadora no FIZ, sigla que significa em português Centro de apoio às mulheres migrantes e vítimas de tráfico de MulheresLink externo, Danzl convive com os horrores da violência e da vigarice. Como o FIZ tem um abrigo para vítimas de tráfico de mulheres e também atende de forma ambulante, Eva acaba sendo testemunha dos profundos sofrimentos causados por uma das mais maquiavélicas maldades que o ser humano é capaz de cometer.

Entre suas diversas atribuições, estão além da orientação direta à vítima, o acompanhamento à polícia e até aos tribunais, se necessário, por exemplo. “Convivo com a dor dessas pessoas por anos e até conheço, em algumas ocasiões, os seus algozes. Sei que é difícil, mas tento trazer de volta a dignidade perdida.”

Para Danzl, faz-se necessário que a sociedade entenda, de uma vez por todas, que essas pessoas são vítimas, mesmo que tenham escolhido atuar como prostitutas. “O que está em xeque aqui é o livre arbítrio e que não se pode trabalhar sem receber, sofrer maus-tratos, ter o seu passaporte roubado ou ser obrigada a fazer o que não quer”, afirma.

Mesmo habituada com lado ruim da humanidade, guarda extrema doçura ao brincar com o neto de sete anos em seu apartamento, onde recebeu a reportagem para swissinfo.ch em uma longa conversa em português. Eva Danzl é casada com um brasileiro e fala muito bem o idioma.

swissinfo.ch: Li em reportagens que o FIZ assessora a polícia suíça no que diz respeito ao tráfico de seres humanos. Como é o trabalho do FIZ com a polícia suíça?

Eva Danzl: O FIZ vem trabalhando desde 2001, quando organizamos a primeira mesa redonda cantonal em Zurique para estabelecer uma cooperação interdisciplinar entre órgãos governamentais e outras organizações. Esse grêmio tem a finalidade de traçar uma estratégia para combater o tráfico de seres humanos, assim como apoiar as vítimas. O trabalho conjunto com a polícia suíça é importante no sentido de ajudá-la a identificar as vítimas e de não focar na repressão. Queremos que as autoridades se conscientizem e se sensibilizem.

É difícil identificar uma vítima de tráfico de mulheres. Em tráfico de drogas, procura-se por drogas. Mas em caso de comércio de seres humanos, não há como provar. O nosso objetivo é orientar sobre como seria a melhor forma de apoiar essas pessoas e não sobre como reprimir.

Trabalhar com esse tema significa atuar em processos muito complexos, a vítima nem sempre está pronta para reconhecer e entender a sua própria situação. Por isso acompanhamos essas mulheres e as apoiamos em suas necessidades.

O FIZ também dispõe de um serviço de relações públicas e um serviço educacional que dão palestras para outras organizações. O centro oferece módulos de capacitação profissional para universidades e organizações que trabalham com possíveis vítimas, assim como oferece consulta pública para estudantes e alunos. O FIZ também atua em vários comitês federais, por exemplo.

swissinfo.ch: Em uma matéria do jornal Tages AnzeigerLink externo, o FIZ fala em 230 atendimentos de tráfico de seres humanos em 2016, mas alerta para o fato de a cifra ainda ser uma caixa preta fechada.

E.D.: Os números de 2018 são mais ou menos os mesmos como nos anos anteriores: 221 casos. E tem um problema mais sério, se as autoridades do cantão, e principalmente a polícia, não forem sensibilizadas sobre a questão, os números não refletem a realidade, pois muitos casos não são descobertos ou eles provavelmente tratam esses casos como violência doméstica.

Nos cantões onde há polícias especializadas, há maior número de pessoas encontradas nessas condições, o que comprova que os números não representam a realidade. E aqui na Suíça, somente nove, dos 26 cantões, trabalham oficialmente em conjunto com o FIZ. Isso significa que em outros cantões o tráfico de seres humanos não é descoberto ou são registrados muitas vezes como delitos sexuais ou as mulheres são punidas por não ter uma permissão de estadia legal e por isso são expulsas do país.

swissinfo.ch: Quem são os traficantes de brasileiras aqui na Suíça? São conterrâneos?

E.D.: Não somente, isso é muito importante lembrar. Tem também suíço envolvido, não é só estrangeiro. Pode ser inclusive mulher. Tem um caso típico de um bordel, em Solothurn, cujo o dono, um suíço, tinha uma preferência pelas brasileiras. Eram várias moças de Minas Gerais. Nós atuamos nesse caso específico também.

swissinfo.ch: A maioria das vítimas de tráfico de seres humanos é de mulheres?

