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“É trazer o que tem de melhor no meu DNA”

A atriz Djin Sganzerla em uma das cenas do novo "Bandido da Luz Vermelha". Gabriel Chiarastelli

"Luz nas trevas - a volta do Bandido da Luz Vermelha" participa da mostra competitiva no Festival de Cinema de Locarno. Uma família inteira está por trás desse remake de um dos clássicos da cinematografia brasileira.

À imprensa, a diretora explica por que o filme pode ser visto como uma vingança pessoal do cineasta Rogério Sganzerla ao chamado cinema da “Boca do Lixo”.

O único filme latino-americano na competição pelo Leopardo de Ouro é um projeto familiar. Na coletiva de imprensa de “Luz nas trevas – a volta do Bandido da Luz Vermelha”, a codiretora Helena Ignez lembra-se das últimas palavras do marido falecido em 2004: “Ele me disse: eu passo a bola para você, Helena.”

No seu leito de morte, Rogério Sganzerla não apenas manifestava o desejo de ver concretizado o remake de um dos mais importantes filmes do cinema brasileiro, “O Bandido da Luz Vermelha” (1969), filmado por ele quando tinha apenas 22 anos, mas também já deixava o roteiro pronto.

Para colocá-lo na tela, Helena convidou o diretor Ícaro Martins, fundador do movimento Novo Cinema Paulista. O principal papel feminino ficou reservado à sua filha, Djin Sganzerla, que no filme contracena com seu marido, o ator André Guerreiro Lopes. Outros membros da família participaram da produção e elaboração da trilha sonora. Porém desde o início, o importante era manter o espírito da obra.

“A primeira coisa que me interessou no roteiro foram as palavras e os diálogos, que eu achei insubstituíveis, de uma riqueza extraordinária e que não poderia ser perdido”, explica Helena aos jornalistas. Já Djin considera sua atuação um dever de família. “É trazer o que tem de melhor no meu DNA para as telas”, afirma.

Paralelos

Assim como “O Bandido da Luz Vermelha”, o novo filme é uma espécie de seguimento fictício da história de João Acácio Pereira da Costa, um legendário criminoso dos anos 1960 em São Paulo, famoso por cometer os crimes sempre nas últimas horas da madrugada, cortando a energia da casa, usando um lenço para cobrir o rosto e carregando uma lanterna com bocal vermelho.

Ao ser preso em 8 de agosto de 1967, João foi acusado por quatro assassinatos, sete tentativas de homicídio e 77 assaltos. Os juízes lhe condenaram a 351 anos de prisão. Depois de cumprir 30 anos, ele foi solto e logo depois assassinado em uma simples briga. Nos poucos meses em liberdade, gostava de vestir roupas vermelhas e, quando alguém lhe pedia um autógrafo, simplesmente escrevia a palavra “autógrafo”.

No filme de Helena Ignez, o Bandido da Luz Vermelha é interpretado pelo cantor brasileiro Ney Matogrosso como um presidiário envelhecido e amargurado, que passa os dias na prisão filosofando sobre as injustiças do mundo. Seu filho descobre a origem do pai e decide seguir seus passos no crime como um bandido apelidado pela polícia de “Tudo-Ou-Nada” (o ator André Lopes). Ele também assalta ricos, sem se esquecer de justificar seus atos como vingança pelo quadro social do país.

Sua namorada também se chama Jane, como na primeira versão. Nesse personagem, Djin Sganzerla se assemelha um pouco ao papel assumido pela sua mãe na época por estar próxima ao crime – ela é prostituta – mas sem ser pistoleira ou traidora como “Janete Jane” do filme em 1969.

Em comum, os dois filmes apresentam cenas urbanas de miséria, violência e corrupção, nas quais a ficção é misturada com recortes visuais de manchetes de jornais, letreiros de cinema e até discos voadores. Essa composição, por vezes caótica, é intencional. “O Rogério sempre teve a proposta de misturar várias linguagens. Isso faz parte da essência do cinema moderno desde o Cidadão Kane, do Orson Welles, um filme que começa também como suspense, vira policial e passa pelo documentário”, afirma o codiretor Ícaro Martins.

