Perspectivas suíças em 10 idiomas

Por que a Rússia vê forças satânicas na Ucrânia

Putin with orthodox cross on forehead
O patriarca ortodoxo russo Kirill (esq.) e o presidente Vladimir Putin durante as celebrações da Páscoa em Moscou, Rússia, em 28 de abril de 2019. AP/Keystone

O ataque russo à Ucrânia levou a uma grande desavença no seio das comunidades ortodoxas cristãs. O teólogo helvético Stefan Kube se expressa sobre o tema.

Quanto mais tempo a guerra dura, mais estridentes são os tons do Kremlin: no início, tratava-se de uma “desnazificação” e “desmilitarização” da Ucrânia, mas agora uma linguagem flagrantemente genocida é cada vez mais usada contra os ucranianos.

A narrativa utilizada pela igreja russa também se torna mais apocalíptica: o satanismo instalou-se na Ucrânia, e os soldados russos que morrem na guerra podem esperar por uma remissão dos pecados. A guerra de agressão da Rússia assume assim um tom metafísico – o que, contudo, levou a grandes críticas em muitas comunidades ortodoxas e a uma divisão aparentemente intransponível.

swissinfo.ch: Recentemente, tem-se falado de “desatanização” da Ucrânia, de que se trata de uma “guerra santa”. Em que medida é que esta guerra é de natureza religiosa?

Stefan Kube: Desde a invasão, os sermões do patriarca russo Cirilo têm por base a seguinte narrativa: a Rússia se defende na Ucrânia. Defende-se contra os “valores agressivos” do Ocidente, sobretudo a secularização, o pluralismo, o declínio dos valores conservadores.

Na lógica interna da liderança da Igreja Ortodoxa Russa – e é também assim que os dirigentes do Estado russo a apresentam – toda esta guerra é de caráter defensivo. E a população ucraniana é vista como seduzida por “forças ocidentais diabólicas”.

Isso serve como uma justificativa teológico-ideológica para o ataque. Contra tal pano de fundo, Cirilo pode descrever a coisa toda como uma guerra santa. Contudo, não é um conflito entre comunidades religiosas, não é uma guerra religiosa, mas uma propaganda teologicamente carregada.

Stefan Kube
Stefan Guth

swissinfo.ch: Até que ponto são coordenados os procedimentos da Igreja e do Estado?

S.K.: Deixe-me dar um exemplo: por ocasião das celebrações do Natal russo, em 7 de janeiro, o patriarca Cirilo fez uma declaração prévia de que era a favor de um cessar-fogo nos dias de Natal. E algumas horas mais tarde, Putin também sugeriu o mesmo. É de supor que isso foi acordado.

As armas não descansaram durante esse período. Foi uma manobra para mostrar: a Rússia quer realmente desescalar o conflito, quer a paz, mas as “forças do mal” do Ocidente sabotam essa intenção.

Essa estreita cooperação foi iniciada nos últimos anos, em vários campos políticos, nos quais a Igreja e o Estado buscam os mesmos objetivos – por exemplo, nas leis repetidamente reforçadas contra a chamada propaganda homossexual.

Stefan Kube é teólogo e diretor do Fórum Ecumênico para a Fé, Religião e Sociedade no Oriente e OcidenteLink externo. O Fórum publica, entre outras coisas, a revista especializada Religion & Sociedade no leste e oeste, da qual Kube é editor-chefe.

swissinfo.ch: A proximidade da igreja com o Estado é comum nos países ortodoxos. Em que medida é a Rússia um caso especial?

S.K.: A relação é, de fato, diferente da que existe na Europa Ocidental, por exemplo. Na religião ortodoxia, existe ainda a ideia da denominada “sinfonia”, ou seja, a harmonia entre o Estado e a igreja. Isso remonta ao Império Bizantino.

No entanto, esse sempre foi um conceito ideal e nunca foi realizado em nenhum país ortodoxo na História. Segundo a constituição, a Rússia é um país secular no qual há uma separação entre a igreja e o Estado. Desde que Putin e Cirilo estão no poder, contudo, a cooperação tornou-se mais sólida. É evidente, porém, que o Estado tem mais poder e que eles não são dois parceiros igualmente fortes.

swissinfo.ch: Que papel desempenha nisso a pessoa de Cirilo? Há muito que correm rumores de que ele colaborou desde cedo com os serviços secretos russos…

S.K.: Há indícios de que ele trabalhou para a KGB, o serviço secreto soviético, no qual Putin também esteve ativo. No momento, não é possível reconstruir a verdade histórica, uma vez que os arquivos da KGB já estavam novamente fechados nos anos 90 – aliás, também sob pressão da liderança da igreja na época, uma vez que havia disputas maciças no seio da Igreja Ortodoxa Russa.

Muitos se perguntam se Cirilo realmente acredita em tudo o que diz e prega em público. Não podemos olhar para dentro da cabeça dele, mas suas mensagens têm efeitos catastróficos no que diz respeito à Ucrânia – e é por estes atos que ele deve ser julgado. Inúmeros hierarcas e teólogos da Igreja Ortodoxa, mas também de outras igrejas, apelaram a ele para que se distanciasse da guerra; ele fez o contrário.

Isso conduz a grandes tensões: parte dos fiéis ortodoxos na Ucrânia, que sentia pertencentes ao patriarcado de Moscou, rompeu com a Rússia. E haverá, provavelmente, processos semelhantes em outros países. Já existem tendências para a separação do patriarcado de Moscou em vários países, algumas das quais são também ordenadas pelo Estado. Atualmente, isso pode ser visto muito claramente nos países bálticos.

