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A rede de segurança social da Suíça precisa cobrir todo mundo

Gabriel Barta, Emmanuel Deonna, Wahba Ghaly e Jean-Marie Mellana

Recentemente circularam na imprensa internacional imagens de milhares de pessoas fazendo fila a cada fim de semana para receber pacotes de alimentos na abastada Genebra. Os trabalhadores migrantes pobres e indocumentados foram duramente atingidos pela pandemia do coronavírus. Um grupo de cidadãos genebrinos preocupados com o assunto pede o respeito aos direitos fundamentais dos migrantes e a sua regularização.

Para muitos observadores estrangeiros, o direito fundamental à alimentação é algo que sempre foi observado na Suíça. No entanto, as recentes distribuições de ajuda alimentar pelas autoridades locais, ONGs e associações privadas no centro esportivo Vernets, em Genebra, parecem ter surpreendido a imprensa internacional.

Muitas vezes somos incapazes de tratar todos os seres humanos como seres humanos

Há quase um mês esta tendência é visível e continua a crescer. Na capital internacional dos direitos humanos, a segunda maior cidade da Suíça, e em um país muitas vezes elogiado por sua excelente organização econômica e social, parte da população está com grande carência de alimentos. Pessoas que antes não acreditavam que os direitos fundamentais estivessem em risco em nosso país estão subitamente conscientes de que a alimentação é um direito básico e que, se necessário, é responsabilidade da comunidade garanti-la.

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Distribuição de alimentos em 2 de maio de 2020 em Genebra.

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Quem está no grupo de risco da pobreza na Suíça

Este conteúdo foi publicado em As imagens causaram tanta impressão que foram veiculadas nas principais mídias internacionais, como o The GuardianLink externo (Inglaterra), New York TimesLink externo e a RFILink externo: centenas de pessoas numa fila de mais de um quilômetro no sábado passado, repetindo a cena do sábado anterior, para receber gratuitamente cestas de alimentos no valor de 20 francos cada…

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Garantindo os direitos fundamentais

Pessoas sem status legal, os chamados migrantes indocumentados, representam mais da metade dos que recebem as cestas básicas no Les Vernets. No entanto, aqueles que trabalham com essa população há anos e estão familiarizados com sua situação sabem que, na Suíça, mesmo os direitos fundamentais não só estão em risco, como às vezes são ignorados. Na realidade, muitas vezes somos incapazes de tratar todos os seres humanos como seres humanos. Se não fosse o espetáculo assustadoramente deprimente dos Vernets, poderíamos perfeitamente continuar fechando os olhos para o fato de que milhares de pessoas em Genebra, e uma estimativa de 100.000 “sans papiers” na Suíça, não ousam sequer denunciar um assalto ou um roubo. O estado de direito não se aplica a todos; aplica-se, antes de tudo, àqueles que possuem os papéis certos.

A esmagadora maioria dos nossos concidadãos provavelmente sente que é nosso dever garantir que todos tenham acesso à justiça, à alimentação, aos cuidados de saúde, etc. As pessoas muitas vezes insistem que na Suíça há sempre o direito de denunciar abusos, de receber tratamento no hospital e de ser ajudado se você perder seu emprego. Os fatos, no entanto, contam uma história completamente diferente. A falta de solidariedade e da oportunidade de fazer valer os seus direitos é revelada de forma categórica quando a sociedade tem que enfrentar constrangimentos extraordinários como o que estamos vivendo com a Covid-19. Não surpreende que quem está vulnerável ou em situação precária seja o primeiro a sofrer em tais circunstâncias.

Algumas autoridades e organizações ativas nas áreas de assistência e integração social começaram a notar e a deplorar tais áreas sem lei há muito tempo, e têm tentado fazer algo a respeito. 

