Viagem ao centro da Terra
O mais longo túnel ferroviário do mundo está sendo construído no maciço do Gotthard, nos Alpes suíços. Ele poderá ter até uma estação de trem dentro da montanha.
Nela os turistas de todo o mundo poderão desembarcar e subir vertiginosos 800 metros num elevador expresso construído na pedra até chegar às estações de esqui de Sedrun.
A viagem ao centro da terra começa em Sedrun, vilarejo da comuna de Tujetsch, no cantão dos Grisões, ao leste da Suíça. Essa região lembra um cartão postal dos Alpes com seus chalés de madeira, hotéis centenários, pastos verdejantes, vacas malhadas, lagos de água cristalina e majestosas montanhas.
Dois mil habitantes vivem nesse pedaço de paraíso. Movimento só existe no inverno, quando turistas aparecem e enchem estações de esqui de Sedrun e outros povoados das redondezas.
Em Sedrun, o único lugar que destoa dessa harmonia é o terreno ocupado pela firma AlpTransit Gotthard AG. Várias vezes por dia centenas de operários com uniformes e os rostos sujos de terra desembarcam e embarcam num pequeno e barulhento trem que sai do fundo da terra. Eles trabalham no canteiro de obras do mais longo túnel ferroviário do mundo.
No final do turno, eles costumam ser cumprimentados pelos colegas que aguardam a vez para descer. “Todos são mineiros, sejam operários, geólogos ou engenheiros. Embaixo da terra somos todos iguais”, declara Yves Bonanomi.
Claustrofobia
O simpático suíço quarentão é geólogo e trabalhou por mais de dez anos junto com os mineiros. Hoje ele agora atua apenas como consultor e também de guia para jornalistas que visitam o que ele chama de “a obra do século”.
A primeira lição dada ao visitante diz respeito à vestimenta. Yves mostra como vestir o uniforme de trabalho que todos devem ter no fundo da montanha: um macacão laranja com faixas fluorescentes, capacete, botas de borracha e uma pequena mochila contendo um filtro especial de ar, que permite a respiração nas galerias subterrâneas caso ocorra um acidente. “Não esqueça também de colocar duas garrafas de água mineral no saco, pois lá embaixo costuma fazer bastante calor”, alerta o geólogo. Depois os visitantes assinam um protocolo garantindo que não sofrem de coração e dão o telefone de alguém da família – também para casos de emergência. O caminho está aberto para a descida.
Trabalhadores e visitantes embarcam no mesmo trem. A máquina à óleo faz um barulho ensurdecedor de peças de metal se arrastando umas contra as outras. Quando ela entra no túnel, um detalhe não passa despercebido: num pequeno buraco entalhado na pedra está a imagem de Santa Bárbara, a padroeira dos mineiros. “Ele está em qualquer mina do mundo, seja na Suíça ou na Bolívia”, revela Yves.
“Não se preocupe. Essa é uma das obras mais seguras do mundo. Até chineses aparecem aqui para saber como trabalhamos. Desde que as escavações em Sedrun iniciaram em 2001, tivemos apenas duas mortes”, tranqüiliza ele alguns dos visitantes.
O trabalho embaixo da terra exige coragem. A maior parte das pessoas sentiriam claustrofobia ao saber que ficarão abaixo de mais de mil metros de xisto e gnaisse, uma rocha metamórfica feldspática constituída por mica, quartzo, anfibólio e outros minerais. “Um italiano se sentiu mal ao saber que estaria separado da superfície e desistiu do trabalho”, lembra o geólogo.
Descida
Depois de vinte minutos, o trem chega ao elevador. O que se vê lembra mais um filme de ficção científica: uma gigantesca estrutura de metal que parece sair do fundo da terra e continuar seu caminho para o alto. Ao lado uma cabine de controle e também trilhos. Neles trafegam, de um lado, contâineres cheios de pedras e, do outro, os vazios. Quando o elevador chega, os dois contâineres cheios, empilhados um no outro, são descarregados. Automaticamente os dois vazios são colocados no seu lugar. Quando não transportam pedras, o elevador serve para levar os operários do fundo da montanha até a superfície.
É proibido ficar muito próximo da porta do elevador. Pedras podem cair. Por todos os lados do túnel estão pregados cartazes de advertência: “Stop risk” (Pare com os riscos).
