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Hans Küng: “Uma mulher como papa?”

A atriz alemã Johanna Wokalek no papel da papisa Joana.

Na opinião do téologo suíço Hans Küng, não existem razões teológicas sérias contra a ordenação de mulheres para o sacerdócio na Igreja Católica.

Por ocasião do lançamento do filme alemão A Papisa, de Sönke Wortmann (diretor de O milagre de Berna), Küng diz que está na hora de acabar com a discriminação das mulheres na Igreja.

Por Hans Küng*

Quem viu o filme Amadeus, com o envenenamento de Mozart, como verdadeiro, com certeza considerará o novo filme de Sönke Wortmann A Papisa como histórico. E quem considerou histórico o romance O Código Da Vinci certamente também verá o romance de Donna Woolfolk Cross, em que se baseia o novo filme, como fato histórico. Mas pessoas sérias hão de se perguntar: será que há uma história verdadeira por trás da figura da papisa Joana?

De fato, ao longo dos séculos foi contada a história de uma Johanna, senhora Jutte, que teria estudado em Atenas, disfarçada como um homem, e que, devido à sua grande erudição, teria sido eleito papa em 855; mas, durante uma procissão, ela teria dado à luz e morrido. Até o século 15, a papisa, de uma forma geral, foi considerada como fato histórico, mas desde a Reforma sua historicidade é acirradamente discutida.

O escândalo é ser mulher

O que alguns críticos do filme de Wortmann não sabem: a melhor especialista no assunto é a teóloga e historiadora Elisabeth Gössmann (Tóquio), que na Alemanha, diversas vezes figurou na lista de nomeação para uma cátedra, mas sempre foi rejeitada devido à oposição da Igreja oficial. Ela analisou com grande meticulosidade a discussão sobre a papisa Joana, que foi conduzida por séculos e abrange milhares de páginas em latim e em diversas línguas vernáculas.

Depois disso, historicamente está claro: trata-se de uma lenda que provavelmente remonta a uma antiga estátua de um padre com meninos, em Roma. Esta foi interpretada, com base em uma inscrição encontrada nas proximidades, como uma papisa com criança.

As primeiras referências a esta lenda realmente só existem desde os séculos 12 e 13. Ela foi propagada principalmente pelos dominicanos e franciscanos, mas também por escritores seculares, como Boccaccio e Petrarca. Por mais divergentes que sejam suas interpretações, todos eles concordam na avaliação negativa: uma papisa é ou seria terrível! O escândalo consistia em ser uma mulher!

“Criatura disforme”, “monstro”

Não se deve esquecer que durante muito tempo houve uma legislação eclesiástica, que não só proibia a ordenação de mulheres, como considerava digno de maldição o fato de abadessas abençoarem suas freiras e ouvirem sua confissão, de terem até mesmo a presunção de ler o Evangelho e pregar publicamente. Elas não deveriam nem mesmo tocar os vasos sagrados ou incensar o altar.

De acordo com esta visão, todo o sexo feminino é inapto para o ministério ordenado. E ainda no final do século 20, o Vaticano proibiu acólitos do sexo feminino, mas fracassou devido à oposição veemente da população católica e seus pastores.

Diante desse pano de fundo, pode-se entender que uma mulher no trono papal seja vista como uma “criatura disforme” ou “monstro”, sujeito a todos os tipos de insultos, e que, através dos séculos, seja considerada por todos, sejam dominicanos ou franciscanos, seculares ou luteranos, como uma profanação da Igreja.

Segundo Elizabeth Gössmann, que ainda teve Joseph Ratzinger como professor, esta prática de justificação e legitimação misógina da tradição teria de ser avaliada criticamente, caso se quisesse finalmente dar uma resposta positiva às controversas questões do celibato e da ordenação de mulheres.

Homens vestidos de mulheres

Mas há muito está claro: não há razões teológicas sérias contra as mulheres como sacerdotisas. A composição exclusivamente masculina do colégio dos 12 apóstolos deve ser entendida a partir da situação sociocultural da época. As razões encontradas na tradição para a exclusão das mulheres (através da mulher, o pecado entrou no mundo; a mulher foi a segunda a ser criada; a mulher não foi criada à imagem de Deus; a mulher não é um membro de pleno direito da Igreja; tabu da menstruação) não podem se remeter a Jesus e são provas de uma difamação teológica fundamental das mulheres.

