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“A Síria que conhecemos antes da guerra está perdida para sempre”

Paulo Sérgio Pinheiro em coletiva à imprensa na sede da ONU em Genebra, em junho de 2015. Reuters

A combinação de um regime autoritário e de um Estado secular, não religioso, com tolerância dos diferentes grupos religiosos, certamente não existirá mais. O ponto positivo é que os refugiados querem voltar para a Síria assim que a guerra acabar. Um primeiro encontro entre prós e anti-Bachar el-Assad é previsto dia 25 de janeiro, em Genebra.

A Comissão de Inquérito Internacional Independente sobre a Síria, mandatada pelo Conselho dos Direitos Humanos desde 2011, tem fornecido informações para a justiça de alguns países. “Isso é algo novo, que começou em 2015 e absolutamente sigiloso. Não indicamos que países solicitaram nem que tipo de informação fornecemos”, explica para swissinfo.ch o presidente da Comissão Paulo Sérgio Pinheiro. A entrevista ocorre no Palácio Wilson, em Genebra, sede do Alto Comissariado para os direitos humanosLink externo.

 swissinfo.ch: A comissão que o senhor preside sempre criticou a inércia do Conselho de Segurança da ONU, sobretudo dos cinco membros com direito de veto, com relação ao conflito sírio. Agora, todos estão na guerra, menos a China. O CS ouviu ou interpretou mal as críticas da Comissão?

Paulo Sérgio Pinheiro: É meio difícil avaliar isso. O que eu posso dizer é que, desde setembro de 2011, quando a comissão foi instalada, nós temos chamado a atenção para a responsabilidade do Conselho de Segurança na violação dos direitos humanos e do direito internacional humanitário. Naquela época ainda não haviam entrado em cena os dois grupos terroristas, o Estado Islâmico e o Jabbh al-Nosra. Então temos insistido para que a impunidade, inclusive de crimes de guerra, não prospere, mas até agora não vimos nenhum resultado específico.

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Se, no início eram 200 mil, agora temos mais de 4 milhões de refugiados, mais de 6 milhões de deslocados internamente. Na ausência de uma solução – e os cinco membros permanentes do CS têm uma enorme responsabilidade – ocorre a impunidade e, o que é pior, a radicalização, que é produto dessa inação do Conselho de Segurança. Como você mencionava, eu não posso atribuir isso à nossa responsabilidade, mas houve duas reuniões em Viena que terminaram com documentos de consenso, com representantes das principais partes em conflito. Isso abre uma pequena janelinha de esperança. Quanto à intervenção armada de quatro dos cinco membros permanentes, parece que falta coordenação e clareza de objetivos dessa intervenção.

Membros da Comissão

Paulo Sergio Pinheiro (Brasil) – Presidente

Karen Konnig AbuZayd (Estados Unidos)

Carla Del Ponte (Suíça)

Vitt Montarbhorn (Tailândia

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 swissinfo.ch: Há divergências quanto à continuidade ou não do presidente Assad.

PSP:. Como disse o Secretário-Geral da ONU recentemente, os três membros permanentes ocidentais têm tratado da continuidade ou não do governo Assad como um refém das negociações. É preciso que as negociações avancem e depois, em um certo momento, se tratará disso. No espírito do encontro de Genebra de 2012, não há nada explícito a respeito da continuidade ou não do presidente Assad. Mas é óbvio que num processo de transição, como em qualquer outra transição no mundo, o governo que existe no processo de transição tem de ser considerado. Então não será diferente na Síria. Se o debate continuar centrado da continuidade ou não do presidente Assad, como há uma divergência, vai ser muito difícil avançar no processo de negociação.

swissinfo.ch: O ministro suíço das Relações Exteriores, Didier Burkhalter, disse recentemente que o presidente Assad é parte da solução e não do problema.

PSP: Nós nunca entramos nesse debate para não ferir os Estados-membros da ONU. Esse é um debate mais ligado ao trabalho de meu colega, o emissário da ONU para a Síria Sttafan de Mistura. A comissão tem relembrado aos Estados-membros de suas obrigações em relação à população civil, respeitando as convenções internacionais dos direitos humanos e o direito internacional humanitário. Também temos chamado a atenção de todos os Estados envolvidos e que fornecem armas ou ajuda específica para um lado ou para outro, que eles têm responsabilidades se essas armas forem usadas para cometer graves violações dos direitos e crimes de guerra. Não vamos muito além disso porque não está no nosso mandato. Nosso mandato diz respeito aos sírios – por isso é que tratamos dos refugiados mesmo fora da Síria, e ao conflito especificamente dentro da Síria. Apesar de seguirmos o mais detalhadamente possível o envolvimento de cada um dos Estados-membros, essa conduta não faz parte da nossa investigação.

swissinfo.ch: O fato de ter mais países bombardeando o país, piorou ainda mais a situação da população civil?

