Perspectivas suíças em 10 idiomas

“Achei que alguma coisa estava errada”

Os atores Marcelo Faria (esq) e Márcio Libar (dir) numa cena do filme. swissinfo.ch

Foi pulando por cima de meninos de rua adormecidos, em Copacabana, que Alice de Andrade teve idéia de um filme sobre pessoas que ninguém quer ver no bairro.

Daí surgiu Diabo a Quatro, em concurso na Suíça. Ela nos fala do filme e da restauração da obra do pai.

Alice de Andrade, carioca, 39, está há seis anos empenhada com os dois irmãos em restaurar os 14 filmes realizados pelo pai, Joaquim Pedro de Andrade, autor de Macunaíma, projetado em Friburgo.

Nesse meio tempo sobrou-lhe tempo para fazer seu primeiro longa-metragem, O Diabo a Quatro, que concorreu a um prêmio no Festival Internacional de Filmes de Friburgo, encerrado no domingo, 13 de março.

Seu trabalho já havia iniciado uma carreira internacional, em fevereiro, em Rotterdam. Foi bastante bem acolhido na Holanda e menos bem na Suíça. Mas Diabo a Quatro não deixa de ter alguns méritos, entre outros de reabilitar um pouco a desgastada imagem dos meninos de rua e das prostitutas.

Tivemos ocasião de conversar com a cineasta:

Como aconteceu sua participação no FIFF

Tinha vindo em 1994 com meu primeiro curta, Lua de Mel e tinha gostado do Festival. Este ano tinha acabado há pouco tempo O Diabo a Quatro quando recebi convite para mandar o Macunaíma. Resolvi mandar junto meu primeiro longa-metragem que foi selecionado.

Com quais expectativas você participa…

Nenhuma. Minha expectativa maior é saber o que o público acha do filme. Estou com muita vontade de ver como ele funciona com diferentes públicos. Não só brasileiro como internacional. Isso muda de país para país, de festival para festival, de sala para sala.

Onde já passou seu filme?

Primeiro, no fim de outubro, no Festival do Rio, onde foi muito bem acolhido. Depois no Festival de Brasília, onde ganhamos o prêmio do júri “pelo exemplo de um cinema criativo, provocativo e comunicativo”. Em seguida, em fevereiro deste ano, houve a estréia internacional, no Festival Internacional Cinema de Rotterdam. Lá o filme foi muito bem recebido: ficou em 30° entre 200 filmes na preferência do público. Foi ótimo porque foi preferido a muitos filmes que foram premiados em Cannes e Veneza.

E a aceitação em Friburgo, que tem notado?

O público aqui é menos expansivo que o público holandês. Mas ouvi ótimos comentários quando ouvi, porque o público é mais reservado. Acho que O Diabo a Quatro é um filme arrojado. Não é todo o mundo que gosta, isso é normal. Mas acho que, de modo geral, foi bom: a sala estava lotada, as pessoas riram, aplaudiram…

Com que intenção você fez esse filme?

Um dia em que estava apressada, pulei, de repente, por cima de crianças que dormiam na rua. Fiquei pensando nisso. Nossa! alguma coisa está errada. Não posso ficar pulando por cima de meninos de rua. E aí comecei a pensar sobre o assunto e tive a idéia de fazer um filme sobre essas crianças que a gente procura não ver. Procurei abordar também o mundo das prostitutas de Copacabana, que me interessa e me toca. Havia conversado com muitas “garotas de programa” do bairro e queria mostrar esse mundinho de Copacabana e esses mundos que são estigmatizados, mas vistos de dentro e sem preconceitos. Daí a idéia de fazer chegar ao bairro dois “estrangeiros”: um menino do interior e uma garota amazonense que descobrem esse mundo na maior ingenuidade. Através da comédia também, o filme faz com que as pessoas possam olhar pra isso sem incômodo, sem que isso se transforme em experiência de denúncia. O resultado é que as pessoas saem do filme se sentindo bem, segundo comentários que ouvi. Isso é importante para mim. Isso é estimulante e faz bem.

A acolhida no Brasil foi boa, não é mesmo?

É, principalmente no Brasil. O filme é sobretudo voltado para o público brasileiro. Em Brasília foi aplaudido seis vezes, no Rio também… porque é visão aguda mas bem humorada.

Como você vive a situação de ser filha de… (Joaquim Pedro de Andrade, uma muito boa referência no cinema brasileiro) e ao mesmo tempo as pessoas parecem esperá-la na esquina pra ver até que ponto seu trabalho é seu mesmo?

Eu tenho muito boa com meu pai. Ele era meu melhor amigo. Fui assistente dele, aprendi muita coisa com ele. Claro que existe uma influência, uma relação. Inclusive agora estou trabalhando muito na restauração dos filmes dele. Não tenho nenhum problema com isso. Mas as pessoas, de modo geral, tendem a não saber desvincular uma coisa da outra, ou talvez não querer desvincular uma coisa da outra. Espero que com o tempo meu trabalho possa ter força suficiente para ser independente e não ser sempre referenciado ao trabalho de meu pai. Adoro o trabalho dele que acho muito inteiro, muito verdadeiro que reflete muito a realidade brasileira, muito pessoal…

Mas daria para relacionar O Diabo a Quatro com Macunaíma pelo fato de você introduzir no seu filme uma lenda amazônica?