Graças a um moderno sistema computadorizado, motores potentes e grossos cabos de aço, o elevador é capaz de carregar até 51 toneladas de carga. A velocidade varia de acordo com a situação: carregando pessoas ele chega até 80 km/h; no caso de pedras, a velocidade pode dobrar. “É melhor fechar os olhos quando o elevador começar a andar, pois o vento é bastante forte”, alerta um dos mineiros. O trajeto não leva mais do que dois minutos para ser concluído. Apenas os ouvidos sentem a pressão do ar.
Quando o elevador chega no seu ponto final e as pesadas portas de ferro se abrem, o cenário que se descobre é dantesco: o ar é pesado e quente; um barulho ensurdecedor parece ecoar por todas as paredes do gigantesco túnel; refletores fixados nas paredes iluminam o vaivém incessante dos mini-trens, tratores, máquinas pesadas, contêineres cheios de pedra e operários.
Calor na profundidade
Não é fácil caminhar nesse ambiente abafado. Das paredes dos túneis, a água escorre de inúmeros pontos como se alguém tivesse esquecido de fechar a torneira no andar de cima. Ela se mistura com a terra e transforma o solo num grande lamaçal por onde todos caminham.
Além do túnel principal, existem outras galerias já escavadas na pedra. Elas servirão como túneis de desvio ou até de escape em casos de incêndio. Por todos os lados há movimento: colunas de mineiros se cruzam, tratores e trens de carga circulam em várias direções, como num gigantesco cupinzeiro.
Quanto mais profundo se desce dentro da montanha, maior é a temperatura ambiente. O túnel básico do Gotthard chega a ter profundidades de até dois mil metros. Em condições normais, os operários e engenheiros não agüentariam o trabalho nas escavações: os termômetros poderiam bater a marca dos 45 Cº. O problema é resolvido através de gigantescos exaustores e um sistema de refrigeração, aonde água fria corre por quilômetros de canalizações transportando o calor para fora da montanha. Graças a esse sistema, as temperaturas caem para 28 Cº.
De um ponto do túnel surge repentinamente uma torneira: dela a água sai quente, quase à cinqüenta graus, porém exalando um cheiro extremamente desagradável. “A água que sai da montanha não serve para o consumo humano, pois está cheia de enxofre”, alerta Yves os mais sedentos.
Um outro trem leva os visitantes para uma das extremidades do túnel. Nelas trabalham o grupo de mineiros que faz avançar o túnel na pedra. O trabalho é duro e sujo. Brocas especiais, máquinas gigantescas semelhantes a robôs e apelidadas de “Jumbo” perfuram a pedra. Não muito distante do local estão os tratores que colocam as pedras nos contâineres. Pela versatilidade eles também têm apelidos: “são os ’touros?, pois são nervosos, fortes e agitados como os animais”, brinca Yves.
Diariamente operários especializados fazem explodir as extremidades dos túneis. Dessa forma são ganhos vários metros diariamente. Nos momentos da explosão, todos são obrigados a se refugiar em contâineres especiais localizados nas proximidades. Eles são iluminados com luz verde e dispõem de ar puro bombeado do exterior, além de garrafas de oxigênio. No caso de uma emergência, eles também podem abrigar os mineiros por várias horas, até a chegada de socorro.
Obra faraônica
O túnel básico do Gotthard terá 57 quilômetros. Nesse e em outros três canteiros de obras os Alpes são perfurados pelas brocas desde 1993. No total, 13 milhões de metros cúbicos de pedras – cinco vezes a quantidade de material para construir a pirâmide de Quéops – serão retirados do fundo das montanhas. Em dez anos, trens de alta velocidade irão atravessar o túnel em inacreditáveis velocidades de até 250 quilômetros por hora.
Dois mil operários trabalham na construção dos túneis. Eles vêm de quinze países diferentes, em grande parte Suíça, Alemanha, Áustria, Itália, Portugal e de outros mais distantes como Romênia, Albânia, Croácia e Sérvia. As duras condições de trabalho unem até nas diferenças culturais. “Lembro que até Croatas e Sérvios trabalhavam juntos no momento em que seus países estavam em guerra”, se recorda Yves Bonanomi.
Além do túnel básico do Gotthard, os outros trechos como o túnel básico de Zimmerberg e o de Ceneri completam o percurso: 153,5 quilômetros. Dois terços já estão perfurados.
