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Médica viveu a tragédia da AIDS

Mãe moçambicana doente da AIDS aguarda entrega de medicamentos (foto: www.martinbeaulieu.ca) Martin Beaulieu

Regula Kohler viveu um ano e meio em Maputo, onde trabalhou como médica no programa de AIDS da "Médecins Sans Frontières".

Para swissinfo, ela conta o desafio de combater uma epidemia que já atinge 13% da população adulta num país onde falta tudo, inclusive médicos.

Regula Kohler entra no restaurante da estação ferroviária de Olten, uma pequena cidade entre Berna e Zurique, e pede um café e um copo de água. Seus olhos azuis são tranqüilos. Ela fala baixo, como os poucos fregueses do estabelecimento.

Há pouco mais de um mês, essa médica suíça de 34 anos estava em um outro mundo, muito distante da tranqüilidade e segurança do país dos Alpes. Ela viu de perto uma das maiores tragédias vividas pela humanidade.

Regula Kohler esteve durante um ano e meio em Moçambique, acompanhada pelo marido, um médico francês, e o filho de apenas três anos de idade. Durante todo esse tempo no país africano de língua portuguesa, o casal foi voluntário no programa de combate a AIDS, conduzido pela seção suíça da organização humanitária “Médecins Sans Frontières” (Médicos Sem Fronteiras, ou MSF).

200 médicos em todo o país

A AIDS está devastando o continente africano. Calcula-se que mais de 40 milhões de pessoas estejam contaminadas no mundo. 95% delas vivem em países em desenvolvimento como Moçambique.

A ida para esse país foi uma decisão de Regula Kohler e seu marido. Depois de ser formar em medicina, a suíça já havia trabalhado como voluntária na Libéria e na Mauritânia. “Escolhi Moçambique, pois é um país que não está em guerra e, por isso, não era perigoso para a minha família”, lembra Kohler.

As condições precárias do trabalho médico na África também não foram um empecilho. “Um médico europeu aprende muito trabalhando nesses países, cuja medicina é vivida de uma outra perspectiva”.

No programa conduzido pelos suíços, Regula Kohler era “coordenadora médica”. Suas tarefas eram variadas e incluíam o aprovisionamento de remédios, o contato com as autoridades locais de saúde e também a elaboração de um programa de formação de pessoal.

“Um dos maiores problemas do país é a falta absoluta de pessoal especializado para tratar os doentes e as pessoas contaminadas pelo HIV”, explica Kohler. “Moçambique dispõe de apenas 200 médicos, sendo que a maior parte deles vive na capital, Maputo, e trabalha na administração”.

Para suprir parte das carências, o governo forma conselheiros de saúde que irão trabalhar nos diversos centros de teste já em funcionamento, chamados em Moçambique de “gabinetes de aconselhamento e testagem”. Eles são freqüentados por pessoas que ainda não sabem se são soropositivos ou que sentem os primeiros sintomas da doença.

“Esses funcionários recebem um curso de duas semanas para aprender a aplicar os testes de HIV, cujos resultados saem em apenas 25 minutos, e também para dar instruções sobre o tratamento com os anti-retrovirais e os cuidados na família”, conta Kohler.

A falta de pessoal é ainda agravada pelo fato de muitos enfermeiros e médicos também estarem doentes: – “muitos desses profissionais também são soropositivos e não mais em condições de trabalhar”.

Tragédia nacional

A situação em Moçambique é grave. Segundo a ONG suíça, mais de 13% da população adulta está infectava pelo vírus do HIV. Em cidades como Maputo esse número chega a 17%. Porém muito pior é a situação de regiões como a cidade portuária de Beira, no centro do país, e na fronteira com o Zimbábue, onde de 20 a 25% dos habitantes estão contaminados.

Os especialistas acreditam que nesse ritmo, até 2010 a esperança média de vida dos moçambicanos deve baixar de 50,3 para 36,5 anos.

Apesar das dimensões da tragédia, Moçambique dispõe de poucos recursos para tratar do problema. “Mais de 150 mil pessoas precisam urgentemente dos anti-retrovirais”, revela Kohler. Grande parte dos medicamentos e dos recursos empregados no combate à doença vem de governos estrangeiros como o Brasil, Luxemburgo e Suíça.

Uma parte considerável do trabalho é feita por organizações internacionais como o MSF. Desde o início do ano 2001, o grupo da suíça atua em Maputo e em Lichinga, na distante província de Niassa.

Na capital, a MSF apóia os chamados “hospitais de dia”, que são clínicas de saúde onde as pessoas recebem os anti-retrovirais e também são tratadas com medicamentos de combate às doenças oportunistas, como a tuberculose ou pneumonia. Em todo o país, 10 desses centros estão em funcionamento.

O objetivo do governo de Moçambique é aumentar essa rede nos próximos cinco anos para mais cem “hospitais do dia”. Ao mesmo tempo, a MSF suíça pretende atender mais doentes. Em julho a organização anunciou o atendimento do milésimo paciente tratado com anti-retrovirais.

Preconceito e falta de informação

Para a médica Regula Kohler, o número elevado de contaminação por AIDS em Moçambique se explica por uma questão cultural. “A grande maioria dos homens ainda recusa utilizar preservativos”. Além disso, falar de sexo continua a ser considerado um tabu na sociedade.

Uma forma de combater os preconceitos é o teatro. Em Moçambique vários grupos se apresentam nas escolas e nos povoados com o objetivo de mostrar a importância da utilização do preservativo.

Outra forma efetiva é a exposição pública: “temos um caso de uma mulher que era vendedora de peixe no seu povoado. Ao se tornar soropositiva, ela foi completamente excluída e ninguém mais comprava seus produtos”.

Com ajuda da seção de Luxemburgo do Médecins Sans Frontières, essa pessoa se transformou em “ativista”. “Agora ela dá entrevistas à imprensa e participa de palestras falando abertamente sobre o problema, algo quase revolucionário em Moçambique, onde a AIDS é associada à morte e ostracismo”.

Vida, apesar de soropositivo

“O principal objetivo é mostrar que apesar da AIDS, existem formas de tratamento que dão mais qualidade de vida aos soropositivos”, afirma Kohler. Quando estes recebem os medicamentos anti-retrovirais, não só as doenças oportunistas diminuem como muitos recuperam sua saúde para o trabalho e os cuidados com a família.

“Juntamente com a prevenção, nosso trabalho em Moçambique mostra que é possível tratar os doentes e combater o problema da AIDS”, conclui Regula Kohler.

Depois de um ano e meio na África, a médica suíça não esconde que sente saudades. “Apesar da situação triste que vive o país, tive uma experiência inesquecível com esse povo motivado para trabalhar e aprender”.

swissinfo, Alexander Thoele

13% da população moçambicana é soropositiva.
Em algumas regiões, a média é de 25% da população.
A expectativa de vida caiu de 50,3 para 36,5 anos.
Existem 200 médicos no país e muitos trabalham na administração.

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