O Pacto das Nações Unidas para o Futuro: da negociação à ação?
"Estamos aqui para resgatar o multilateralismo da beira do abismo", afirmouLink externo o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, na abertura da Cúpula do Futuro, em 22 de setembro, na cidade de Nova York. Na ocasião, a Assembléia Geral da ONU adotou o chamado Pacto para o Futuro, com o Pacto Digital Global e a Declaração sobre as Gerações Futuras anexados.
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Na semana seguinte, ainda em Nova York, pudemos ver vários líderes de Estado e de governo se manifestando na Assembleia Geral, andando para cima e para baixo pelos corredores com seus seguranças e delegações e comparecendo a reuniões e eventos bilaterais. Será que a cúpula e os textos adotados seriam suficientes para atender ao apelo do secretário-geral da ONU? Guterres havia pedido que fossem tomadas “decisões difíceis para voltar aos trilhos” num contexto em que o mundo está “perdendo o rumo”.
Em uma conjuntura marcada por conflitos e ameaças na Terra e no espaço sideral, seria possível nutrir um certo ceticismo em relação à ONU e ao multilateralismo. Apesar disso, vale a pena tentar argumentar que a negociação desses documentos foi importante e que muito depende do que será feito para transformá-los em ações concretas.
Negociações de última hora
Para aqueles acostumados com a incerteza das negociações multilaterais, que frequentemente se arrastam até os últimos instantes, o fato de essas árduas negociações intergovernamentais terem produzido resultados já é uma vitória. Cada documento foi o resultado de várias negociações individuais com todos os Estados presentes, sem mencionar as consultas à sociedade civil e a outras partes interessadas.
Durante semanas, vimos tentativas de fechar um acordo por meio do chamado “procedimento do silêncio”. Mas o silêncio foi quebrado apenas alguns dias antes da cúpula: bastava que um dos 193 Estados se manifestasse.
Perto da reta final, funcionários de alto escalão intercederam para superar o impasse. Naquele momento, o secretário-geral enfrentava o pior cenário possível: uma cúpula sem resultados e um sistema multilateral em que os Estados não conseguiam sequer concordar sobre um texto. Prevendo que a Federação Russa apresentaria uma emenda na Assembleia Geral, o secretário-geral havia preparado diversos discursos de acordo com os diferentes resultados possíveis.
Na abertura da Cúpula do Futuro, a tensão era palpável. Em resposta à emenda da Federação Russa, o Grupo Africano apresentou uma “moção de não ação”, nitidamente em apoio ao presidente da Assembleia Geral, Philemon Yang (Camarões). Apoiada pelo México, a “moção de não ação” foi adotada com 143 “sim”, 15 “não” e sete “abstenções”. Imediatamente depois, o Pacto para o Futuro foi adotado, tecnicamente, “por consenso”.
Da negociação à ação
A adoção do pacto foi a salvação das Nações Unidas? Ainda resta saber se a cúpula permitirá que a ONU “dê um novo começo ao multilateralismo”, como os Estados prometeram no pacto. Guterres afirmou com veemência: “não é apenas uma questão de concordar – é também uma questão de agir. Hoje, eu os desafio a agir”.
O texto negociado é suficientemente comprometido e ambicioso para se traduzir em ações concretas? Há quem responda prontamente que não: legalmente, o pacto não é mais vinculativo do que qualquer outra resolução da Assembleia Geral e seu conteúdo não atende à urgência e à escala dos desafios globais.
É verdade, mas a presença de um número tão grande de chefes de Estado e de governo pode ser vista como um compromisso político coletivo. Referindo-se aos altos e baixos que antecederam a aprovação do pacto, a presidente da Suíça, Viola Amherd, declarouLink externo: “Talvez por causa dessas dificuldades, o pacto esteja se mostrando um sinal importante e claro de compromisso com o sistema multilateral”.
Alguns, como o presidente Lula, relembraramLink externo que foram realizadas reformas na gestão do antigo secretário-geral Kofi Annan, como a criação de um Conselho de Direitos Humanos em Genebra, enquanto outras ideias não se concretizaram. “O Pacto para o Futuro nos mostra a direção a ser seguida” diante dos novos riscos e oportunidades, disse Lula, que também alertou: “isso exigirá um enorme trabalho de negociação (…). Não podemos esperar outra tragédia mundial, como a Segunda Guerra Mundial, para construir uma nova governança global sobre suas ruínas”.
Quanto ao conteúdo do pacto, suas disposições só conseguirão ser ambiciosas se forem implementadas. SeguindoLink externo as Modalidades da Cúpula do Futuro, o secretário-geral emitiuLink externo Resumos de Políticas detalhando as propostas feitas no relatório intitulado Nossa Agenda ComumLink externo. Dependendo do tema, o pacto é mais ou menos ambicioso. Ele apresenta 56 “ações”, divididas em cinco áreas: desenvolvimento sustentável e financiamento para o desenvolvimento; paz e segurança internacionais; ciência, tecnologia, inovação e cooperação digital; juventude e gerações futuras; e transformação da governança global.
