1991 ou quando caiu o último bastião dos homens
Ainda em 1990, os homens do cantão de Appenzell-Innerhoden, que tem 16.000 habitantes, negaram às mulheres o direito de votar em nível cantonal. swissinfo.ch conversou com as mulheres de Appenzell sobre as razões dessa situação e seu desenvolvimento desde então.
Ao longo do ano, carros estacionam na praça da assembleia cantonal (Landsgemeinde) da cidade de Appenzell-Innerhoden. Mas na primavera, milhares de Appenzellers se reúnem aqui em um único dia para votar sobre o destino político de seu cantão. Antes da pandemia, os eleitores se aglomeravam densamente na praça, mas isso mudou. Hoje parece inconcebível, mas há pouco mais de 30 anos, as mulheres não tinham permissão para votar aqui.
Aqui ouve-se a saudação suíça típica “Grüezi!”, seja na praça ou em frente ao prédio do governo. O município de Appenzell é provavelmente a única capital cantonal onde estranhos são saudados pelos habitantes locais. Os habitantes locais chamam sua cidade de “vilarejo”, ou “Dorf”, em alemão.
Anju Rupal já vivia no “vilarejo” no final dos anos 80 sem suspeitar, no início, do déficit democrático existente. “Amigos me enviaram trechos do New York Times e do Guardian”, ela se lembra. Uma inglesa de raízes indianas, ela aprendeu via imprensa internacional sobre a inexistência de sufrágio feminino onde vivia. Em retrospectiva, pode parecer ingênuo, mas Rupal supunha na época que todos tinham o direito de voto nas democracias ocidentais.
Série “50 anos do sufrágio feminino”
Com a aprovação da proposta em 1971, a Suíça se tornou um dos últimos países a introduzir o princípio do sufrágio universal. O país alpino, considerado um modelo de democracia direta, passava a ser uma jovem democracia liberal.
SWI swissinfo.ch aborda em um dossiê esse importante momento histórico do país. Uma reportagem leva o leitor à Appenzell Rodes interior, que, em 1991, foi o último cantão a introduzir o sufrágio feminino em nível cantonal e comunal.
Em 4 de março de 2021, a SWI swissinfo.ch organiza um debate digital sobre o tema “50 anos de sufrágio feminino: antiga questão de poder – nova batalha com novas cabeças”.
Em Inner Rhoden, ela foi rapidamente aceita. Isso, diz ela, é por causa de sua personalidade, mas também porque ela é casada com alguém de Appenzell. “Em Appenzell, as pessoas sempre perguntam: ‘A quem você pertence?” explica Rupal, consciente de que atitudes como estas provavelmente são um dos fatores que explicam por que o bastião masculino excluiu as mulheres por tanto tempo.
Contra a Suíça “Walt Disney” dos homens
Innerrhoden desempenhou apenas um papel marginal no movimento das mulheres suíças. O sufrágio feminino não foi introduzido nacionalmente até 1971, 65 anos mais tarde do que na Finlândia, a pioneira europeia, e doze anos depois do cantão pioneiro de Vaud. Isto foi feito por meio de um referendo entre os eleitores do sexo masculino. Quase todos os cantões introduziram o sufrágio feminino em 1972, no mais tardar.
Benjamin von Wyl nasceu em 1990 no cantão da Argóvia. O jornalista independente colabora, dentre outros, para a SWI swissinfo.ch e o jornal semanal WOZ.
Seu último romance intitulado “Hyäne” (Hiena), publicado em setembro de 2020, recebeu o Prêmio de Literatura do ministério suíço da Cultura.
Como Rupal havia obtido seu passaporte suíço quando se casou, ela pôde votar quando as mulheres de Appenzell foram autorizadas a participar da assembleia cantonal pela primeira vez. Quando ela se lembra, ainda hoje ela parece ficar eufórica. “Eu estava tão entusiasmada que votei com ambas as mãos; naquele dia, elas eram provavelmente as únicas mãos com cor de tez marron”.
Somente na vizinha Appenzell-Ausserrhoden a Landgemeinde não aprovou o sufrágio feminino até 1989. Enquanto uma petição das mulheres de Ausserrhoden foi enviada ao parlamento suíço, houve pouco interesse em um engajamento nacional por parte de Innerrhoden. Feministas das grandes cidades falaram na televisão suíça de “um lugar como num filme de ‘Walt Disney’”, sendo que localmente não havia um amplo movimento de mulheres.
Quando a organização de mulheres do Partido Social Democrata Suíço realizou sua reunião anual em Appenzell, no final dos anos 80, ela obteve pouco apoio. O reflexo defensivo contra a intervenção externa era forte em Innerrhoden.
