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‘Em Gaza, os trabalhadores humanitários não são heróis, são vítimas’

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Vítimas jazem perto dos escombros do hospital Al-Shifa, atingido por operações israelenses no norte de Gaza. KEYSTONE

Marie-Aure Perreaut Revial, coordenadora de emergência da ONG Médicos Sem Fronteiras, acaba de voltar de Gaza. Em entrevista à SWI swissinfo.ch, ela condena os ataques sistemáticos do exército israelense contra trabalhadores humanitários, poucos dias após a morte de sete funcionários da World Central Kitchen que distribuíam alimentos no território palestino.

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“Os agentes humanitários se tornaram alvos, assim como os civis”, diz Marie-Aure Perreaut Revial, coordenadora de emergência de Médicos Sem Fronteiras (MSF), que voltou de Gaza na semana passada.

Em 1 de abril, um ataque israelense matou sete trabalhadores da World Central Kitchen. A ONG estava entregando alimentos na Faixa de Gaza, onde 1,1 milhão de pessoas enfrentam fome iminente. O ataque ocorreu em um momento em que a entrega de ajuda humanitária no território palestino se torna cada vez mais difícil e perigosa.

Em uma coletiva de imprensa realizada em Genebra em 4 de abril, a porta-voz da Médicos Sem Fronteiras (MSF), que tem aproximadamente 400 trabalhadores humanitários em Gaza, condenou os repetidos ataques contra sua equipe. Desde outubro, pelo menos 196 trabalhadores humanitários foram mortos na Faixa de Gaza, incluindo cinco funcionários da MSF. De acordo com o Ministério da Saúde do Hamas, mais de 33 mil pessoas morreram desde o começo do conflito. A ONU estima que cerca de 70% das vítimas são mulheres e crianças.Link externo

Em Genebra, Revial conversou com a SWI sobre as condições de trabalho e a segurança de sua equipe.

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Marie-Aure Perreaut Revial MSF/Julien Dewarichet

SWI swissinfo.ch: Você já trabalhou para MSF na Etiópia, Congo, Paquistão, Sudão… Gaza é diferente de seus trabalhos anteriores?

Marie-Aure Perreaut Revial: O sofrimento humano está presente em todas as missões e não pode ser comparado. No entanto, como coordenadora de emergência, nunca tive tanto medo pela segurança da minha equipe. Toda vez que o telefone toca, prendo a respiração com a ideia de ter perdido mais um colega. Essa ansiedade constante é específica de Gaza, onde os trabalhadores da ajuda humanitária viraram alvos, assim como os civis.

SWI: O primeiro-ministro israelense, Benyamin Netanyahu, disse que os ataques que mataram sete trabalhadores humanitários da World Central Kitchen (WCK) na segunda-feira foram “não intencionais”, mas, de acordo com a MSF, esse foi um ataque deliberado. O que te leva a pensar assim?

M-A.R: Os funcionários da WCK, com quem trabalhamos de perto, estavam claramente identificados como trabalhadores humanitários. A rota deles havia sido coordenada com o exército israelense e suas identidades eram conhecidas. Esse procedimento é seguido por todos os trabalhadores humanitários, inclusive por nós da MSF: compartilhamos constantemente nossas coordenadas de GPS e notificamos o exército israelense sobre todos os nossos movimentos. Se morrermos em um ataque com mísseis, ninguém poderá alegar que foi um erro.

No entanto, os hospitais em que operamos, nossos comboios e até mesmo os abrigos em que dormimos são alvos constantes. Depois da destruição do hospital Al-Shifa no norte de Gaza, agora o hospital Al-Aqsa, onde MSF também trabalha, foi atingido por ataques israelenses. Nos últimos seis meses, quase 200 profissionais de saúde foram mortos em Gaza, incluindo cinco da MSF. Uma escala como essa indica que os ataques são intencionais ou refletem uma incompetência perigosa.

SWI: Em campo, você coordena seu trabalho com organizações palestinas, como o Crescente Vermelho Palestino. Quais são seus contatos com o exército e as organizações israelenses?