E.D.: O relatório da ONU “Relatório Global sobre o Tráfico de Pessoas”, de 2016, afirma que 51% das pessoas afetadas são adultos traficados e 28% crianças. As vítimas do tráfico de seres humanos para fins de exploração sexual são principalmente mulheres, e a vítima “típica” do tráfico é uma mulher que é forçada a fazer sexo.

swissinfo.ch – Todas as vítimas de tráfico de seres humanos são migrantes?

E.D.: Na verdade, quase todas as vítimas do tráfico na Suíça são migrantes. Mas o comércio de mulheres não precisa necessariamente estar ligado à migração. Qualquer pessoa que tenha sido recrutada para um emprego que inclui deturpação, engano ou fraude e permanecer no trabalho devido à coerção é afetada por esse tipo de tráfico.

Muitos migrantes vivem em circunstâncias muito precárias e acreditam nas falsas promessas dos traficantes, porque dependem urgentemente de sua situação e têm poucos recursos próprios. Pessoas vulneráveis de regiões economicamente desfavorecidas são o principal grupo alvo dos traficantes. E como o Brasil, infelizmente, vive essa realidade, as brasileiras estão na mira. Com essa crise econômica e política que o país vem enfrentando nos últimos anos, com certeza torna-se mais propenso.

swissinfo.ch – Qual a importância de dar parte à Polícia e levar o caso para a Justiça?

E.D.: É importante que essa mulher saiba que, mesmo que seja difícil, ao dar parte, ela ajudará que esse agressor não cometa o crime com outra pessoa desavisada. Além disso, ela terá ajuda do Estado, inclusive local para se esconder. É possível também pedir indenização.

swissinfo.ch – Como você vê esse criminoso? Pode-se dizer que tem o perfil de um psicopata?

E.D.: É muito difícil personalizar, porque tratam-se de diversos tipos e nuances do mesmo crime. Mas vou te dar um exemplo tratado em uma de suas matérias, a da carioca que veio casada para a Suíça e foi prostituída e traficada pelo próprio marido suíço, publicado pela swissinfo.ch no dia 29 de novembro de 2018. Eu vejo nesse caso, assim como em vários que têm a exploração como pano de fundo, um contexto estrutural de predisposição para o racismo, da crença de uma supremacia de uma nacionalidade ou de uma cor de pele sobre a outra. Tem muita relação com aquela ideia da mulher exótica, da negra brasileira ou estrangeira.

O racismo diminui o outro a uma categoria diferente de ser humano. E o fato dessa pessoa não ter o mesmo status na cadeia social do agressor. Esse personagem se sente superior, acredita que tem o direito de agredir, de explorar. Então, esse assunto todo gera em torno da questão da igualdade.

Os agressores não são doentes, são pessoas que sabem que o tráfico envolve muito dinheiro. É maldade somada a um desejo capitalista de lucro acirrado com pouco trabalho.

swissinfo.ch: O que um país pode fazer para evitar tal tragédia?

E.D.: Países ricos como a Suíça precisam tratar essas pessoas como vítimas e não como criminosas ou simplesmente ilegais. Já é um grande início para combater esse tipo de crime. E claro, tornar o problema público, e não jogar por baixo do tapete.

swissinfo.ch: Como ficam essas mulheres após passarem por esse tipo de violência?

E.D.: Muitas sofrem de transtorno pós-traumático, outras de depressão. Dentro desses quadros, elas podem experimentar flashbacks, que são a volta das imagens terríveis das situações pelas quais vivenciaram.

Por isso, a presença de uma pessoa do FIZ no momento em que elas precisam denunciar é tão importante. Elas serão confrontadas com aqueles momentos novamente na Polícia e na Justiça.

Algumas experienciam a dissociação, que é sair da realidade e reviver esses traumas quando precisam recontar a história.

Mas a superação é possível. Muitas dessas mulheres têm muitos recursos internos próprios que conseguimos acessar. Trata-se de resiliência, força e, por incrível que pareça, o humor. Com o tempo, algumas até conseguem rir do que viveram, apesar da dor ainda estar presente. E isso é o melhor. Achar graça de um cara, como o opressor que um dia tentou tomar conta da vida dela, é a vitória.

 

Fachstelle Frauenhandel und Frauenmigration (FIZ):
044 436 90 00
contact@fiz-info.ch

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