“Aqui, guerreiras solitárias como Ottilia Paky-Sutter ou a artista Sibylle Neff, que atirou pratos pela janela em protesto durante a assembleia cantonal, se engajaram politicamente”, conta Agathe Nisple. A maior ação foi um anúncio no qual as mulheres de Innerrhoden declararam seu apoio ao direito de voto.
Economicamente independente, afinal de contas
Devido ao sucesso do comércio de bordados, muitas mulheres locais já tinham a principal renda nos lares na virada do século 20, segundo a historiadora de arte Nisple. Ainda assim, a esfera política permaneceu inteiramente masculina.
Agora com 65 anos, Nisple cresceu em Appenzell, mas deixou para trás a vida no vilarejo para trabalhar e fazer seus estudos universitários durante algum tempo. Em nível nacional, ela pertence à primeira geração de mulheres suíças a ter tido permissão para votar e ser eleita ao longo de toda sua vida adulta. Em seu cantão de origem, por outro lado, ela foi apenas capaz de observar de fora a política por muito tempo sem quaisquer direitos. “Já se passaram 30 anos, e por outro lado, são apenas 30 anos”, diz a nativa do Appenzell levantando suas as mãos.
Depois que o conselho regional masculino voltou a rejeitar o sufrágio feminino na primavera de 1990, recursos legais com cerca de 100 assinaturas foram submetidos ao Supremo Tribunal Federal. Em 26 de novembro de 1990, a mais alta corte suíça aprovou por unanimidade o teor das petições.
Homens mentalmente entrincheirados
“Fiquei grata pela decisão do Tribunal Federal”, diz Nisple, “caso contrário talvez não tivéssemos o sufrágio das mulheres até hoje”. Isso indica como as opiniões estavam divididas, diz ela. Em 1990, todos os homens do parlamento cantonal de Appenzell eram a favor, mas a assembleia masculina na Landsgemeinde decidiu contrariamente.
Como acontece frequentemente quando os homens negam direitos, espaços e posições a outros gêneros, muitos dos oponentes do direito de voto não argumentaram de forma abertamente sexista. Por exemplo, eles disseram que a área de assembleia era muito pequena para comportar a presença das mulheres, caso elas fossem autorizadas a participar. Em uma discussão na televisão, por outro lado, um oponente alegou que a Landsgemeinde significava para os homens o que o Dia das Mães significava para as mulheres, sem considerar que nem todas as mulheres são mães. Ouvimos até que a filha de uma partidária do direito de voto só pôde frequentar a escola com proteção policial.
Agathe Nisple sempre foi uma defensora franca do sufrágio feminino. “Mesmo na minha juventude, os colegas nos provocavam nos encontros habituais nos bares. ‘É desnecessário e inútil’, diziam eles”. Ela sempre reagiu de forma construtiva e esclarecedora às provocações. “Às vezes me pergunto se essa foi a coisa certa a fazer”.
Publicações sobre os 50 anos do direito de voto das mulheres (seleção)
Livros
“50 Anos de Sufrágio Feminino”. 25 mulheres falam sobre democracia, poder e igualdade de direitos”Link externo, editado por Isabel Rohner e Irène Schäppi.
“Condenadas a esperar. A luta pela igualdade de direitos da mulher na Suíça desde 1900”Link externo, Werner Seitz.
“O dia em que os homens disseram “nãoLink externo“, romance de Clare O’Dea.
Blog: CH2021Link externo
Podcasts
Mulheres no Parlamento Federal. 50 anos do direito de voto para a mulherLink externo (exposição no Museu de Historia de Berna).
diepodcastin.deLink externo: série de podcasts de Isabel Rohner und Regula Stämpfli.
50 anos do direito de voto para a mulher na Suíça – O direito de voto veio, mas não a igualdade de direitosLink externo (Podcast.de).
Filme
“A Ordem Divina”,Link externo filme ganhador do Prêmio Suíço do Cinema em 2017.
Arquivo
“Memória do Movimento Suíço de Mulheres”Link externo foi salva graças à contribuição de dois milhões de francos do governo federal para os próximos quatro anos do orçamento do Arquivo Gosteli.