M-A.R.: Nós não conseguimos estabelecer uma linha de contato com o exército israelense. Essa situação não tem precedentes em comparação com outros conflitos em que normalmente atuamos. Portanto, somos forçados a trabalhar por meio de terceiros, o que complica consideravelmente nosso gerenciamento de segurança. No que diz respeito à presença humanitária israelense em Gaza, ela é inexistente.

SWI: Desde o ataque, a World Central Kitchen e várias outras organizações suspenderam suas atividades em Gaza. Como fica para a MSF?

M-A.R.: Por enquanto, estamos mantendo nossas capacidades operacionais em Gaza, mas constantemente reavaliando nossa presença. Em novembro, tentamos identificar limites em relação à presença de nossa equipe internacional. Hoje, todas essas linhas vermelhas foram ultrapassadas. Não há espaço seguro para agentes humanitários em Gaza. Isso é algo que nunca vivenciei antes em minha carreira. Ficamos nos perguntando: qual será o próximo hospital a ser bombardeado? Ir a Gaza significa aceitar a possibilidade de que não voltaremos.

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Criança olhando por cima de uma pano

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SWI: Nessas condições, a ajuda humanitária pode realmente continuar na Faixa de Gaza?

M-A.R.: A questão não é se ela pode continuar, mas se ela pode sequer começar. Após seis meses de intervenção no local, não conseguimos ajudar a população. A escala da crise é muito grande. Nenhum sistema de saúde do mundo tem a capacidade de lidar com esse derramamento de sangue. A resposta humanitária em Gaza hoje é, portanto, uma ilusão. Não podemos chegar aos nossos pacientes sem sermos atacados. Em Gaza, os humanitários não são heróis, são vítimas.

SWI: A comunidade humanitária acusa Israel de contornar as Nações Unidas e as organizações internacionais, principalmente ao desmantelar a UNRWA, com objetivo estabelecer um sistema de distribuição paralelo sob controle israelense. Você percebeu isso em campo?

M-A.R: Na verdade, Israel não está apenas excluindo a ONU, mas todas as organizações internacionais. Vários doadores, inclusive a Suíça, suspenderam o financiamento à UNRWA, que Israel acusa de ser cúmplice dos crimes cometidos pelo Hamas. No entanto, a agência da ONU para refugiados palestinos é a espinha dorsal da sociedade em Gaza. Ela garante serviços básicos, como distribuição de alimentos, acesso à saúde, gerenciamento de resíduos e esgoto. É simplesmente impossível substituí-la, especialmente porque nenhuma ajuda israelense está chegando a Gaza, apesar de as autoridades afirmarem o contrário.

SWI: A comunidade internacional está fazendo o suficiente para proteger os trabalhadores humanitários?

M-A.R.: Não, absolutamente. As condições de trabalho em Gaza não têm precedentes. Todas as instalações de saúde em Gaza onde trabalhei em novembro passado tiveram de ser evacuadas. Apesar disso e da morte de quase 200 trabalhadores humanitários, não vimos nenhuma indignação por parte da comunidade internacional, nem nenhum pedido de investigação independente para determinar a responsabilidade, inclusive em relação aos ataques que tiveram como alvo e mataram funcionários da MSF.

SWI: Até o momento, a resolução do Conselho de Segurança para um cessar-fogo aprovada em 27 de março continua sem efeito. Em Gaza, há alguma esperança de que ela seja implementada?

M-A.R: A resolução do Conselho de Segurança da ONU chegou tarde demais e ainda não foi implementada. São apenas palavras no papel, enquanto em Gaza as bombas ainda estão caindo. Muitos que estão na região agora dizem que os sortudos são aqueles que já estão mortos.

SWI: Você vê o direito internacional como uma concha vazia, sem utilidade?

M-A.R.: Infelizmente, essa é a principal questão em jogo no pano de fundo do conflito. O número de violações flagrantes do direito internacional documentadas em Gaza é imensurável. Essa guerra está sendo travada sem regras, com total desrespeito à lei internacional, tanto que os crimes de guerra se tornaram comuns. Enquanto a impunidade persistir, não apenas a credibilidade, mas também o futuro do direito internacional estará em risco.

Edição: Virginie Mangin/fh
(Adaptação: Clarissa Levy)

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