PSP: Nós temos recebido representantes diplomáticos desses países que fazem bombardeios e temos sempre levantado essa questão. O envolvimento desses países na luta contra o terrorismo, não faz parte do nosso mandato. Primeiro, não temos acesso à Síria, então nossa capacidade de informação é limitada. Talvez no próximo relatório, com esse envolvimento maior, toquemos nesse assunto, mas temos sido muito sóbrios a esse respeito.

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swissinfo.ch: O trabalho da comissão é documentar. Ela espera que um dia, os crimes serão julgados por um tribunal?

PSP: Evidentemente. Nós temos mais de 4.300 entrevistas em um banco de dados bastante sofisticado aqui nesse prédio. É claro que esperamos que um dia a justiça seja feita contra os perpetradores desses crimes. Temos mencionado várias hipóteses: uma é referir-se ao Tribunal Penal Internacional, mas não há acordo entre os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança. Então essa via não é para amanhã. O fato da Síria não ser membro do TPI, só o CS é que pode levar esse caso diante do TPI. Nós também sugerimos um tribunal Ad hoc, um tribunal híbrido misturando um dia juízes sírios e estrangeiros. Nós temos debatido isso, mas também só pode ser estabelecido pelo Conselho de Segurança. Então, dadas essas dificuldades, nós resolvemos compartilhar informações específicas sobre incidentes e perpetuadores, atendendo a um pedido formal do Judiciário ou do Ministério Público de alguns países. Como as investigações nesses países evidentemente são confidenciais, nós não dizemos que países solicitaram nem que informações nós demos. Quer dizer, não é uma pescaria no nosso banco de dados. Não dá pé fazer isso. Agora, se um país tem necessidade de completar informações sobre incidentes ou indivíduos específicos, nós temos fornecido essas informações e isso é uma novidade e começamos a fazer em 2015.

swissinfo.ch: Como a comissão recolhe tantas informações se não tem acesso à Síria?

PSP: É claro que é uma dificuldade imensa o país não nos deixar entrar. Mas isso não quer dizer que não tenhamos informações de dentro da Síria. Primeiro, as grandes levas de refugiados que entrevistamos. Não ficamos entrevistando somente membros da oposição, como diz o governo sírio. Isso é bobagem. Na verdade, entrevistamos famílias inteiras que fogem dos combates. Temos também um programa intenso de entrevistas com sírios de dentro do país, muitas vezes por Skype. Não sei porque o Skype não é censurado. Felizmente. Também por celular, há pessoas muito corajosas. Tem pessoas que saem da Síria para se encontrarem conosco em outros países. Também não se pode esquecer que todas as agências da ONU estão na Síria e que são uma fonte importante. Não usamos nenhuma outra informação que não seja a nossa. Não utilizamos recortes de jornais nem relatórios, mesmo se muito sérios, de Ongs, ao contrário do que alguns países dizem. As informações que saem nos relatórios da comissão sempre têm pelo menos uma fonte corroborando. É um trabalho horrível, muito pesado, mas temos uma equipe de umas 30 pessoas aqui no quinto andar desse prédio. É gente muito capaz que já trabalham há quatro anos em toda essa investigação. Temos inclusive analistas militares. Viajamos na região e em outras capitais, mas nunca dizemos onde vamos. A culpa não é nossa de não podermos entrar na Síria. Então tivemos de inventar novas formas de obter informações.

swissinfo.ch: O senhor pode adiantar qual será o conteúdo do próximo relatório da comissão a ser publicado em março?

PSP: O último relatório foi um pouco diferente porque resolvemos tratar da população civil. Na verdade, quem paga o sofrimento dessa guerra é a população civil. Ninguém respeita regras, nem o governo nem os grupos rebeldes. Claro que os grupos terroristas também não respeitam nada porque não reconhecem o direito internacional. Eu acredito que as violações cometidas pelos grupos terroristas – e pelos grupos que trabalham com eles – será maior do que no passado. Temos que continuar falando da situação dos refugiados, fundamentalmente desses que vieram ou tentam vir para a Europa, das dificuldades de acesso à ajuda humanitária e depois dessas tentativas de negociação. Dizemos desde o princípio que não existe solução militar para esse conflito, só uma solução negociada, inclusive com a participação de todos os países envolvidos, poderá ter algum efeito. Continuaremos também a lamentar o não tratamento da impunidade. O relatório não pode ser muito diferente dos anteriores porque a situação só se agravou. Em novembro, fizemos mais um ‘briefing’ no Conselho de Segurança, onde eu disse mais ou menos o que estou dizendo aqui.   

swissinfo.ch: O fato de quatro dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança participarem dos bombardeios pode facilitar as negociações de um cessar-fogo?

