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Suíça pode descriminalizar as drogas?

“A proibição das drogas causa mais problemas do que oferece soluções”

Linhas de cocaína sobre um espelho e uma pessoa consumindo
A cocaína é consumida em quase todas as classes sociais, apesar de estar proibida. Keystone/Martin Ruetschi

Juntamente com Londres e Antuérpia, Zurique é uma das mecas da cocaína na Europa. Estima-se que o tóxico branco seja parte do cotidiano de 2.000 pessoas na metrópole às beiras do rio Limmat. Por essa razão, especialistas e políticos liberais demandam uma reorientação na política de entorpecentes, notadamente, a descriminalização das drogas, inclusive drogas pesadas. Conservadores, por outro lado, sentem-se sob ataque.

Os andrajosos usuários de drogas que aos milhares injetavam heroína no infame Parque Platspitz nas décadas de 1980 e 1990 são hoje apenas uma vaga memória no cotidiano de Zurique.

A droga preferida em Zurique hoje é a cocaína. A cidade está no topo do ranking de consumo de cocaína em nível europeu. Isso é o que mostra um estudo internacional que testou as águas dos esgotos de 20 grandes cidades europeias. Nesse estudo foram analisados resíduos de cocaína e outros entorpecentes para avaliar o consumo de drogas da população daquelas cidades.

Zurique não se orgulha desse título, mas ao invés de repressão, a responsável pela saúde pública de Zurique, Conselheira Claudia Nielsen, propõe uma nova forma de lidar com a questão dos entorpecentes. O objetivo deveria ser que as drogas causassem o mínimo de danos possível, disse ela em uma reportagem do jornal Neuen Zürcher Zeitung (NZZ). “É necessária, portanto, a descriminalização de consumidores e consumidoras, bem como a redução do comércio ilegal.”

“Repressão, abstinência, prevenção

As propostas da conselheira de Zurique causaram repulsa entre círculos conservadores. Verena Herzog, que é membro do diretório nacional do Partido Popular Suíço (SVP), se diz indignada. “É assustador que até o jornal NZZ participe dessa ofensiva pela legalização”, disse ela à swissinfo.ch. “Isso vai em uma direção completamente errada”. A mãe de três filhos adultos diz ter experiência com jovens de seu círculo de relações que “caíram nesse círculo vicioso de maconha, álcool, agressões, polícia, interrupção dos estudos e clínicas”.

Mortos pela heroína em comparação com os EUA

Uma comparação direta não é possível, pois não é possível estimar o número exato de consumidores. Contudo é fato que nos EUA morrem anualmente em diversos estados entre 20 e 35 pessoas para cada 100.000 habitantes. Na Suíça são ‘apenas’ 1,7 pessoas por 100.000 habitantes. (Fonte: Ministério da Saúde)

Verena Herzog vê até uma ameaça à economia nacional: “nós devemos nosso sucesso à precisão e à confiabilidade suíças. Se as drogas forem legalizadas, nossa sociedade vai perder em desempenho. Quanto mais simples for o acesso às drogas, maior será o consumo”, diz a presidente da associação “Jovens sem Drogas”. Na luta contra os entorpecentes ela defende “mais prevenção, abstinência e repressão efetiva”.

A política de repressão às drogas falhou?

Michael Herzig conhece os argumentos daquela associação. O docente da Faculdade de Ciência Aplicada de Zurique (ZHAW) foi durante muitos anos o responsável pela política de drogas da cidade de Zurique. “O que vai se resolver com essas medidas?”, pergunta ele retoricamente. “É claro que a cocaína não é inofensiva, mas não adianta sair gritando que é uma substância perigosa. Eu não vejo sucesso nessa política restritiva. Eu vejo sim são seus danos colaterais, diz Herzig ao apontar para os lucros do crime organizado às expensas dos viciados. A história segundo ele teria demonstrado que “a proibição causa mais problemas do que soluções”.