Canção
“We have a Voice”, de Lea Lu. Clique AQUI para escutar.Link externo
Finalmente, a Landsgemeinde para ambos os sexos
A estreia das mulheres no “ringue” da Landsgemeinde transcorreu sem conflitos. “Isso me surpreendeu imensamente, mas também me deixou muito feliz”, diz Nisple. Cerca de um terço das 4.000 pessoas presentes na Landsgemeinde em 1991 eram mulheres. Apenas uma vez uma delas tomou a palavra. “Com capacidade de exprimir sua opinião, você fica exposta”, diz ela. “É preciso força para ter uma opinião diferente”. Mas isso é parte do jogo”. Qualquer argumento no pódio pode afetar o ânimo na praça. Nisple ama este ritual de democracia até os dias de hoje.
No resto da Suíça, a Landsgemeinde é considerada por muitos como uma instituição pré-moderna. Devido ao horário e local fixos, os doentes e ausentes são excluídos da votação. E é claro que todos podem ver quem vota e como. O sigilo do voto, um pré-requisito básico para uma democracia em funcionamento, não é, portanto, preservado. Diz Nisple: “No caso do sufrágio feminino, as dinâmicas de grupo foram certamente um fator. Não era “in” ser favorável ao sufrágio das mulheres, tanto para as mulheres quanto para os homens”.
No início dos anos 90, o Fórum da Mulher se formou como uma associação. Mulheres se tornaram juízes e conselheiras federais. A carreira de Ruth Metzler, que é provavelmente a mulher mais famosa do menor cantão da Suíça, a levou até o Conselho Federal em 1999. Mas em comparação com o resto da Suíça, a proporção de mulheres no parlamento cantonal permaneceu extraordinariamente baixa até os dias de hoje.
Vida pública dominada por homens
Apenas onze dos 50 membros do Parlamento são mulheres, sendo que uma delas é Gerlinde Neff-Stäbler. Na rua principal do vilarejo, a Hauptgasse, ela conta como vivenciou isso há 30 anos. Era uma quarta-feira, ou “Mektig”, como o dia da semana é chamado no dialeto de Appenzell. “A cidade velha estava cheia de fumaça. Por toda parte eles se sentavam com cigarros e charutos e cuidavam de seus negócios: os agricultores, os negociantes de gado, os moleiros e os comerciantes de farinha”. Mulheres, também? “Não havia mulheres. Cheguei de Stuttgart e me perguntei do que se tratava, aquela multidão de homens”. Neff-Stebler veio da grande cidade alemã ao leste da Suíça para trabalhar como enfermeira. Ela logo mudou de profissão e dirigiu uma fazenda alpina com seu agora marido, um nativo de Appenzell.
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“Sem o direito de voto para as mulheres, a Suíça não seria uma democracia”
Hoje ela representa o grupo de agricultores no parlamento. “Tenho um caráter moderado; não sou uma lutadora exaltada”. Quando ela acompanha os debates no parlamento federal, o Bundestag, ela diz estar feliz por ser o tom em seu parlamento mais amigável. “Mas estou convencida de que há necessidade de mulheres que liderem com voz alta”. Muito das demandas feitas em voz alta acaba sendo abandonado antes delas serem implementadas, disse ela. “O que resta então, esperamos, é a igualdade”.
Recentemente, disse ela, um homem lhe disse que não tinha ido a uma Landsgemeinde desde que o sufrágio feminino começou a existir. “Ainda há homens para quem isso é intragável. E ainda há mulheres que não vão”, disse Gerlinde Neff-Stäbler.
Adaptação: DvSperling
Ottilia Paky-Suter, pioneira na luta pela igualdade de direitos
A história de Ottilia Paky-Sutter, originária do cantão do Appenzell, difere fortemente da vivida por Anju Rupal, na Grã-Bretanha. A pioneira do sufrágio feminino perdeu a nacionalidade suíça em 1947 após se casar com um austríaco. Essa experiência para alguém que tinha fortes raízes na região e também era uma estrela da música popular, promoveu a politização de Paky.
Em 1952, ela e sua família reconquistaram a cidadania suíça por votação em praça pública e após o pagamento de uma taxa de 2.500 francos (uma quantia que hoje equivale a 12 mil francos). Foi um momento marcante na vida de Paky, uma pequena empresária dona de uma loja de roupas folclóricas em Appenzell. Durante toda a vida defendeu o direito universal de voto.
No final dos anos 1970, Paky organizou protestos que contaram com a presença de cerca de 60 mulheres. Um argumento comum dos opositores ao direito do voto na época era que apenas as mulheres imigrantes não tinham direitos políticos. Paky queria combater a ideia e publicou um anúncio solicitando a participação do maior número possível de mulheres. Depois que apenas 25 cidadãs se mostraram dispostas a assinar,a petição de Paky, ela abandou seu projeto de criar um movimento.
O que é “Landsgemeide”? Clique no artigo abaixo para entender mais sobre essa particularidade da Suíça.
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