Também 65.28% trecho do túnel básico do Gotthard, onde trabalham seiscentas pessoas em três turnos de oito horas, 24 horas por dia, já foram escavados. Apesar do avanço, as dificuldades são grandes. Em Sedrun a rocha é tão instável que a empresa não pode utilizar as gigantescas brocas mecânicas que aplica nos outros setores. Por isso os mineiros só avançam pouco: até seis metros por dia na pedra, através dsd explosões controladas.
A cada trinta ou quarenta centímetros de avanço, os operários precisam perfurar a pedra e introduzir vergalhões de aço. Eles ajudam a fixar as pedras. Depois o túnel é reforçado com telas de metal e uma espessa camada de concreto. As paredes recebem refletores para que os engenheiros possam observar se ouve algum deslocamento da rocha. “O trabalho é muito perigoso, a qualquer minuto pode ocorrer um desabamento. Por isso é tudo feito com muito cuidado”, explica o Yves.
Um dos visitantes pega um pedaço de rocha e guarda no bolso do macacão como lembrança. Para o geólogo suíço, ela não é apenas uma pedra. “Esse pedaço na sua mão tem 500 milhões de anos e já viveu três diferentes formações de montanha no passado. Poucos sabem, mas os Alpes já foram o solo de um gigantesco oceano no passado, tendo sido pressionados para cima com a movimentação das placas tectônicas”.
Custo: 5,5 bilhões de euros
No total, o grande túnel do Gotthard irá custar 5,5 bilhões de euros, um bilhão a mais do que havia sido planejado. Graças a obra, a viagem entre Zurique e Milão poderá ser encurtada em uma hora, passando para 2 horas e 40 minutos.
A inclinação reduzida do percurso norte-sul também vai permitir que os trens de carga possam atingir velocidades de até 160 km/h – o dobro das velocidades da estrada. Além disso, a capacidade de carga passará de duas mil a quatro mil toneladas. Isso significa menos tráfego nos trilhos e também menos caminhões atravessando os Alpes, o que poderá talvez resolver o crônico problema de congestionamento no túnel rodoviário do Gotthard.
Pelas suas dimensões, o novo túnel ferroviário do Gotthard já é uma obra do século, porém também impressionante são as idéias que surgem com a construção.
A mais “fantasiosa” delas está a um passo de se tornar realidade: construir uma estação de trem dentro da montanha e que levará turistas de elevador até as estações de esqui em Sedrun. O projeto se chama “Porta Alpina”. Uma grande parte dos recursos necessários a sua construção já foram aprovados pelo Parlamento (ver vídeos).
Por enquanto é possível apenas se ter uma idéia de como pode funcionar essa estação de trem. O único elevador que está em funcionamento no canteiro de obras do túnel básico do Gotthard é o que transporta operários e as milhares de toneladas de pedras para a superfície, 800 metros acima. O do Porta Alpina está apenas marcado nas pedras, esperando pelo início da construção.
Se construído – faltam apenas que o governo federal e cantonal aprovem a subvenção de alguns milhões de francos – o Porta Alpina será mais luxuoso do que o elevador de carga. Ele teria dois andares e levaria no máximo 80 passageiros. Na estação subterrânea, as pessoas esperariam a chegada dos trens em setores fechados hermeticamente: a grande velocidade de alguns trens poderia jogar alguém nos trilhos devido à pressão do ar.
Se o sonho for concretizado, os turistas poderão sair de Zurique ou Milão e estar, em apenas uma hora, no ar puro das montanhas em Sedrun. E graças a conexão com outros trens, como o famoso “Glacierexpress”, locais famosos de esqui como St. Moritz ou Zermatt ficarão tão próximos como um passeio na esquina.
swissinfo, Alexander Thoele
A idéia de construção do Túnel básico de Sedrun surgiu pela primeira vez em 1940 através de um estudante de engenharia. Na época, o jovem já pensava na possibilidade de construir uma estação de trem subterrânea embaixo de Sedrun.
Ele descrevia a estação como um “portal de entrada para as elegantes estações de esqui de Sedrun, distante apenas uma hora da Basiléia, Zurique e Milão”.
Segundo a Associação Visão Porta Alpina, a estação poderá entrar no livro dos recordes, o Guiness Book.
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