Nitidamente, o pacto não reforma o Conselho de Segurança, descrito por Guterres como “ultrapassado” – uma avaliação que é comprovada pelo fato de as reuniões do conselho não resultarem em nenhuma ação contra a deterioração da situação no Oriente Médio. Mas, enquanto a Minuta ZeroLink externo tinha apenas um espaço reservado para a questão, o texto adotado faz referência às negociações em andamento acerca do “escopo e uso” do veto e a necessidade de ampliação do Conselho de Segurança. De forma significativa, todos os Estados concordaram em estabelecer como prioridade “corrigir a injustiça histórica contra a África” e melhorar a representação de outras regiões: Ásia e Pacífico, América Latina e Caribe.
O Pacto para o Futuro também não reforma o Banco Mundial ou o Fundo Monetário Internacional. Mas ele ressalta a “necessidade de aumentar a representação e a voz dos países em desenvolvimento nas tomadas de decisões econômicas globais, na definição de normas e na governança econômica global”. A pressão está aumentando, principalmente devido ao desenvolvimento de instituições financeiras alternativas por parte dos países do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Os esforços devem prosseguir no período que antecede a Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento, na Espanha, e a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social, no Catar, ambas em 2025.
Essas são reformas há muito tempo esperadas, já que a ONU, hoje com 193 membros, foi fundada por apenas 51 membros, enquanto o resto do mundo permanecia sob domínio colonial. Pavimentando o caminho para outra mudança necessária, o pacto aponta para “o fato lamentável de nunca ter havido uma mulher como secretária-geral”. E Guterres desafiou os Estados: “a desigualdade de gênero é totalmente visível neste mesmo salão. Menos de 10% dos oradores do Debate Geral desta semana são mulheres”.
No campo da tecnologia, os Estados se comprometeram, entre outros, a “aprimorar a governança internacional da inteligência artificial para o benefício da humanidade” e convocaram o setor privado a aplicar os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONULink externo. Medidas específicas estão delineadas no Pacto Digital Global e já foram lançadas iniciativas por Guterres e seu extraordinário enviado especial para a tecnologia, Amandeep Gill. Pouco antes da cúpula, o Órgão Consultivo de Alto Nível sobre Inteligência ArtificialLink externo do secretário-geral da ONU divulgou seu relatório final.
E a juventude e as gerações futuras?
Nos Dias de AçãoLink externo que antecederam a cúpula, a secretária-geral adjunta, Amina Mohammed, elogiou o arquiteto da cúpula – o subsecretário-geral, Guy Ryder –por garantir segmentos dedicados à participação dos jovens. Esse elogio provavelmente foi mais importante do que a linguagem um tanto vaga da Declaração, na qual os Estados “tomam nota da proposta do secretário-geral de nomear um Enviado Especial para as Gerações Futuras”. Na sessão #YouthLeadTheFuture, a Assembleia Geral lotada fervilhava com os clamores “Youth?” (“Juventude?”) da DJ CuppyLink externo, da Nigéria, e a resposta: “Action!” (“Ação!”), entoados de assentos normalmente reservados para discursos diplomáticos.
Será que essa manifestação foi um aceno à promessa do preâmbulo da Carta das Nações Unidas: “Nós, os povos”? Entre os palestrantes, pudemos ver pessoas muito diferentes, como a jogadora de futebol afegã Khalida Bopal e o presidente da Microsoft, Brad Smith. Saindo da movimentada ONU e da ilha de Manhattan, que estava repleta de escoltas policiais, fomos para o Harlem conversar com cidadãos comuns: nenhum dos afro-americanos abordados aleatoriamente parecia ter ouvido falar da Cúpula do Futuro e do pacto aprovado. Um deles perguntou: “É um pacto para os chefes de Estado ou para o povo?”
Agora, cabe a cada um de nós – à Coalizão pela ONU que PrecisamoLink externos, à campanha MadamSecretaryGeneralLink externo, às organizações da sociedade civil, às empresas e aos cidadãos – garantir que o Pacto para o Futuro negociado realmente leve à tomada de “decisões difíceis para voltar aos trilhos”. É preciso tomar as medidas necessárias para atender às bilhões de pessoas – e não apenas aos bilionários – diante das ameaças existenciais à humanidade e às gerações futuras.
Impossível? A primeira-ministra MottleyLink externo, de Barbados, foi aplaudida de pé quando nos convidou a lembrar que foi possível abolir a escravidão e libertar as pessoas do Apartheid, relembrando a postura do presidente Mandela: “é impossível até que seja feito”.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor e não refletem necessariamente as opiniões da SWI swissinfo.ch
Este artigo foi republicado em 14 de outubro para alterar a citação no último parágrafo. Anteriormente, o presidente francês Emmanel Macron era citado.

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