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Casa suíça em Paraty tira os tradutores da sombra

Casa Helvetia em Paraty
Mirela Tavares

Pela primeira vez instalada como uma das chamadas casas parceiras, a Oca Babel levou o trabalho dos tradutores para o centro das discussões durante o Festival Literário de Paraty (FLIP) de 2019. A programação realizada ao longo do evento que ocorreu entre 10 e 14 de julho procurou tirar a atividade das sombras dos autores, dando a dimensão da sua importância para a amplificação de uma obra.

Na maior parte das atrações que compuseram a Flip, os autores se mantiveram como as grandes estrelas do festival. Mas no sobrado nº 375 da movimentada rua da Lapa, no Centro Histórico de Paraty, o público parava para ver palestras e performances que jogavam luz sobre a sensibilidade e a complexidade do trabalho dos tradutores. O projeto chamado de Oca Babel leva a assinatura do Festival Babel, evento suíço que há 15 anos reúne autores e tradutores na cidade da Bellinzona, no Ticino.

“Pensamos muito sobre a questão da hospitalidade linguística”, disse o diretor artístico e fundador do Babel, Vanni Bianconi, referindo-se ao conceito do projeto e a programação na casa. Uma ideia que começou a ser desenhada há dois anos, ainda sob a curadoria da Flip de Josélia Aguiar, que chegou a ir ao Festival Babel, na Suíça. 

Para ele, a tradução precisa ser compreendida metaforicamente como uma visita a casa de alguém, onde se almoça ou se janta juntos, convivendo naquele ambiente cheio de elementos que refletem uma personalidade. E esse convívio precisa ser repetido na casa do outro para, então, se entender de fato como se dão os hábitos, os costumes, as práticas de algumas ações, a cultura desses ambientes. É a partir daí que se pode traduzir uma língua.

Autores e tradutores em frente à Casa Helvetia
Da esquerda para a direita: Vanni Bianconi, Catarina Duncan, Michael Fehr, Auritha Tabajara, Simone Spoladore e Ivan Garcia Mirela Tavares

“No Brasil, a tradução ainda não é uma prática muito reconhecida”, afirma Bianconi, acrescentando que os tradutores são vistos normalmente como técnicos que fazem um trabalho simples, ganham pouco e não são valorizados. “Mas não é assim, pois o trabalho de um tradutor requer entendimento da cultura do que está sendo traduzindo, além de um amplo conhecimento sobre o autor”, diz. “Quando lemos um livro traduzido, cada palavra é do tradutor, e não do autor.”

Com apresentações em português, tupi, suíço-alemão, italiano, inglês, macuxi, quíchua, japonês e espanhol, a programação do Oca Babel contou com uma performance do próprio Bianconi. Junto com os artistas brasileiros Simone Spoladore e Ricardo Aleixo, que interpretou um texto do escritor e produtor cultural indígena Jaider Esbell, eles fizeram leituras sobre um mesmo tema, mas carregados de traduções próprias, baseadas nos seus repertórios, olhares e experiências.

Com essa mescla de perspectivas, Bianconi quis trazer também um olhar sobre os contrastes entre o Brasil e a Suíça. Diferenças que ficam evidentes, entre outras coisas, no tratamento para com as línguas. Enquanto a Suíça, um país pequeno, sente orgulho das suas quatro línguas oficiais, o Brasil, um país continental, comporta-se como monolinguista, sem levar em conta outras línguas que fazem parte da sua história, como as indígenas. 

“Não fazemos campanhas políticas, mas procuramos chamar atenção para essa riqueza do multilinguismo”, comentou Bianconi. Na programação, a tradução ainda foi debatida como um gesto político; e vista sob a ótica de poéticas ameríndias antigas, tendo a participação de outros artistas suíços, como o escritor Michael Fehr, a artista plástica Lea Meier, e a cantora e performer Yumi Ito.

Coincidência

Além dos consulados suíços do Rio de Janeiro e São Paulo, o Oca Babel teve a parceria do programa Coincidência, da Fundação Pro Helvetia. A instituição não-governamental conta com fundos públicos, oriundos de impostos, mas sem estar atrelada a política do governo. Sua atuação é fomentar intercâmbios culturais entre a Suíça e e o resto do mundo, e cogita abrir um escritório permanente em São Paulo, responsável pela América do Sul, em 2021. 

