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A comida que silencia frustrações

Mulher segurando bolos
swissinfo.ch

A swissinfo.ch analisou, na coluna do dia 5 de outubro, os efeitos da migração nas mudanças nutricionais e no consequente ganho de peso. O blog traz, nessa edição, explicações e relatos sobre o efeito psicológico do êxodo na relação com a alimentação. 

Estresse e mudanças drásticas em determinadas fases da vida podem refletir em fome emocional e, consequentemente, adiposidade. A migração está inserida em um desses períodos de transformações profundas, época complicada para a maioria das pessoas. Para uns mais, para outros menos. Entretanto, é fato vivenciar dificuldades em uma sociedade culturalmente distinta, principalmente na fase de adaptação. 

Artigo do blog “Suíça de portas abertas” da jornalista Liliana Tinoco Baeckert.

A escala que mede reajuste social (Social Readjustment Rating ScaleLink externo), elaborada já em 1967 comprova: ir embora está associado a um dos maiores fatores geradores de estresse que um adulto pode vivenciar. E não somente o ato de emigrar, mas tudo que vem junto e que também é visto como gerador de desequilíbrio. O Relatório Homes-Rahes de Estresse da VidaLink externo também lista eventos que podem causar grandes desassossegos ligados à migração: mudança de residência, de atividades sociais, revisão de hábitos pessoais e matrimônio. Esse último muitas vezes diretamente conectado com as razões pelas quais pessoas deixam seu país de origem. 

Essas escalas são interessantes para demonstrar o quão desestabilizador para um indivíduo pode representar a saída de um país. O alívio do nervosismo e da insatisfação por meio dos alimentos se apresenta como um comum efeito dos enormes desafios gerados na vida e pelo ato de ir embora.

Diversos estudos correlacionam aumento de peso em grupos de migrantes internacionais. Um dos estudos, publicados em 2014 pela Oxford University PressLink externo, a migração em si é um importante determinante da saúde devido ao ônus econômico, físico e mental de desenraizar e viajar para começar a vida em algum lugar novo. 

Não é de hoje que a ciência e a psicologia se deparam com o fenômeno. Uma parcela da população desconta suas frustrações na comida. A esse fenômeno dá-se o nome de saciação da fome emocional. A diferença entre esse apetite para o normal, que seria o fisiológico, está na velocidade, na falta de horário e na escolha do que comer. De acordo com a psicóloga intercultural Gabriela Broll Ribeiro, que atende migrantes pelo mundo e se depara com o problema em vários de seus clientes, quem tem fome emocional apresenta desejos fortes por alimentos específicos, que vêm repentinamente.  

– O apetite real chega aos poucos, nos horários certos. A emocional faz uma visita inesperada, entra sem ser convidada, podemos dizer assim. E em geral é sempre por doce, por carboidrato, infelizmente o que mais nos engorda, explica a brasileira, que também já passou pelo problema. E ela lembra: “é normal usar a comida diante de um vazio interior ou de emoções desconfortantes. E digno sentir-se pressionada quando acaba de chegar em um novo país”, completa. 

De acordo com a psicóloga, a comida silencia emoções quando usada para encobrir sentimentos como dúvida, medo, insegurança. E mostra que, dependendo da exposição aos fatores estressantes, maior é a probabilidade de desenvolver até mesmo uma doença relacionada a questões emocionais. 

No jogo da sobrevivência, o corpo “trai” a confiança do dono e faz de tudo para não perder peso, como um aprendizado de milhares de anos. Se a mudança do padrão cultural leva à insegurança, em paralelo, o estresse desestabiliza o hormônio cortisol, que regula a vontade de comer doce. Por outro lado, para aumentar a sensação de bem-estar, produzida pela serotonina, come-se mais carboidrato ou doces. “Infelizmente é mais fácil conseguir produção de serotonina com um brigadeiro do que na esteira da academia”, explica Gabriela. 

Mas nem tudo está perdido. A psicóloga explica que quando a perda dói, é preciso ressignificar os vínculos, valorizar os ganhos e identificar as emoções que geram desconforto. Assim fica mais fácil não cair nas artimanhas dos sabores. A consciência, nesse caso, é uma aliada para evitar as muletas gastronômicas. 

