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Suíça estabelece regras para fornecer tratamento acessível aos pacientes

O medicamento Sovaldi, da empresa Gilead, custa mais do que mil dólares uma pílula.
O medicamento Sovaldi, da empresa Gilead, custa mais do que mil dólares uma pílula. Keystone

Para um país rico que é um hub global de empresas farmacêuticas, a Suíça adota uma medida extraordinária para evitar que pacientes com Hepatite C tenham que pagar por medicamentos caros.

Apesar das tentativas de gentrificação, a infame Langstasse – ou rua longa, em português – de Zurique permanece um dos lugares mais chamativos da cidade. Sex shops e bordeis abundam e pequenos grupos de alcoólatras bebem cerveja ao meio-dia, sem prestar atenção na patrulha dos carros de polícia. Este é um local apropriado para o Arud, um centro para ajudar dependentes químicos e alcoólatras. O Arud se tornou o epicentro de um esforço coordenado – sem precedentes na Suíça – feito por médicos, reguladores e seguradoras de saúde para tornar, pela modificação das regras, as drogas caras acessíveis para pacientes com Hepatite C.

Muitos dos dependentes químicos que atravessam a porta do Arud sofrem também de Hepatite C, uma doença viral que afeta entre 50 mil e 80 mil residentes na Suíça. Somente aqueles que sofrem com a forma mais severa da doença têm o medicamento necessário para o tratamento coberto por seu seguro de saúde obrigatório. Os medicamentos de marca (vendidos como Sovaldi, Harvoni ou Daklinza) fabricados pela farmacêutica norte-americana Gilead custam entre CHF 33 mil e CHF 60 mil para uma terapia de oito a doze semanas.

No entanto, cerca da metade dos pacientes do país tem somente a forma moderada de Hepatite C, o que significa que têm de pagar pelo tratamento do seu próprio bolso. Isso levou muitos a comprar versões genéricas do medicamento – fabricadas sob licença em países como a Índia – online ou em viagem ao exterior. Por cerca de CHF 1,5 mil para um ciclo de tratamento de três meses, o medicamento genérico custa uma fração do medicamento contra Hepatite C fabricado pela Gilead. Em todo caso, estes pacientes correm o risco de comprar produtos falsos ou de baixa qualidade.

Clube de compradores australiano

“Nós decidimos escrever manuais para que pacientes possam acessar medicamentos genéricos de forma segura porque existem muitos vendedores online suspeitos”, diz Philip Bruggmann, do Experts Suíços em Hepatite Viral (SEVHep, na sigla em inglês) com sede no Arud, para a swissinfo.ch.

Uma das principais recomendações do SEVHep para pacientes com Hepatite C sem seguro de saúde é comprar os medicamentos genéricos de um clube de compradores baseado na Austrália, o FixHepC, que obtém e testa os medicamentos.

“Até agora nós acompanhamos cerca de 70 pacientes que têm utilizado genéricos indianos e todos eles estão curados. Funcionam tão bem quanto os medicamentos que podem ser comprados nas farmácias suíças”, diz Bruggmann.

Segundo ele, pacientes suíços são os terceiros maiores compradores de medicamentos contra Hepatite C do clube australiano FixHepC, atrás do Reino Unido e da Nova Zelândia. “O número aproximado de clientes suíços que nós atendemos até agora é 154”, diz à swissinfo.ch um representante do FixHepC.

Ações sem precedentes

Após a publicação, liderada por Bruggmann, dos manuais do SEVHep para a obtenção de medicamentos genéricos contra a Hepatite C, coisas extraordinárias começaram a acontecer: como uma mudança na política de importação de medicamentos para o país.

Pela lei suíça, uma pessoa pode importar legalmente uma quantidade de medicamentos suficiente para um mês de tratamento. Isso acontece principalmente para o benefício de turistas e visitantes que precisem trazer medicamentos essenciais consigo durante sua estada no país. No entanto, a brecha é frequentemente usada por residentes na Suíça para importar uma vasta gama de medicamentos, de analgésicos ao Viagra, que são buscados online por uma fração dos preços suíços. Pacotes contendo mais do que a quantidade mensal de medicamentos permitida são confiscados por aduaneiros, e os destinatários são taxados em um mínimo de CHF 300 de custos administrativos.

Em um movimento sem precedentes, a Swissmedic – o órgão regulador dos medicamentos na Suíça – decidiu em novembro de 2016 abrir uma exceção para medicamentos contra a Hepatite C e permitir a importação de uma quantidade para três meses de tratamento, em vez de apenas um.

“Não é uma política oficial, mas um caso de oferecer flexibilidade para os medicamentos contra Hepatite C. Não faz sentido ter um limite de um mês quando o tratamento requer três meses de medicamento”, diz à swissinfo.ch Danièle Bersier, porta-voz da Swissmedic.

A Gilead, principal fabricante de medicamentos contra a Hepatite C, questiona fortemente esta flexibilidade por parte da Swissmedic. “Do ponto de vista dos pacientes, é muito preocupante que eles permitam isso”, diz Peter Hüssy, diretor da unidade de negócios de Hepatite da Gilead Suíça. “Os medicamentos podem ter ficado do lado de fora por cinco dias sob o sol na Índia. Ninguém sabe ou tem controle sobre como esses medicamentos importados são manuseados, transportados e estocados”, ele diz.