O programa que começou em 2018 já tinha apoiado a Flip no ano passado, levando o autor e tradutor suíço Fabio Pusterla para a programação oficial do festival. “Também já integramos a programação da Casa Europa (outra casa parceira da Flip)”, lembra Catarina Duncan, representante do programa.

Auritha
Interlocuções: a escritora indígena Auritha Tabajara (foto) recitou textos de cordel, acompanhada da suíça Yumi Ito, que musicalizou a fala da escritora. Mirela Tavares

Catarina ressalta a importância dos trabalhos do Coincidência estarem sempre inseridos em uma pluralidade cultural, evitando assim qualquer tipo de imposição ou sobreposição de uma cultura sobre a outra. “Todos os encontros em que há interlocutores suíços, também há interlocutores locais; são projetos de interlocução que fomentamos.”  

Ainda sobre sobreposições culturais, Catarina comenta sobre a necessidade de se trabalhar com medidas compensatórias. “Quando falamos da Suíça e de uma fundação pública, falamos de um contexto em que os artistas dispõem de apoio governamental para apresentar seus trabalhos fora do país; coisas que no contexto sul-americano é raríssimo de acontecer”, afirma. Ela comenta que um dos direcionamentos da entidade é lidar com essas faltas que acontecem por aqui e o que é possível ser feito para que os acessos sejam minimamente semelhantes.

Mesmo com essa política, o programa não apoia nada integralmente. É preciso que esforços também sejam feitos por parte dos apoiados. “Essa é uma medida para garantir que os projetos despertem o interesse de apoio local”, ressalta ela. Para 2020, ainda não há nenhum planejamento de participação na Flip, mas ela reforça a importância de ter um festival como este como parceiro.

Parcerias

O próprio Oca Babel trabalhou em parceria com a Editora Helvetia para sua participação na Flip. O projeto dividiu a casa com a editora, dando nome ao local de Casa Helvetia / Oca Babel. Dessa forma, os visitantes também puderam acompanhar sessões de autógrafos e vendas de livros dos mais variados temas e gêneros, edições bilíngues (majoritariamente francês-português), como da jovem autora e ilustradora suíço-brasileira, Julie Ousley. 

Aos 27 anos, a jovem fonoaudióloga está no seu terceiro livro, sendo o primeiro pelo selo Helvetia. Todos tratam de temas que impactam o universo das crianças, como a obesidade infantil e a exposição excessiva às telas digitais. 

A ideia foi evidenciar de forma lúdica as consequências dessa alta exposição a celulares, tablets e computadores, como o comprometimento da psicomotricidade, da falta de contato visual e das implicações na comunicação. Portadora de dupla nacionalidade suíço-brasileira, residente em Genebra e escrevendo em francês, Ousley pela primeira vez pôde expor lado a lado suas duas línguas e culturas.

Essa é uma das intenções da fundadora e editora da Helvetia, Jannini Rosa, pela primeira vez na Flip. “Promovemos esse intercâmbio entre a Suíça e o Brasil, publicando livros de autores brasileiros lá e de autores suíços aqui”, diz ela, que conta na editora com a parceria da também autora luso-suíça Carla De Sá Morais. 

Jannini Rosa (à esq.), da Editora Helvetia, com a autoras Carla De Sá Morais e Julie Ousley.
Jannini Rosa (à esq.), da Editora Helvetia, com a autoras Carla De Sá Morais e Julie Ousley. Mirela Tavares

Jannini começou no ramo editorial aos 14 anos, trabalhando na editora da mãe de uma amiga no Brasil. Hoje, com apenas 22 anos, conta com sua própria editora situada em Vevey, com um catálogo aproximado de 300 autores, em quatro anos de atividade. “São 85 títulos publicados, promovemos antologias, participando anualmente do Salão do Livro de Genebra, onde recebemos os autores brasileiros e suíços em nossa estande”, completa a jovem que espera voltar à Flip em 2010.

Quem tem a mesma expectativa é a francesa Sandrine Ghys, responsável pela área de desenvolvimento de relações internacionais da Flip, que se disse impressionada com a conexão e a solidariedade entre os membros da comunidade suíça no Brasil. Trabalhando no festival desde 2008, ela aposta ainda mais nesse potencial multicultural da Flip e vê a casa Suíça como um parceiro forte, que ela espera contar na próximas edições.

“Temos que manter esse espaço plural, em que pessoas de diferentes lugares consigam se encontrar, dialogar e trocar experiências em cima de um mesmo palco”, ressalta ela. “Isso, sim, é muito rico!”

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