Há trinta e cinco anos, Dominic Föllmi, conselheiro do cantão de Genebra, acompanhou pessoalmente uma jovem sem status legal à escola pela primeira vez. Desde então, seguindo o exemplo de Genebra, o direito fundamental das crianças de frequentar a escola tem sido respeitado em muitas partes da Suíça. Em outros lugares, a Unidade de Consulta Ambulatorial Móvel para Cuidados Comunitários (CAMSCO) do Hospital Universitário de Genebra também oferece atendimento médico, independentemente do status do paciente. 

Mas o medo da denúncia e da deportação significa que outros direitos fundamentais – como o direito à vida privada e familiar, o acesso adequado à justiça ou a proteção contra a exploração no trabalho – não estão, na prática, garantidos. Esforços notáveis estão sendo feitos por algumas autoridades e um grande número de ONGs, e eles devem ser bem recebidos. Entretanto, elas podem ser vistas como uma colcha de retalhos descoordenada ou, pior ainda, amadora. 

Diante desses exemplos e da situação daqueles que fazem fila no Les Vernets, é óbvio que a única abordagem que garantirá o respeito aos direitos fundamentais é a regularização dos migrantes indocumentados.

A regularização é fundamental, mas o fato de algumas pessoas que fazem fila no Vernets terem, na verdade, papéis regulares mostra que ela não é suficiente. O que é realmente necessário é eliminar a precariedade de uma forma mais geral, a ameaça permanente de mergulhar de repente na pobreza. Muitas pessoas vão ao Vernets porque não se atrevem a tirar proveito das prestações sociais a que têm direito, por medo de perder seu status de residência. Para muitos estrangeiros, não requerer a previdência social é condição para a renovação do seu trabalho ou da sua autorização de residência.

Essas pessoas estão, portanto, presas em uma situação “se-correr-o-bicho-pega-se-ficar-o-bicho-come”: ou passam fome, ou perdem o direito de trabalhar e ganhar dinheiro para viver. A menos que as condições que criam tal precariedade sejam alteradas, para aqueles com ou sem papéis, certos direitos fundamentais continuarão a ser ignorados.

A regularização é possível e necessária

Não só a regularização é necessária, como a experiência recente tem provado que é possível. Antes do projeto piloto Papyrus (2017-2018) [para regularizar imigrantes indocumentados de longo prazo em Genebra], ouvia-se freqüentemente em alguns círculos o argumento de que a regularização atrairia outras pessoas e os imigrantes ilegais afluiriam em massa à Suíça. Mas os resultados do esquema Papyrus, avaliados cientificamente por especialistas, provaram que este não foi o caso. Hoje, não precisamos de uma continuação do Papyrus. O projeto foi um teste limitado em tempo e escopo. Precisamos de uma abordagem que faça sentido tanto em termos humanos quanto jurídicos. Ela consiste na regularização de migrantes indocumentados com base em critérios claros e previsíveis. E os recentes movimentos de regularização de migrantes indocumentados na Itália Link externoe em Portugal durante a crise do coronavírus provam que outra política é possível.
 

Rede de segurança financeira

Em 25 de maio, o governo cantonal de Genebra adotou um projeto de lei emergencial com o objetivo de fornecer apoio financeiro aos residentes vulneráveis em Genebra que enfrentam dificuldades em meio à pandemia do coronavírus. A medida é destinada a migrantes indocumentados, pessoas que não têm direito à assistência social e outros que não receberam anteriormente apoio financeiro cantonal ou federal da Covid.

Para fazer uma reivindicação, a pessoa deve ser capaz de provar que viveu no cantão de Genebra por pelo menos um ano e esteve empregada por pelo menos três meses antes do fechamento parcial que entrou em vigor a partir de meados de março.

O governo reservou um orçamento de CHF 15 milhões. A proposta ainda precisa ser aprovada pelo parlamento de Genebra.

As opiniões expressas neste artigo são exclusivamente dos autores, e não refletem necessariamente a posição da swissinfo.ch.

Série Pontos de Vista

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