Diante das funções de liderança exercidas por mulheres na Igreja primitiva (Phöbe, Priska) e à luz da posição radicalmente mudada das mulheres na economia, ciência, cultura, no Estado e na sociedade atuais, a admissão de mulheres ao sacerdócio não deve mais ser protelada.

Assim, existem três conjuntos de perguntas:

Com que direito a Igreja Ortodoxa e a Igreja Católica Romana negam às mulheres a plena igualdade até o sacerdócio? Tradicionais estruturas de legitimação canônicas não teriam de ser questionadas pelo ethos original de Jesus e da comunidade cristã primitiva? Jesus e a Igreja primitiva não estiveram à frente de seu tempo na valorização das mulheres, de modo que as igrejas que mantêm a proibição da ordenação de mulheres estão muito aquém do Evangelho e da prática de outras igrejas?

A comunidade metodista foi a primeira comunidade eclesiástica a eleger uma mulher para o episcopado em 1980; a Igreja Anglicana dos EUA o fez em 1989; a Igreja Evangélica Luterana na Alemanha, pela primeira vez em sua história, em 1992. Com que direito representantes da Igreja Católica e da Igreja Ortodoxa ameaçam com sérios problemas e dificuldades para o “diálogo” ecumênico? O “diálogo” ecumênico entre as igrejas deve ocorrer à custa da igualdade para as mulheres? Não devem as igrejas que rejeitam o episcopado e o sacerdócio para as mulheres revisar autocriticamente sua prática à luz do Evangelho e da antiga tradição da Igreja?

Não estaria na hora de as igrejas católica e ortodoxa admitirem que as igrejas protestante, anglicana e católica antiga na questão do ministério e da mulher estão mais próximas do Evangelho do que elas próprias? Não é hora de, no espírito do Evangelho, acabar com prática do descrédito, da difamação e discriminação contra as mulheres e de garantir-lhes também na Igreja a dignidade que merecem e uma posição jurídica e social adequada?

Ou deve continuar assim como se pode ouvir abertamente em um painel de discussão na paróquia de São João, em Tübingen (Alemanha): “A Igreja Católica é uma instituição sustentada por mulheres e dirigida por homens vestidos de mulher”?

* Artigo publicado originalmente no jornal Tages Anzeiger, em 26/10/09 (pág. 11), e gentilmente cedido pelo autor à redação portuguesa de swissinfo.ch. Tradução: Geraldo Hoffmann

Hans Küng nasceu 1928, em Sursee, no estado de Lucerna (centro da Suíça).

Estudou Filosofia e Teologia em Roma e foi ordenado padre em 1955.

A partir de 1960: professor na Universidade de Tübingen (Alemanha).

1962/65: conselheiro oficial do Concílio Vaticano II, junto com Joseph Ratzinger, o atual papa Bento XVI.

1979: por colocar em dúvida a infalibilidade do papa em questões teológicas, o Vaticano proíbe Küng de lecionar Teologia. A Universidade de Tübingen desmembra seu instituto da Faculdade de Teologia para que o teólogo suíço possa continuar lecionando.

Desde 1995 é presidente da Fundação Weltethos (Ética Mundial).

Em 2008, Küng recebeu em Berlin a Medalha da Paz Otto-Hahn em ouro.

O romance A Papisa Joana, da norte-americana Donna Woolfolk Cross, foi lançado em 1996 e logo virou best-seller.

O filme Die Päpstin (A Papisa), do diretor alemão Sönke Wortmann (O milagre de Berna) acaba de estrear nos cinemas da Alemanha.

Johanna, a personagem principal do livro e do filme, teria nascido no ano de 814 num povoado da Saxônia, passado pelo mosteiro de Fulda e estudado em Atenas antes de subir ao trono papal disfarçada de homem.

Leia uma crítica do filme no site da Deutsche Welle, parceira de swissinfo.ch (veja link abaixo).

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