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Sem medo da morte, contra o suicídio

cena de Violetas na Janela
Cena da peça "Violetas na Janela": O livro original, psicografado pela médium Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho, vendeu mais de dois milhões de cópias desde sua primeira edição, em 1993. Ana Rosa

Assistido por mais de 300 mil pessoas nos vinte anos em cartaz no Brasil, o espetáculo teatral “Violetas na Janela” encerra amanhã, em Basileia, uma curta passagem pela Suíça.  

A atriz e diretora Ana Rosa, que adaptou o livro para o palco, em visita à swissinfo.ch contou um pouco da trajetória da peça. O fato gerador para ela foi a morte repentina da filha, que tinha a mesma idade (19) de Patrícia, a protagonista de “Violetas na Janela”. Ao lado da psiquiatra e infectologista Nelly Berchtold, vice-presidente da Union des Centres d’Études Spirites em Suisse (UCESS), Ana Rosa aproveitou para discutir alguns temas-chave para o entendimento do espiritismo, e porque os brasileiros são os principais agentes de propagação da doutrina na Suíça.

swissinfo.ch: Sua família também era espírita?

Ana Rosa: Não, eu na verdade fui criada no catolicismo – cheguei a ser ‘Filha de Maria’, mas minha avó fazia essa “clínica geral”, gostava de conhecer e transitar pela umbanda, espiritismo, enfim, era adepta de um certo ecumenismo.

swissinfo.ch: Mas há de fato alguns pontos de contato entre a umbanda e o espiritismo, especialmente no que diz respeito à mediunidade, não?

A.R.: Sim, essas entidades da umbanda, como o preto velho, o caboclo, os remedinhos etc., às vezes aparecem também nas chamadas “mesas brancas” (sessões espíritas), pois as pessoas que procuram [os espíritos] têm mais empatia com esse tipo de manifestação do que com o que chamamos “seres de luz” no espiritismo.

Mas essas divisões religiosas só servem para atrapalhar nosso trabalho, pois o que importa é a finalidade. Se você está ali para o bem, buscando alguma coisa que te ajude, querendo se conectar com coisas positivas, tanto faz a umbanda como o kardecismo. A diferença é que na umbanda não é preciso estudar a doutrina, geralmente as pessoas vão para pedir algo, ou fazer um trabalho. E os kardecistas têm uma grande ênfase no estudo, e por isso são considerados de certa forma “elitistas”.

swissinfo.ch:  As religiões tradicionais judaico-cristãs também acreditem na vida após a morte. Em que ponto o espiritismo difere delas?

A.R.: Eu rompi com o catolicismo por causa disso. Não aceitava essa ideia de que após a morte você fica adormecido no purgatório e, depois do Juízo Final, os bons vão para o céu e os maus para o inferno. Qual o sentido de ser boazinha a vida toda para depois passar o resto da eternidade vendo anjinho no céu? Que proveito isso traz para alguém?

Já no espiritismo a lógica é outra: a pessoa pode ter sido um assassino, estuprador, ou o que seja, mas ela tem a possibilidade de se redimir através das reencarnações, e ela chegará a ser perfeita pois este é o desígnio do Pai, a perfeição.

swissinfo.ch: Na Suíça, há uma relação diferente com a morte, especialmente no que se refere à prática, cada vez mais popular, do suicídio assistido. Como você vê esse livre-arbítrio em relação à morte, e como isso afeta a vida?

A.R.: Pelo que acredito, o suicídio é um crime, você não tem esse direito sobre a sua vida, a hora que você vai embora é estabelecida por Deus. Só que a pessoa que está cometendo esse crime não acredita nisso, ela acha que é dona da sua existência, de seu livre-arbítrio, e acha que pode acabar com a sua vida quando bem entender.

swissinfo.ch: Mesmo no caso de doenças terminais?

A.R.: Neste caso, eu acredito que quando se passa por uma doença, você está purgando alguma coisa. Esse sofrimento é uma forma dela lidar com coisas do passado, para redimir coisas que a pessoa aceitou quando veio para essa vida. Se você corta isso, estará assumindo uma dívida para uma próxima encarnação. É como se você estivesse deixando de pagar uma coisa.

No caso de pessoas com deficiências, trata-se de dívidas de uma vida passada que a pessoa escolheu trazer para a presente, para purgar dessa forma. Em momento algum o suicídio, assistido ou não, é aceito pelo espiritismo.

Nelly Berchtold: É importante o trabalho que os centros espíritas fazem aqui na Suíça exatamente por isso. Antigamente era sempre o adulto jovem que mais se suicidava; menos por depressão que por intolerância à frustração, e a faixa entre 17 e 28 anos era o pico. A curva de suicídio na Suíça agora tem mais um pico, além deste: acima de 65 anos, a incidência é hoje quatro vezes maior.

“Violetas na Janela” pretende despertar as pessoas para o fato de que a vida continua, e dar uma outra representação sobre o que vem depois (da morte). É claro que a peça mostra que não há uma lei, que nem todo mundo vai parar em uma colônia espiritual. Na peça apresentam-se diversos casos e a pessoa assim pode se situar. Isso tudo se inscreve dentro de uma campanha contra o suicídio.