É. Eu sou, como ele era, muito ligada ao Brasil. Preciso trabalhar no Brasil, mesmo vivendo na Europa. No caso, vejo muitos pontos comuns entre os dois filmes: muitas cores, um estilo de interpretação muito aberto, escrachado e um filme de apelo popular, que foi feito para ser popular. E parece-me que consegue ser popular, da mesma forma que Macunaíma. Já quanto as lendas amazônicas, só me dei conta depois, por incrível que pareça. É claro que deve ter aí uma influência.

A quantas anda seu trabalho de restauração dos filmes de seu pai (seis longas e oito curtas metragens)?

Todos estão sendo restaurados graças à Santa Petrobrás em formato 2K, altamente profissional, com tecnologia de ponta, inteiramente brasileira, desenvolvida a muito custo. Tudo digital, feito de maneira muito séria por nós, os herdeiros, meu irmão Antônio, minha irmã Maria e eu mesma. Estamos associados à cinemateca brasileira que é um organismo sério, vinculado à FIAF, Federação Internacional de Arquivos de Filmes. E tudo está sendo feito com o maior esmero. Faço um pré-doutorado em restauração e me interesso muito por isso. Até agora restauramos a metade dos filmes. Esperamos terminar no fim deste ano 2005. Os métodos estão azeitados, a equipe está muito ágil agora. Esse tipo de restauração, nesse formato e com essa definição, nunca havia sido feito no Brasil. É uma experiência super-pioneira.

Pelo fato de viver na Europa e dispor de certo recuo para julgar, você acha que os filmes brasileiros têm visibilidade suficiente no velho continente?

Acho que é preciso melhorar isso. O Brasil precisa criar estruturas de difusão da filmografia nacional melhores no exterior. Poucos são os filmes que chegam aqui. Mas me parece que a produção brasileira está numa fase muito favorável com muitos cineastas cada vez mais interessantes e afirmando linhas pessoais com trabalhos profundamente relacionados com a realidade brasileira nos seus mais diferentes aspectos. A parte de cinema documentário está muito boa, com assuntos, óticas e percepções muito variados e acertados. Com o Ano do Brasil na França, agora em 2005, vai haver uma difusão muito boa do nosso cinema lá. Está havendo várias mostras, vai ter um festival de documentários e o Festival Brasileiro de Cinema de Paris vai ser bom este ano também. Há vários centros culturais fazendo exibições. Então acho que isso vai dar maior visibilidade para este momento especial do cinema brasileiro. (…) Analisei a produção recente e vejo que há uma força surgindo aí…

Parece que o problema com o documentário é a dificuldade de ser mostrado ao público. Isso acontece geralmente só em festivais, não?

Acho que isso está mudando. Mudando internacionalmente. No Brasil, o mercado de documentário vem se abrindo bastante, conseguindo bom número de entradas nas salas. Acho que fenômeno semelhante está acontecendo no exterior. Como as leis de incentivo no Brasil dão a possibilidade a quem sabe utilizá-las de fazer filmes em condições confortáveis, o nível de experimentação e de excelência técnica está ficando cada vez mais elevado. E desde que acabou o governo Collor e uma época negra, as pessoas estão podendo produzir com muito mais constância. Isso faz com que os recursos narrativos dos documentários se tenham desenvolvido muitíssimo. Essa evolução é muito interessante. A gente que constata isso de fora, fica mais otimista, achando que está realmente acontecendo alguma coisa. A noção de conjunto tem também sua importância: a possibilidade de assistir a filmes inter-relacionados. A propósito, ver a obra completa restaurada de meu pai, por exemplo em forma de retrospectiva, dá idéia do pensamento inteiro dele sobre o País. Aliás, nos seus filmes, ele só se interessava pelo Brasil.

Que projetos você tem em mente atualmente?

Estou com a idéia de fazer um filme de ficção na França. Tenho que viver mais uns anos na França porque tenho uma filha pequena. Mas trabalho em ritmo lento, porque tenho outras coisas prioritárias, como a restauração que me ocupa há seis anos. Depois de restituir os filmes de meu pai ao público e ao mercado, vou me libertar disso e fazer um trabalho com tranqüilidade. Tudo não passa do nível de idéia, mas posso avançar que é um filme sobre pessoas que sonham tão forte que materializam os sonhos.

swissinfo, J.Gabriel Barbosa, Fribourg

Certificação JTI para a SWI swissinfo.ch

Mostrar mais: Certificação JTI para a SWI swissinfo.ch

Veja aqui uma visão geral dos debates em curso com os nossos jornalistas. Junte-se a nós!

Se quiser iniciar uma conversa sobre um tema abordado neste artigo ou se quiser comunicar erros factuais, envie-nos um e-mail para portuguese@swissinfo.ch.

SWI swissinfo.ch - sucursal da sociedade suíça de radiodifusão SRG SSR

SWI swissinfo.ch - sucursal da sociedade suíça de radiodifusão SRG SSR