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Festival suíço destaca novos olhares sobre a África em documentários

Duas jovens meninas
Fortune Mbitounou e Kevin Ossol, protagonistas do documentário “Kevine and Fortune”, são dois amigos inseparáveis que jogam no mesmo time de futebol da primeira divisão em Yaoundé, Camarões. Visions du Réel

Três documentários suíços dedicados à África apresentados no festival de cinema Visions du Réel, o maior festival de documentários da Suíça. Dirigidos por mulheres estreantes, os filmes apontam uma guinada na forma como o país lida com o legado colonial.

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Um dos principais festivais de documentários do mundo, o Visions du RéelLink externo, na Suíça, apresentou 154 filmes de 57 países diferentes. Este foi o maior número de filmes de sua história. Talvez não seja de se admirar que a seleção nacional de documentários suíços do festival seja frequentemente ignorada por seus convidados estrangeiros, que tendem a se concentrar nas duas principais competições ou tentam acompanhar os últimos sucessos de outros festivais.

Mas a seleção nacional oferece uma visão perspicaz da produção suíça contemporânea de documentários. Na programação deste ano, foi impressionante que três documentários suíços na competição trouxessem histórias da África.

Futebol e amizade

O documentário Kevine et Fortune, de Sarah Imsand, é uma exploração comovente da amizade entre duas jovens camaronesas que compartilham o sonho de se tornarem jogadoras profissionais de futebol no exterior. Fitting In, de Fabienne Steiner, é um estudo sobre uma residência estudantil exclusivamente masculina na Universidade de Stellenbosch (África do Sul), onde o impacto de longo prazo do regime do apartheid ainda persiste; e Lettres au Docteur L, de Laurence Favre, é uma exploração experimental de diários escritos por um médico e missionário do século 18 enviado ao sul da África.

Cada um desses filmes, por meio de diferentes estratégias narrativas e formais, aborda as reverberações contínuas de práticas coloniais ocidentais seculares em comunidades específicas. São tentativas modestas, porém perspicazes, de desafiar sistemas arraigados de hegemonia econômica e cultural.

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Como forma criativa, o documentário sempre envolveu inerentemente uma assimetria de poder entre o sujeito diante da câmera e a pessoa por trás dela, sendo este último, tradicional e historicamente, um homem branco ocidental, e os documentaristas suíços não foram exceção. Nesse sentido, African Mirror, documentário de arquivo de Mischa Hedinger de 2019 sobre o viajante e cineasta suíço René Gardi, oferece uma análise convincente dessa figura estereotipada.

No entanto, a maré parece estar mudando. Considerando a crescente diversidade cultural e étnicaLink externo da Suíça, os três filmes da Competição Nacional do Visions du Réel, todos estreias de longas-metragens realizadas por mulheres, refletem um novo paradigma – transnacional, descentralizado e com diversidade de gênero.

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Gardi e sua equipe durante filmagem do documentário Mandara

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René Gardi, o fotógrafo que moldou a visão dos suíços sobre a África

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Herança mista

A diretora de Kevine et Fortune, Sarah Imsand, parece bem ciente dos limites da produção cinematográfica: “O documentário é um primeiro e importante passo para mim, e quero continuar avançando, e desafiando a mim mesma constantemente a aprimorar as formas de representação existentes”, afirma. Filha de pai etíope e mãe suíça, Imsand afirma ter plena consciência das tendências discriminatórias contra pessoas de ascendência africana na sociedade suíça, uma compreensão aguçada dos diferentes níveis de privilégio que ela posteriormente transpôs para sua obra.

As origens de Kevine et Fortune remontam a um projeto de pesquisa acadêmica conjunto entre Suíça, Camarões e Senegal sobre o envolvimento de jovens mulheres com o futebol na África. Imsand acompanhou as descobertas com uma produção audiovisual.

Seu documentário se desenrola com surpreendente ternura e calor, priorizando a amizade em detrimento de qualquer análise sociocultural abrangente. “Eu não queria dar a impressão de que estava fazendo generalizações sobre a sociedade camaronesa e as condições das mulheres”, diz Imsand, “porque isso me colocaria em uma posição dominante”.

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O próximo projeto de Imsand será um documentário pessoal sobre a família de seu pai, por meio do qual ela espera examinar sua herança etíope. “Tendo crescido na Suíça, quero explorar minha posição em relação à minha família etíope; as coisas que herdei e não herdei deles, mas também as razões pelas quais eles optaram por não transmitir certas coisas, e quais são essas coisas”, diz.

Erros do passado

Um grupo de pessoas
Laurence Favre (à esquerda) durante um “Thematic Pathway” (Caminho Temático) – um evento de caminhada e conversa para dar aos espectadores a oportunidade de interagir com o cineasta sobre os temas do filme. Kenza Wadimoff

Laurence Favre, diretora de Lettres au Docteur L, interessou-se por arquivos missionários depois de herdar filmes e cartas de um membro da família que havia trabalhado em uma missão suíça; um legado que ela explorou pela primeira vez em seu curta-metragem Nwa-Mankamana (2013).

“É fundamental sempre se perguntar como não repetir os mesmos erros do passado”, afirma. Em Lettres au Docteur L, ela adota um diálogo entre diferentes temporalidades e lugares, convidando pessoas do sul da África a se dirigirem ao Docteur L por meio de cartas. Lidas em voz dublada, essas cartas se tornam cápsulas sonoras que viajam no tempo.

Referindo-se ao recente aumento de exposições que abordam o colonialismo na Suíça, Favre enfatiza a importância da cautela no uso de termos como “virada descolonial”: “Há uma tendência de olhar para os arquivos e dizer: ‘Oh, como o passado foi terrível’, como se o racismo estrutural não persistisse ao longo do tempo”, observa. “Estamos no início de algumas tentativas bastante tímidas, que muitas vezes fingimos ser muito mais substanciais do que realmente são.”

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“Olhar colonial” da Suíça

Em antigos impérios como a França ou a Bélgica, onde os legados coloniais ainda persistem e assumem novas formas, o cinema frequentemente serve como ferramenta de redenção ou retribuição. Nesse sentido, a Suíça, que é um país que nunca teve colônias oficialmente, mas que assumiu plenamente o olhar colonial branco europeu, ocupa uma posição peculiar.

“A Suíça tem uma longa tradição de filmar no exterior”, observa a diretora artística da Vision du Réel, Émilie Bujès, quando questionada sobre a presença de três filmes centrados na África na seleção. Embora não tenha observado um aumento substancial em seu número recentemente, Bujès ressalta que há muito tempo existem filmes feitos em ou sobre economias marginalizadas.

Bujès vê isso menos como uma questão de cultura do que de orçamento e realidade econômica: “Os cineastas suíços poderiam ir filmar em quatro países diferentes porque têm orçamento para isso. É um fato que não podemos ignorar.”

Uma mulher
Émilie Bujès, diretora artística do festival “Visions du Réel”. Sebastien Agnetti

Embora o público europeu ainda esteja relativamente desacostumado com leituras pós-coloniais e com o revisionismo histórico, e possa até mesmo perceber uma ameaça potencial no que hoje é frequentemente chamado de “movimento woke”, essas discussões refletem, no entanto, uma mudança global mais ampla na indústria cinematográfica.

Em resposta a essas mudanças, Bujès expressa confiança no público: “A legitimidade da perspectiva de alguém é uma questão difícil de discutir, mas eu me abstenho de fazer julgamentos definitivos e imutáveis, porque acredito que somos inteligentes o suficiente para avaliar a relevância e o valor de um filme com as ferramentas que temos à nossa disposição.”

Adaptação: DvSperling

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