
Diretor suíço-queniano cria romance lo-fi em cenário futurista high-tech

Damien Hauser une ficção científica especulativa, mocumentário e romance em Memory of Princess Mumbi, longa-metragem que estreou em Veneza. Filmado no Quênia com atores amadores e cenas improvisadas, o filme aborda os dilemas éticos e criativos de utilizar a inteligência artificial no cinema, explorando também suas possibilidades artísticas.
Com apenas 24 anos, Damien Hauser gosta de filmar em ritmo acelerado, seguindo os passos de cineastas prolíficos como o romeno Radu Jude e o sul-coreano Hong Sang-soo.
Depois de assinar três longas-metragens e vários curtas, Damien Hauser apresentou Memory of Princess Mumbi (Memória da Princesa Mumbi, em tradução livre), seu trabalho mais recente, no Festival de Cinema de Veneza, que foi realizado entre o final de agosto e o início de setembro. A obra combina ficção científica especulativa, efeitos especiais feitos com inteligência artificial, mocumentárioLink externo[filme fictício que simula o formato de documentário] e romance. A SWI swissinfo conversou com Hauser sobre seu novo filme.
Quando foi revelado que o diretor Brady Corbet havia utilizado inteligência artificial para fazer pequenos ajustes em O Brutalista (2024), indicado ao Oscar, a polêmica foi tão grande que quase comprometeu sua campanha de premiação. Hoje, porém, muitos cineastas mais jovens estão começando a substituir o medo desse tipo de ferramenta por um otimismo cauteloso.
Memory of Princess Mumbi é um ótimo exemplo: um filme que reconhece abertamente as implicações éticas do uso da inteligência artificial, ao mesmo tempo em que aposta no seu potencial criativo – e sem perder tempo.
Dois lados da tecnologia
“Quando eu comecei a fazer filmes, aos setes anos, era como se fosse um jogo”, conta Hauser à swissinfo após a estreia de seu filme em Veneza. “Filmava em uma hora, sem roteiro, apenas experimentando com amigos. Mas, com o tempo, as coisas foram ficando mais sérias e acabei produzindo menos a cada ano – em vez de fazer 20 por ano, eu fiz três, e agora apenas um”. Hauser parece quase melancólico ao contabilizar os filmes que produz, como se um longa-metragem por ano fosse muito pouco.
Memory of Princess Mumbi se passa em 2093 e acompanha a história de Kuve, um jovem cineasta que viaja com seu amigo Damién, interpretado pelo diretor, até a cidade africana fictícia de Umata, tentando documentar pelo caminho as consequências de uma guerra devastadora. No mundo do filme, movimentos sociais em larga escala buscam se afastar das tecnologias digitais que quase destruíram a humanidade no meio do século 21.

Nascido em 2001 em Zurique, o suíço-queniano Damien Hauser produziu uma variedade impressionante de curtas-metragens, videoclipes, peças teatrais e comerciais, além de quatro longas-metragens: Blind Love (2021), Theo: A Conversation With Honesty (2022), After the Long Rains (2023) e, agora, Memory of Princess Mumbi (2025).
Ao contrário de muitos cineastas contemporâneos, Hauser filma quando sente inspiração, sem se deixar aprisionar pelas intricadas redes de desenvolvimento e financiamento. Em Princess Mumbi, ele avança ainda mais nessa abordagem, recorrendo à inteligência artificial para criar os efeitos especiais de ficção científica que visualizava.
Abrindo mão
Ao buscar atrizes para seu filme, o personagem de Kuve conhece Mumbi, uma jovem atriz local de espírito livre que está destinada a se casar com um príncipe – como o próprio Kuve descobre depois. Nasce um romance entre os dois, e Mumbi incentiva Kuve a abandonar o uso da inteligência artificial e criar uma obra que reflita de forma mais direta os anseios dos trabalhadores que encontram pelo caminho.
Apesar do enredo intrincado de ficção científica, Memory of Princess Mumbi foi “bastante improvisado”, diz Hauser, e permeado por um espírito livre de criatividade. Ele partiu sozinho para o Quênia com apenas um esboço do que tinha em mente. Contou com a ajuda de amigos da família e parentes distantes, e escolheu principalmente atores e atrizes amadoras para os papéis principais.
“Não havia roteiro oficial, mas eu escrevi um esboço detalhado de 40 páginas – muito nerd, muito específico sobre o mundo, suas histórias e mitologias”. Ele ri quando se lembra. Depois, explica que, ao começar a assistir às filmagens, percebeu que era necessário abrir mão de grande parte desse material e focar na essência emocional da história.

“Meu irmão mais novo faleceu mais ou menos na época em que comecei a brincar com essas ferramentas de IA, que acabaram dando origem a esse filme. Talvez eu não tivesse feito o filme em outro contexto, mas precisava me distrair. Depois que começamos as filmagens, ninguém no set se preocupou muito com o rumo da história; parecia apenas um momento descontraído na frente da câmera”, conta o jovem cineasta.
“Quando eu era mais jovem, adorava fazer filmes de fantasia ambientados em mundos imaginários. Vendo o que essas ferramentas [de IA] conseguiam fazer – e com minha experiência em efeitos visuais – percebi que finalmente poderia liberar meu lado infantil e dar vida a filmes nesses universos. Assim como o próprio filme, a pós-produção também precisou ser improvisada: eu havia feito alguns testes [com os efeitos especiais de IA], mas, no fim, eles te obrigam a improvisar. Se você quer ter controle, evite usar IA para fazer filmes”. O cenário e elenco quenianos ancoram o filme em uma realidade concreta, e a forma como o tempo é vivido no vilarejo onde filmaram – “onde não é possível planejar mais do que um ou dois dias” – proporcionou total liberdade. “Isso só era possível lá. Em Zurique, por exemplo, é mais complicado convencer meus amigos a tirarem um mês de folga, porque a vida é mais cara e estruturada”.
“Uma cápsula do tempo da tecnologia”
Em Memory of Princess Mumbi, Hauser recorreu à inteligência artificial principalmente para ampliar digitalmente sets e locações reais, mesclando ambientes filmados no Quênia com fundos criados por IA, o que resulta em um cenário africano épico e futurista. Assim como as pinturas utilizadas no cinema clássico [matte paintingsLink externo], os fundos criados por IA conferem ao filme uma sensação impressionante, embora artificial, de escala.
“O filme não se propõe a ser totalmente real”, acrescenta. “É uma cápsula do tempo da tecnologia no momento em que produzi a obra”.

Há uma cena na qual a própria Mumbi sugere ao personagem cineasta que identifique expressamente todas as imagens criadas por inteligência artificial. “Ao trabalhar com essas ferramentas, é realmente muito importante indicar o que é gerado por IA e o que não é”, acrescenta Hauser. “Hoje em dia, as pessoas têm dificuldade em distinguir o que é real do que é produzido por IA, e precisamos ser responsáveis na forma como incorporamos isso [em nossos filmes]”.
Coincidentemente, a cidade de Nairóbi, capital do Quênia, se tornou um grande centro de IA na África, mas também um espaço em que empresas de tecnologia predatórias conseguem explorar trabalho barato e um mercado vulnerável. Hauser sorri diante da coincidência inesperada. “Descobri um problema importante durante a produção do filme: frequentemente, ao ampliar minhas imagens, a IA acabava transformando meus personagens negros em brancos. Removia seus dreadlocks e clareava sua pele. Foi perturbador e estranho – mas também peculiarmente engraçado.

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Festival suíço destaca novos olhares sobre a África em documentários
Edição: Virginie Mangin & Eduardo Simantob/fh
Adaptação: Clarice Dominguez

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