Seguro de saúde complementar

É não são somente as ações da Swissmedic que têm tornado mais fácil a importação de genéricos contra a Hepatite C. Desde fevereiro de 2017, a companhia de seguros de saúde suíça Concordia começou a oferecer um plano de saúde complementar para seus clientes que reembolsa até 75% dos custos dos medicamentos importados do clube de compradores australiano FixHepC. Assim como a Swissmedic, eles foram influenciados pelos manuais do SEVHEP.

“Nós decidimos cobrir a Hepatite C porque nem todos os pacientes podem conseguir os medicamentos por um bom preço e nós temos bons contatos com o SEVHep para garantir que os pacientes estejam bem informados”, diz Matthias Steiner, gerente do projeto de Hepatite C da Concordia.

Os prêmios mensais do pacote de seguro complementar chamado Diversa custam até CHF 19. A empresa ainda renuncia a este custo para pacientes com Hepatite C que não podem pagar por intermédio de uma fundação de caridade.

Philip Bruggmann ajuda a desenvolver diretrizes para o abastecimento mais seguro de medicamentos genéricos contra hepatite C.
Philip Bruggmann ajuda a desenvolver diretrizes para o abastecimento mais seguro de medicamentos genéricos contra hepatite C. swissinfo.ch

“Eu acho que isso é um exemplo de como encontrar soluções pragmáticas quando há restrições políticas e econômicas”, diz Bruggmann. “Isso poderia ser usado para colocar pressão no sistema e fazer as empresas diminuírem os preços dos medicamentos”.

Mas, é ético para residentes em um país rico como a Suíça usar medicamentos baratos adquiridos em países pobres? A Gilead, que voluntariamente licenciou seus medicamentos para 11 fabricantes indianos e permitiu sua venda em 101 países em desenvolvimento, reclama que a importação de genéricos para a Suíça é um mau uso de suas intenções de permitir o acesso aos medicamentos nas nações menos desenvolvidas.

“O que nós queremos é não ameaçar esses programas. Seria melhor se cada um aderisse ao que foi acordado”, diz Hüssy. Um inquérito parlamentar apresentado em fevereiro busca esclarecimentos sobre esta difícil questão e deve ser discutido em breve.

Alívio à vista?

Surpreendentemente, os ativistas em prol de medicamentos mais baratos contra a Hepatite C e as empresas farmacêuticas como a Gilead estão em completo acordo sobre uma coisa: o Escritório Federal de Saúde Pública da Suíça deveria oferecer acesso aos medicamentos para todos os pacientes, e não apenas para aqueles que sofrem com um estágio avançado da doença.

“Continua a ser necessário muito esforço para que os pacientes passem pelo clube de compradores australiano. Seria muito mais fácil para eles obter a medicação de seu médico ou farmácia”, diz Bruggmann.

O governo recentemente deu sinais de suavizar sua posição quanto ao pagamento por tratamentos. Em abril, planos foram anunciados para facilitar o acesso de pacientes de alto risco, como dependentes químicos e também pacientes com HIV ou Hepatite B, aos medicamentos da Gilead mesmo que a doença estiver apenas em estágio intermediário.

Talvez a Austrália possa servir como modelo para a Suíça sobre como alcançar o acesso universal. Ela começou por oferecer medicamentos contra Hepatite C para todos os pacientes desde dezembro de 2015 como parte de um plano para eliminar a doença dentro de uma geração. Os australianos conseguem negociar preços atrativos para seus medicamentos graças a uma abordagem de preço única, baseada em volume, na qual o preço diminui quando mais pessoas são tratadas.

“Nós temos trabalhado continuamente com o Escritório Federal de Saúde Pública na questão do acesso irrestrito aos nossos tratamentos contra a Hepatite C, e estaremos dispostos a discutir preços se a Suíça embarcar em um plano para a eliminação da Hepatite C”, diz Hüssy da Gilead.

No entanto, mesmo em sua melhor proposta a Gilead não chega a vender seus medicamentos contra a Hepatite C por CHF 1,5 mil. Os preços continuarão altos, mas um tratamento de 12 semanas contra a Hepatite C garante uma taxa de cura de quase 90%. Assim, na teoria oferece melhor valor financeiro do que os tratamentos contra o HIV, para os quais a Suíça oferece acesso universal.

“Tratamentos contra o HIV custam CHF 15 mil por ano, mas têm de ser administrados todos os anos até que a cura da doença seja alcançada. Isso resulta em custos muito mais altos do que para a Hepatite C, e afortunadamente nunca houve restrições”, diz Bruggmann.

Hepatite C

É uma inflamação do fígado que ocorre devido a uma infecção pelo vírus da Hepatite C. É transmitida pelo sangue da pessoa doente, geralmente pelo compartilhamento de seringas ou pela esterilização insuficiente de instrumentos médicos ou de tatuagem. Raramente, é transmitida através da relação sexual ou da mãe para o filho. Os sintomas incluem fadiga, perda de apetite, náusea, vômitos, dores nas articulações e icterícia.

No entanto, cerca de 75% dos infectados não apresentam sintomas e não percebem que têm a doença. Para a grande maioria (70-80%), ela se desenvolve como uma infecção crônica e permanece no fígado. Após várias décadas, alguns (5-30%) desenvolvem cicatrizes hepáticas ou cirrose, e são mais propensos a ter câncer de fígado. Pacientes crônicos de Hepatite C constituem a maior demanda por transplantes de fígado. A maioria das infecções diagnosticadas pode ser rastreada pelo uso de medicamento intravenoso, mas a transmissão entre homens que praticam sexo com outros homens está aumentando.

Adaptação: Maurício Thuswohl

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