PSP: A negociação não virá necessariamente pelo envolvimento na luta contra o grupo terrorista Estado Islâmico. Na realidade, é algo mais motivado pela necessidade de acabar a guerra. Eu acho que um elemento que convidou a essa tensão, talvez tanto quanto a luta contra o estado terrorista, foi a chegada de cerca de um milhão de refugiados à Europa. O que já estava ocorrendo com enorme intensidade na região, graças à imensa generosidade dos países vizinhos da Síria, acolhendo mais de 4 milhões de refugiados. Na Europa, as barreiras de arame farpado abalaram o mundo. Isso também pressionou os membros permanentes do Conselho de Segurança a ter de terminar o conflito, se não esse fluxo vai continuar. Essa nova onda de refugiados é devida ao alargamento do conflito a áreas que ainda não tinham sido atingidas. Estão inclusive utilizando o verbo que, em português bárbaro, seria ‘desconflitualizar’.

swissinfo.ch: Com quatro anos de guerra e tantas vítimas não existe muito ódio entre os sírios para que voltem a viver juntos?

 PSP: A Síria que existia antes da guerra, eu creio que está perdida para sempre. Era aquela combinação de um regime autoritário com um Estado secular, não religioso, ainda que com alguma manipulação, a tolerância dos diferentes grupos religiosos, inclusive de uma comunidade cristã. Agora, a transformação do conflito entre sunitas e xiitas resultou numa fratura entre comunidades que antes nem se percebiam se eram cristãos, sunitas ou xiitas. Nós nunca fizemos nenhuma pesquisa de opinião para saber se existe ódio. O que parece sim é que depois de quatros anos de guerra com um enorme envolvimento sunita, sem falar dos grupos terroristas que são contra tudo e todos. Agora, eu creio que a memória dessa convivência, como vemos nas entrevistas, não terminou porque é raro alguém que eu tenha entrevistado que não queira voltar para a Síria. Todos quem voltar. Todos querem voltar a colocar as crianças no colégio. Na primeira impressão de que o conflito está controlado, as pessoas voltam. Voltam por causa dessa memoria, porque vão querem conviver. Eu acredito que ainda exista o anseio de uma convivência não sectária e isso é muito positivo.

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swissinfo.ch:  O senhor foi relator para o Burundi, para Miamar, para a violência contra as crianças no mundo e há quatro anos para a Síria. O senhor tem uma carapaça para resistir a tantos horrores?

PSP: Eu tento não pensar em mim mesmo. As pessoas com as quais e sobre as quais eu sou levado a trabalhar estão numa situação tão pior do que a minha que a minha posição não tem a menor importância. Como eu estou fazendo isso há 20 anos, uma experiência ajuda a outra. Na comissão, as vítimas são o centro, não eu nem meus sentimentos. No caso da Síria, meus colegas e eu temos relações positivas com 30 países. Na minha primeira missão eu tive uma relatora, Brigite Lacroix, uma suíça formidável, que me disse: ‘Paulo, esquece tudo, o que conta são as vítimas’. Então se alguém quiser uma receita euro diria: não pensar em você, não se levar muito a sério e manter o bom-humor, do contrário você não faz nada. 

Biografia breve

Paulo Sergio Pinheiro é um acadêmico e cientista político brasileiro. Dentro das Nações Unidas, atuou como relator especial das Nações Unidas para o Burundi (1995-1999), relator especial sobre a situação dos direitos humanos em Myanmar (2000-2008). De 2003 a 2010 foi comissário e relator sobre as crianças na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos. Em 2003, o Secretário-Geral Kofi Annan nomeou o Paulo Sergio Pinheiro como perito independente, com o posto de Secretário-Geral Adjunto, a elaboração de um estudo aprofundado sobre o fenômeno global da violência contra as crianças. Este foi apresentado à Assembleia Geral em 2006.

Desde 2011, é presidente da Comissão Internacional Independente de Inquérito para a Síria.

No Brasil, ele foi um dos sete membros da Comissão da Verdade, criada em 2012 pela presidente Dilma Roussef, para examinar violações de direitos humanos durante a ditadura militar (1964-1985.
Ele tem uma longa carreira na acadêmica. Foi professor adjunto de relações internacionais no Instituto da Universidade de Brown Watson de Estudos Internacionais. Anteriormente, ele também ocupou cargos acadêmicos na Universidade de São Paulo, Universidade de Columbia, Universidade de Notre Dame e Universidade de Oxford.

 Fonte: Alto Comissariado da ONU para os direitos Humanos

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