Há algumas colocações um tanto ingênuas, especialmente para quem conhece o espiritismo mais a fundo. Mas isso não tem importância, pois trata-se da visão de uma moça de 19 anos com toda a sua inexperiência. Mas toca em assuntos que o André Luiz [espírito cujas 12 obras foram psicografadas por Chico Xavier entre 1944 e 1968] se aprofundou.

swissinfo.ch: Como afetividade, sexualidade…?

N.B: Exato. Segundo André Luiz, a pessoa desencarnada ainda tem essas necessidades físicas, das quais ela vai se desligando aos poucos.

A atriz Yasmin e a diretora Ana Rosa
Ana Rosa (à dir.) com a atriz Yasmin Bublitz. Morte repentina da filha, que tinha a mesma idade que a personagem Patrícia, foi o ponto de partida para Ana Rosa adaptar o livro para o teatro. Ana Rosa

swissinfo.ch: Pessoas que se foram e se comunicam com os vivos são espíritos livres ou não?

N.B.: No plano espiritual, assim como aqui, existem escalas. Assim, quando você desencarna, vai para determinado planeta ou colônia espiritual. Existem mundos no universo que os humanos não têm capacidade de conceber, e na sua arrogância acham que só nós somos os privilegiados, que temos vida. A própria ciência está cada vez mais próxima de provar que há outras formas de vida em outros planetas.

Mas seja lá como a pessoa desencarna, ela tem condição de se manifestar ou não. Mas às vezes ela não tem permissão. Se a pessoa se encontra em um estado de muito sofrimento, não é permitido que ela se manifeste para a família, pois senão ela vai passar apenas sofrimento. Quando se perde um ente querido, a dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional.

Se essa família está muito atormentada pela perda, também não é bom que o espírito receba essa energia, senão ele tampouco vai conseguir se desapegar do sofrimento para buscar seu próprio caminho. Mas isso depende das várias escalas, e cada caso é um caso.

“Quando se perde um ente querido, a dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional.”

swissinfo.ch: E como se faz para se contatar com o mundo desencarnado?

Nelly Berchtold.: Chico Xavier dizia que o telefone só toca de lá para cá. Não adianta querer se comunicar com o espírito se ele não quiser se manifestar.

Só Kardec tinha uma autoridade espiritual para formular perguntas. Mas esta prática não existe mais no espiritismo. Aliás, tem muito espírito charlatão ou brincalhão que pode se meter no meio de uma sessão no lugar do espírito chamado, e passar coisas mentirosas ou confusas.

swissinfo.ch: Como é o meio espírita na Suíça?

N.B.: A casa pioneira fica em Genebra, e foi fundada há 43 anos por Teresinha Rey, psicóloga goiana que se mudou nos anos 1950 para cá. Ela tinha contato direto com Chico Xavier. Em Genebra o grupo era muito variado, cheio de intelectuais e céticos, mas a cada três anos ela tinha que começar tudo do zero, porque as pessoas sempre se mudavam.

Na parte alemã há uma reunião mediúnica semanal, e é muito diferente das sessões brasileiras. Muitos são padres, pastores ou filósofos, e eles querem argumentos, e nos obrigam a estudar muito, prestar atenção à terminologia. É provavelmente uma coisa cultural dessa parte da Europa, que tem uma necessidade enorme de racionalizar tudo, de achar uma lógica para todos os fenômenos. Mas Alan Kardec não pode ser acusado de ser um irracionalista, na verdade ele era matemático.

O movimento já existia aqui desde 1898, com a fundação do primeiro jornal espírita, mas esbarrou na racionalidade da cultura local, e acabou se dispersando. É importante lembrar que o movimento não é centralizado. Ele nasceu em meados do século 19 na França, e, surpreendentemente, floresceu no Brasil.

O espiritismo chegou no Brasil com ‘jovens de boas famílias’, filhos de fazendeiros que iam estudar em Coimbra, Lisboa e Paris. Esses estudantes voltavam com os livros de Kardec para o Brasil, onde encontraram bastante ressonância. E como a doutrina é razoavelmente complicada, daí que vem a fama de elitistas dos espiritistas, pois no começo ela era coisa das classes mais abastadas.

swissinfo.ch: Pode-se dizer que houve uma “antropofagia” do espiritismo no Brasil, assim como aconteceu com o modernismo brasileiro nas artes: o espiritismo vem da Europa, é digerido e re-digerido no Brasil, e depois reexportado para onde veio…?

N.B.: É mais ou menos isso (risos). De fato, há um volume de escritos no Brasil que não se acha em lugar algum. Só Chico Xavier escreveu ou psicografou 440 livros; Divaldo Pereira Franco, perto de 200 livros; sem contar todo o trabalho das clínicas psiquiátricas espíritas no Brasil.

De toda forma, por mais que a gente leia ou estude, estamos ainda muito longe de saber como a coisa acontece do lado de lá. Só vamos saber quando chegarmos. E nenhuma religião conhece toda a verdade.

 ‘Violetas na Janela’ em Genebra

Única apresentação: sábado, 10 de março, 18H30.

Local: Musical Theater Basel

Feldbergstrasse 151, 4058 Basileia

 


 

 

 

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