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A aristocracia foi mais importante do que faz crer o mito suíço

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Nos últimos anos aristocratas na Suíça têm recebido atenção especial dos historiadores. Foto: Castelo dos Habsburgos, cantão da Argóvia, gravura em chapa de cobre por volta de 1859 por Johann Georg Martini. Akg-images

A Suíça como uma república de camponeses livres que se rebelaram contra os Habsburgos e criaram uma democracia? Esta narrativa não tem nada a ver com a realidade.

Uma rebelião da república camponesa contra a opressão dos Habsburgos: esta é a história que os guias turísticos costumam contar aos turistas que visitam a Suíça. Existe alguma verdade nesta história, ou é apenas uma “narrativa”?

Nos últimos anos, as famílias nobres e aristocráticas suíças têm atraído a atenção dos historiadores na Suíça. No entanto, elas permanecem em grande parte invisíveis aos olhos da sociedade suíça até hoje. A monografia recentemente publicada pelo historiador suíço Andreas Z’Graggen, “Adel in der Schweiz” (Nobreza na Suíça), enfoca o papel das famílias nobres no início da Suíça medieval.

O trabalho é, de certa forma, o ponto culminante do trabalho de historiadores suíços anteriores que, já nos anos 1970, ofereceram uma visão mais matizada da história das origens da Suíça, apontando em particular para o papel da nobreza e das famílias nobres neste processo. Roger Sablonier (1941-2010), historiador suíço e seguidor da histórica “escola dos anais” francesa, é de particular importância neste contexto, pois ele desempenhou um papel importante na reavaliação deste tema.

Em sua dissertação publicada em 1979, ele já havia mostrado como as complexas relações entre nobreza, cavalaria, camponeses e cidades “burguesas” se desenvolveram no leste da Suíça no início da Idade Média.

Pluralidade de atores

No início da Idade Média, um sistema pluralista de quatro centros de poder se desenvolveu no que é hoje a Suíça. Primeiro, havia as propriedades eclesiásticas; segundo, os territórios sob o domínio de famílias nobres; terceiro, as cidades; e quarto, as comunidades rurais autogovernadas.

Estes centros são geralmente retratados hoje como tendo sido as próprias raízes do país, sobre as quais “700 anos de democracia suíça” cresceram.

A realidade foi muito mais complicada e muito mais interessante. Cada um dos quatro centros de poder mencionados acima estava sob uma trama de influências mútuas e dependências, de acordo com a região e a época. Algumas vezes os centros de poder entravam em conflito uns com os outros, outras vezes formaram simbioses mutuamente benéficas.

De fato, as comunidades rurais possuíam um certo grau de autogestão e autonomia. Ao mesmo tempo, porém, às vezes eram governados de forma bastante antidemocrática por concidadãos ricos.

O direito era então definido pelo que diziam aqueles que detinham o poder real. E estes eram frequentemente as famílias nobres, patrícias e aristocráticas. Uma das mais importantes famílias nobres da Suíça eram de fato os Habsburgos, exatamente como descreve o mito. No entanto, os senhores não eram tão sádicos quanto seu oficial de justiça Gessler no deslumbrante texto de “Guilherme Tell”: “Os Confederados caracterizavam os Habsburgos como malfeitores que tiranizavam o povo. Desta forma, eles justificavam sua própria gana de poder”.

De fato, historiadores suíços contemporâneos, incluindo Rainer Hugener, dizem que a nobreza suíça simplesmente não tinha os recursos militares e financeiros para governar seus territórios com mão de ferro, uma vez que a Velha Confederação (até 1798) era afinal um país pequeno e relativamente pobre. Nessa linha, os aristocratas concediam algumas liberdades para as comunidades rurais.

Além disso, as famílias aristocráticas e nobres começaram a se integrar cada vez mais com o ambiente camponês e urbano. Assim, eles se tornaram ” Confederados da alta nobreza”. A família Pfyffer de Lucerna, por exemplo, era uma delas. No século 16, esta família tornou-se uma das mais influentes da Suíça. A família von Wattenwyl desempenhou um papel semelhante em Berna, e logo se tornou uma das mais distintas famílias Bernesas. Nascia a aristocracia, a nova nobreza. Os novos governantes ocuparam cargos políticos, adquiriram títulos de nobreza e brasões.