Há mais de vinte anos atrás, a Suíça chegou às mesmas conclusões no caso da heroína após milhares de consumidores, em sua maioria jovens, terem sido levados à ilegalidade, à miséria, e à morte por uma política repressiva.

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Desde então, a política suíça de entorpecentes se baseia no assim chamado modelo de quatro colunas: prevenção, terapia, repressão e redução de danos. Como parte da redução de danos, casos graves de dependência são encaminhados para um programa de distribuição gratuita de drogas controlada pelo estado. Esse modelo foi introduzido pela então ministra da saúde, Ruth Dreifuss, e é seguido também em outros países. A ex-ministra está até hoje convencida da eficácia dessa política e propõe a descriminalização de todas as drogas pesadas.

“Estado como traficante”

Já para Verena Herzog, a política suíça de entorpecentes merece más notas. “É verdade que não há hoje tantas mortes, mas a miséria foi apenas varrida para debaixo do tapete” diz ela. “Falta o efeito de dissuasão pelo pavor”. Ela também rejeita a validade da afirmação segundo a qual viciados sem dificuldade em obter heroína poderiam voltar a trabalhar. “Essas pessoas têm atividades que felizmente ajudam a estabilizar sua autoestima, mas raramente tem relevância econômica. O problema só será resolvido quando eles deixarem o vício.”

Números

1750 pessoas participam do programa de distribuição controlada de heroína, sendo que esse número tem permanecido estável com tendência à redução.

Aproximadamente 18.000 pessoas participam do programa de distribuição de metadona, sendo que 14.000 recebem o tratamento em consultórios médicos privados. (Fonte: Ministério da Saúde)

A política conservadora do SVP critica severamente o recente apoio à proposta de que o estado comece também a distribuir outras drogas pesadas ao afirmar que “isso faria do estado um traficante”, e que “a política de prevenção perderia com isso toda a credibilidade”.

“Acesso legal para certos grupos”

Ao invés de legalização, o especialista em drogas Herzig prefere falar de regulação, e não apenas do consumo, mas também do comércio e da produção. Para ele seria insensato liberar o consumo sem regulamentar o comércio. “Quem fala em regulação deve fazer com que a criminalidade organizada seja neutralizada. Qualquer outra medida é apenas paliativa.” Herzig não quer liberar as drogas em um mercado aberto, mas sim restringir o acesso a certos consumidores mediante regras estritas. Nessa linha, regras específicas seriam necessárias para distintas substâncias. “O objetivo seria fazer com que certos grupos obtivessem acesso legal sem ser criminalizados, enquanto outros grupos como, por exemplo, crianças e jovens, não tivessem acesso. Isso não é fácil, como se pode ver no caso do combate do álcool e da nicotina entre os jovens”.

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O que diz o Ministério da Saúde

“Um número significantemente menor de mortes por drogas, infecções por HIV e criminalidade relacionada ao tráfico, saúde dos dependentes melhorada e uma maior segurança no espaço público. Esses são os indicadores objetivos do sucesso da política de entorpecentes baseada nas quatro colunas, em particular no caso da redução de danos”, foi o que afirmou Adrien Kay, o porta-voz do Ministério da Saúde em resposta às críticas feitas por Verena Herzog. “Nunca se pensou que isso resolveria os problemas, mas a Suíça encontrou um caminho para lidar com o problema das drogas de forma digna, humana e socialmente aceitável. E por isso a Suíça é internacionalmente reconhecida. Ademais, a idade média dos dependentes de heroína sendo tratados aumenta continuamente, o que indica que o consumo entre jovens tem uma imagem negativa, apesar da ausência de uma ‘dissuasão pelo pavor’ à miséria causada pelo uso da droga.

É possível que o benefício econômico gerado pelos participantes do programa não seja significativo. Do ponto de vista de saúde, no entanto, é muito mais importante que essas pessoas se encontrem em condições de trabalho estruturadas, e que cometam menos delitos”.

Adaptação: Danilo von Sperling

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