Quem é?

Cirilo I (Vladimir Mikhailovich Gundiaiev) é patriarca de Moscou e de toda a Rússia desde 2009, o que faz dele chefe da Igreja Ortodoxa Russa. É considerado conservador e aliado de Vladimir Putin, e, segundo se diz, próximo dos serviços secretos e dos militares. Sua riqueza pessoal é fonte de críticas – simbolizada por uma foto em que um relógio Breguet suíço de luxo foi desajeitadamente removido.

swissinfo.ch: O conflito eclesiástico na Ucrânia já se arrasta há algum tempo. O senhor pode colocá-lo em alguma perspectiva?

S.K.: A paisagem religiosa na Ucrânia é complexa. Desde a independência do país em 1990, surgiu e desenvolveu-se uma grande variedade de correntes entre a população ortodoxa. Uma delas, muito forte, pressiona por uma independência ou ao menos por uma maior autonomia em relação ao patriarcado de Moscou. Na era soviética, todos os crentes ortodoxos faziam parte da Igreja Ortodoxa Russa. Após a Segunda Guerra Mundial, alguns deles foram também integrados à força, sobretudo os cristãos católicos gregos na Ucrânia ocidental.

Ao longo do tempo, surgiram três igrejas ortodoxas: a maior tinha laços estreitos com o patriarcado de Moscou, mas com autonomia interna. As outras duas procuraram a independência porque se sentiram eclesiástica e politicamente oprimidas por Moscou e queriam sua própria igreja nacional.

Essas duas igrejas fundiram-se em 2018 para formar a Igreja Ortodoxa da Ucrânia. A Igreja Ortodoxa Ucraniana, por outro lado, sempre fez parte do patriarcado de Moscou até se ter separado de Moscou em maio de 2022, porque Cirilo se recusou a condenar o ataque.

swissinfo.ch: Até que ponto a guerra alterou as proporções?

S.K.: Certamente que há muitas conversões para a nova igreja. No entanto, ainda é menor quando se trata da infraestrutura e do número de padres. A Igreja Ortodoxa Ucraniana é vista com muita suspeita por partes da sociedade e da política ucranianas. Agora, parece ser uma questão de lealdade nacional romper com a antiga, filiada a Moscou, e isso apesar do fato de esta igreja se ter posicionado fortemente contra a guerra de agressão russa.

Homem beijando a mão de um religioso
Na União Soviética, a relação entre a igreja e o Estado foi abalada. Depois disso, houve uma aproximação gradual, especialmente na última década – ela foi intensificada novamente desde a invasão da Ucrânia. Foto: Um clérigo abençoa um soldado russo em 2007. KEYSTONE/SPUTNIK/Yuriy Zaritovskiy

swissinfo.ch: A Ucrânia é também o cenário de um grande conflito no seio da ortodoxia mundial. Qual poderia ser o subtexto geopolítico aqui?

S.K.: Por um lado, temos o patriarcado de Moscou, o maior e mais populoso do mundo ortodoxo. E, por outro lado, o Patriarcado Ecumênico de Constantinopla, que desempenhou um papel decisivo no surgimento da nova Igreja Ortodoxa da Ucrânia, e goza de uma primazia histórica de honra dentro da Ortodoxia. 

Há muito que o patriarca ecumênico Bartolomeu I vem sendo pressionado por políticos e crentes ucranianos para intervir no conflito eclesiástico e conceder aos ortodoxos na Ucrânia que sua igreja seja independente e que possam escolher seu próprio chefe.

Bartolomeu, após muita hesitação, concedeu à Igreja Ortodoxa da Ucrânia a requerida independência eclesiástica em 2018. Isso levou a uma ruptura com Moscou. Moscou também quebrou o contato com as outras igrejas ortodoxas que reconheceram a independência ucraniana, embora não sejam de forma alguma com todas elas.

No entanto, deve salientar-se que as relações entre Moscou e Constantinopla já tinham se deteriorado antes. No confronto com a modernidade, Moscou é mais conservadora, enquanto Constantinopla é mais progressista.

Temos, portanto, uma situação de impasse em que as duas Igrejas ortodoxas mais importantes já não falam uma com a outra – o que é problemático para a Ortodoxia. Tem havido tentativas de mediação, mas falharam.

swissinfo.ch: Por esta razão, fala-se de um cisma no interior da Ortodoxia, ou seja, de uma divisão da Igreja. Como vê isso?

S.K.: Na realidade, é um cisma. Quer os critérios teológicos sejam cumpridos ou não, trata-se de uma ruptura significativa. Egos feridos também desempenham aqui um papel: tenho dificuldade em acreditar que Bartolomeu e Cirilo serão capazes de reiniciar um diálogo.

Mas é importante compreender que isso diz respeito apenas à liderança da igreja, aos líderes da igreja. Ainda existem contatos e discussões entre teólogos e crentes das igrejas individuais, que também são críticos em relação aos líderes de ambas as igrejas, sobretudo onde e quando se trata de política eclesiástica.

Adaptação: Karleno Bocarro

Certificação JTI para a SWI swissinfo.ch

Mostrar mais: Certificação JTI para a SWI swissinfo.ch

Veja aqui uma visão geral dos debates em curso com os nossos jornalistas. Junte-se a nós!

Se quiser iniciar uma conversa sobre um tema abordado neste artigo ou se quiser comunicar erros factuais, envie-nos um e-mail para portuguese@swissinfo.ch.

SWI swissinfo.ch - sucursal da sociedade suíça de radiodifusão SRG SSR

SWI swissinfo.ch - sucursal da sociedade suíça de radiodifusão SRG SSR