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Suíça como estância dos reis e rainhas

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Os historiadores suíços também descobriram recentemente que a Igreja frequentemente atuava como mediadora neutra em disputas por terra. Por exemplo, quando as reivindicações divergentes de terras não podiam ser resolvidas satisfatoriamente, as partes contrárias transferiram esses bens para a Igreja, que foi capaz de acumular consideráveis recursos rurais e políticos ao longo do tempo.

Carreira de sucesso

No oeste francófono do que é hoje a Suíça, os Condes de Savóia eram os mais importantes e influentes rivais dos Habsburgos. As famílias nobres menores só podiam sobreviver e se elevar politicamente se entrassem ao serviço de uma ou outra dinastia. Mas foi somente graças às famílias nobres que a Suíça conseguiu cidades como Berna e Friburgo, que mais tarde contribuíram significativamente para o desenvolvimento da Suíça moderna.

As cidades se desenvolveram rapidamente em mercados importantes. Elas expandiram sua própria base de poder, romperam com a tutelagem da nobreza e até começaram a competir com ela. Depois das cidades, as comunidades e regiões rurais governadas de forma autônoma também começaram gradualmente a fortalecer suas posições. Um bom exemplo disso é a história da região de Glarus, que no final da Idade Média conseguiu se libertar tanto da influência eclesiástica quanto do poder da nobreza.

Da mesma forma, os cantões da Suíça central puderam consolidar sua posição, ou seja, as regiões que, segundo a narrativa tradicional, formaram o núcleo liberal a partir do qual surgiu a Suíça democrática moderna na luta contra os Habsburgos. Como Roger Sablonier demonstrou, porém, esses “cantões da floresta” eram inicialmente distritos administrativos sob o controle da nobreza. Somente então, libertos da dominação da nobreza, começaram a concluir tratados entre si para manter a paz, as chamadas “cartas da confederação”.

Não é coincidência que na Suíça moderna de hoje se encontre também uma divisão urbano-rural historicamente desenvolvida, que junto com o “Röstigraben” (a fronteira entre as regiões germanófonas e francófonas) e a divisão esquerda-direita formam a paisagem política bastante complicada da Suíça. A Suíça tem o azar de ter tantas linhas divisórias, mas também a boa sorte de que estas linhas divisórias nem sempre aparecem ao mesmo tempo e em paralelo.

Reorientação na historiografia

Vemos assim que um contexto político muito complexo moldou a Suíça no início da Idade Média. Nos últimos anos, a historiografia suíça moderna afastou-se da tendência de construir a gênese histórica da nação em torno da “expulsão dos malfeitores Habsburgos”. Em vez disso, os historiadores se perguntam cada vez mais como funcionavam os mecanismos de competição e cooperação entre os quatro centros de poder na Suíça da época (igreja, nobreza, cidades, comunidades rurais) entre o Lago de Constança e o Lago de Genebra.

Depois de uma prolongada guerra civil, que ocorreu esporadicamente na Suíça entre 1830 e 1847, a Suíça federal moderna foi fundada em 1848. Nesta, o soberano, ou seja, a única fonte de poder, era agora o “terceiro estado”, ou seja, o povo (inicialmente sem mulheres e sem judeus e estrangeiros). A nobreza finalmente perdeu seu poder e foi absorvida por uma nova comunidade histórica, o “povo suíço”. As famílias nobres perderam seus privilégios. Entretanto: “Esse não foi um ataque frontal contra elas”, escreve Z’Graggen. “O povo não abateu seus governantes. Eles tiveram permissão para manter seus bens”. A tomada violenta dos castelos e palácios não se concretizou.

Os descendentes de famílias aristocráticas têm hoje uma forte presença na sociedade suíça, trabalhando como engenheiros, diplomatas, médicos ou advogados e tendo assento no Conselho Nacional (Câmara dos Deputados), como Thomas de Courten do Partido do Povo Suíço (SVP, na sigla em alemão), cuja família era bastante influente no cantão do Valais na época da antiga Confederação Suíça. E alguns se tornaram agricultores e ainda hoje têm suas propriedades, como Sigmund von Wattenwyl, cuja família já foi proprietária de mais de seis castelos.

Portanto, a aristocracia não desapareceu. E talvez seja por isso que os suíços sempre receberam com tanto entusiasmo os monarcas britânicos e outros monarcas em suas montanhas, porque sempre souberam e ainda percebem o papel que a aristocracia desempenhou em sua própria história.

Adaptação: DvSperling

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