Maldição da Boca do Lixo

Questionada por um jornalista sobre a dificuldade de recriar uma obra filmada há 50 anos, Helena afirma que não houve dificuldades. “Esses personagens atravessam esse período, mostrando de uma certa forma um Brasil que não mudou”, diz, completando. “O filme foi escrito dos anos 90 até 2003. O roteiro de ‘Luz das trevas’ é de hoje. E como Rogério já era um cineasta do futuro, ele está na frente e temos de correr atrás.”

Já a referência à Boca do Lixo, lar do cinema marginal paulista e famoso por ser reduto de tráfico e prostituição nos anos 1960 e até hoje, provoca reações. “O Rogério não era absolutamente um cineasta da Boca do Lixo. Eu o conheci como um jovem crítico, com 21 anos de idade. Ele era extremamente sofisticado, um intelectual. Ele era adorado pelo grupo cinematográfico de São Paulo. Essa ligação com a Boca do Lixo é uma fantasia”, retruca.

Mas o próprio Rogério Sganzerla já havia declarado aos jornais em 1969 que pretendia fazer do cinema brasileiro o pior do mundo. Depois do primeiro sucesso, seus filmes se tornaram cada vez mais experimentais, deixando de cair no gosto popular para atrair apenas amantes do cinema alternativo.

O ostracismo vivido por ele seria, na opinião de Helena, em parte culpa de uma falsa associação. “O cinema de Rogério é um cinema sofisticado e popular, ao mesmo tempo, sendo muito diferente de todo o cinema da Boca do Lixo, que se apropriou da sua obra, digeriu mal e impediu que ele trabalhasse”, confessa, sem esconder a tragédia da sua vida. “A carreira cinematográfica de Rogério, como de todos os gênios, foi trágica. Ele morreu por não poder filmar.”

Ney Matogrosso como ator

Se muitos espectadores do “Luz nas trevas – a volta do Bandido da Luz Vermelha” se espantam em ver Ney Matogrosso como ator, para Ícaro Martins é algo muito lógico. “O Ney é um ator que virou cantor. Você se lembra do grupo dele, o Secos e Molhados? Ele é um cara de palco”, reforça. “O Ney não apenas se identifica com o personagem, mas tem até uma canção chamada ‘Amor bandido’.”

O diretor revela que um dos mais famosos cantores do Brasil é capaz de interpretar e até ser dirigido. “O Ney pessoalmente é uma pessoa completamente diferente do palco: ele é um cara super-tímido e discreto. Ele é um ator que pede muitas indicações. Assim fizemos várias leituras com ele e discutiimos depois coisas como o andar na cena e outros detalhes do roteiro.”

O esforço de atuar era tanto que Ney Matogrosso nem poupava sacrifícios pessoais. “Uma vez nos ligou para perguntar se achávamos legal ele começar o filme de barba. Perguntamos então se dava para nos mandar uma foto. Ele se mandou para o seu sítio e depois de dez dias nos enviou a foto dele barbado”, conta Martins, dando gargalhadas.

Alexander Thoele, Locarno, swissinfo.ch

“Luz nas trevas – a volta do bandido da Luz Vermelha”

2010 – 35 mm – colorido e preto e branco – 83 min.

Direção: Icaro C. Martins , Helena Ignez

Roteiro: Rogério Sganzerla e Helena Ignez

Atores: Ney Matogrosso, Andre Guerreiro Lopes, Djin Sganzerla, Arrigo Barnabé, Sandra Corveloni, Maria Luisa Mendonça, Mario Bortolotto

Música: Sinai Sganzerla, Rodrigo Lima, Helena Ignez, Lucio Branco

Produção: Mercúrio produções ltda.

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