Chocolate, pão e salsicha contra o desgosto

“Eu engordei 12 quilos no meu primeiro ano de Suíça. Sempre tive que controlar meu peso no Brasil, mas lá eu tinha uma vida ativa, comia frutas no café da manhã, arroz com feijão, comidas mais saudáveis. Quando cheguei, tive uma fase muito ociosa, não trabalhava mais, não me exercitava. 

Houve uma mudança alimentar muito grande junto com a adaptação ao país. As frutas que eu comia pela manhã foram substituídas pelo croissant, o gipfeli da parte alemã. Se estava frio, a opção era raclette, fondue. Como meu marido tem ascendência italiana, comecei a comer mais massa, molhos com creme de leite. Esse é um ponto importante: a gente também quer se adaptar ao gosto do parceiro e acaba comendo de forma diferente. 

E quando eu estava frustrada, porque essa é a palavra que me descreve naquele início, eu comia chocolate, pão, ou engolia doce com salsicha, coisas que não combinavam. Me lembro de um dia que fui a uma consulta com um aconselhador profissional, e saí de lá muito frustrada. Eu queria saber sobre caminhos profissionais, como validar meu diploma de enfermagem. A resposta que tive foi que, com os meus 25 anos, ninguém me daria estágio, era para eu procurar um trabalho de limpeza e desistir de seguir minha profissão. 

Depois desse veredito, entrei em um supermercado, comprei baguete e chocolate. Sentei-me no meu sofá, e com o olho vidrado no nada, comi os dois pães e a barra, tudo sem sentir. No início estamos muito fragilizadas.

Por conta desse processo, eu engordei e emagreci algumas vezes. Esse não foi um problema, entretanto, na gravidez. Mas depois que tive meu filho, que tem agora dois anos, eu ganhei peso. Isso porque sofri de uma depressão pós-parto que demorou a ser diagnosticada. 

Mulher
Etienne Dilde – entrevistada no Rio, de férias depois da cirurgia de retirada e excesso de pele. swissinfo.ch

Eu dizia aos médicos que eu não estava bem, que eu chorava, que estava muito estressada, mas eles não me escutavam. Até que consegui uma médica que morou no Brasil e entendia a minha cultura. 

Há três meses faço tratamento hormonal e já estou bem melhor. Hoje tenho 68 quilos, que era o peso que eu tinha quando grávida de oito meses. Estou tratando a parte interna para iniciar outro processo de emagrecimento. 

“Quando eu me mudei para a Suíça, em 2007, eu pesava 65 quilos. Eu precisei chegar aos 120 quilos para mudar o rumo da minha vida. Antes de fazer a cirurgia bariátrica, em 2012, tentei de tudo: diferentes dietas, medicamento, sempre com acompanhamento médico.

Claro que fui engordando gradativamente. Eu atribuo esse ganho enorme de peso a inúmeros fatores: a migração, o clima frio, a dificuldade de entender a língua, que tanto nos limita, a crise no casamento, relação abusiva e por último a violência doméstica. 

Logo quando eu cheguei, eu queria muito trabalhar, me comunicar, mas falava o alemão de forma errada. Isso me isolava muito também, me fazia comer por frustração. A falta da luz solar contribuía com que eu ficasse depressiva e consequentemente, engordava.

Depois das agressões que eu sofria, meu marido não me pedia desculpas. Ele me dava comida, me entupia. Parecia que alimentava um animal. Nessa fase de brigas e de problemas de adaptação, eu cheguei a comer 12 pães de forma no café da manhã, uma barra de chocolate por dia, um litro de suco de laranja em uma hora, dois pratos muito cheios no almoço, por exemplo.

Assim cheguei aos 120 quilos em 2012. Fiz a cirurgia já pré-diabética, com gordura no fígado. Emagreci 40 quilos, larguei meu marido e fui estudar. Ele me proibia de frequentar a escola. Em cinco anos depois da separação, fiz vários cursos e me formei em Técnica de Enfermagem aqui na Suíça. E hoje, em 2019, estou de licença médica no Rio, onde vim fazer a cirurgia plástica para remover o excesso de pele resultante do emagrecimento. 

Faço academia, me sinto linda, poderosa. Tenho os homens que eu quero e uma profissão. É como eu falo: de passinho a passinho, a formiga vai longe. Todo mundo tem esse poder de conquistar o que deseja.”

Etienne Dilde tem hoje 66 quilos. 

*Depoimento da carioca Dany Melo Bonzio, que vive na Suíça há 12 anos 

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