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Friburgo revela espaço para o cinema alternativo

José Carlos Avellar em Friburgo. FIFF

Trinta mil espectadores no Festival Internacional de Filmes de Friburgo (FIFF), encerrado no fim de semana. Um festival voltado para cinematografias excluídas dos circuitos de distribuição.

Para uma cidade de 35 mil habitantes é como se aproximadamente 15 milhões de paulistas fossem ao cinema em apenas uma semana. Essas e outras questões foram colocadas ao crítico José Carlos Avellar, organizador este ano do Panorama “Fábulas da Favela”.

swissinfo: Há enorme espaço para o cinema que não seja o norte-americano, que domina mais de 80% do mercado. É o que mostrou o 23° FIFF que acaba de terminar. Mas por que tanta dificuldade em distribuir filmes que não entrem no esquema americano?

José Carlos Avelar: Isso não é uma questão suíça ou brasileira. É uma questão mundial. A estratégia do cinema de Hollywood é a de procurar lançar um filme ao mesmo tempo em diferentes países e no maior número de salas possível. Faz-se um grande investimento, lança-se com um número muito grande de cópias. Hoje em dia, a tecnologia digital torna essa possibilidade mais simples, pois não se tem o mesmo custo na produção de cópias como na época em que só se trabalhava com cópias cinematográficas em película. Isso reforça uma estratégia de Hollywood de ocupar todas as salas do mundo ao mesmo tempo.

É um recurso de força do cinema hegemônico que limita, que até impede em alguns momentos, difusão maior de cinemas nacionais. Cabe a cada um dessas cinematografias (nacionais) interferir no gosto dos espectadores, mostrando filmes diferentes e discutindo esses filmes, dando a eles armas e condições de analisar criticamente os filmes para que eles desenvolvam um gosto próprio e não repitam apenas o gosto que lhe é imposto pela produção economicamente majoritária.

Então, apenas num trabalho a longo prazo, de modo a que você possa fazer circular os filmes e circular idéias de cinema, a gente consiga acabar com essa estratégia do cinema hegemônico de ocupar o maior número de salas de todo o mundo com um único filme, o que na verdade empobrece a relação com o cinema.

O Festival suíço de Friburgo faz a sua parte…

Este festival tem modelo bem definido. Trazer filmes que não obedeçam a formas de produção e de narração do cinema dominante. Ele abre-se muito a invenções cinematográficas da Ásia, África, América Latina; a cinematografias que não circulam amplamente pelo mundo.

Evidentemente que alguns filmes projetados aqui furaram a barreira e circularam mundialmente. É o caso, p. ex., do filme de abertura e do filme de encerramento. Tanto Leonera, de Pablo Trapero, que é um filme argentino, quanto Linha de Passe, de Walter Salles e Daniela Thomas, que fechou o Festival, conseguiram exibições fora de seus mercados e entraram no mercado europeu; entraram no mercado norte-americano. Mas são exceções.

Existem outras exceções que fizeram parte do Festival, mas, na verdade, o que o FIFF procura é ser exatamente uma porta de contato, quase uma porta de entrada de uma cinematografia que não tem ainda uma distribuição mundial, que não tem uma participação nos espaços europeus e nos espaços da América, de modo que você possa conhecer, através de filmes aqui reunidos, um outro modo de fazer cinema. Ou seja, cinemas autorais, originários da Coréia, na Índia, África, América Latina.

Há, parece, um interesse de abertura a outras realidades…

Eu tenho a impressão de que o primeiro impulso que leva o espectador a ver esses filmes é retirar deles uma informação direta, viva, sobre de onde são originários, sobre os quais não circulam muitas informações na imprensa escrita ou televisiva e muito menos no cinema. Então, a primeira solicitação que se tem é de um filme que revele, em profundidade, pelo menos uma parte característica das sociedades de tais países.

Na verdade, esta revelação se faz principalmente do ponto de vista cinematográfico, ou seja, é entrando em contato com as formas de construção desses países que a gente pode compreendê-los um pouco, e não utilizando o cinema apenas como um veículo que informa quase como uma folha de jornal ou como um noticiário de tv sobre o que se passa dentro desses países.

Quero dizer, as histórias contadas nesses filmes não é o que mais informa sobre o que é cada um desses países, mas é a invenção cinematográfica, a originalidade da construção de uma narrativa cinematográfica que pode nos deixar perceber o que cada um desses países é.

A Suíça, país de 7,7 milhões de habitantes, tem vários festivais de cinema, sendo o mais conhecido o de Locarno, voltado para filmes autorais mas parece correr o risco de se transformar num pequeno Cannes. Há ainda um festival voltado para a cinematografia nacional (Solothurn) e, entre outros, o de Friburgo, cujas características foram apontadas…

Não sei a tendência que Locarno vai adotar. Mas acho que um país precisa mais de um tipo de festival. Evidentemente, um que esteja voltado para a produção local, a produção nacional. Um festival que dialogue com a produção que circula mais amplamente, nas salas de cinema de todo o mundo. E é preciso ter um festival que abra espaço para os tipos de filmes que não circulam mais amplamente.

Essa variedade não pode se resumir num único evento, nem os eventos têm que ser de acordo com um único modelo. Precisamos discutir a produção dominante, hegemônica, mundial, precisamos discutir a produção local e a produção de países com os quais nós temos menos contato. Acho que é da multiplicidade de produções cinematográficas que podemos receber uma informação capaz de fazer com que julguemos cada um desses setores da atividade cinematográfica no mundo.

Na medida que a gente possa ver muito cinema suíço, na medida que um suíço possa ver cinema de países não hegemônicos na produção mundial, ele pode compreender melhor um filme de Hollywood; ele pode ter uma relação mais viva com o cinema de modo geral. Seja ele feito em Hollywood ou fora de Hollywood. Tem assim possibilidade de desenvolver sua sensibilidade cinematográfica para tirar de qualquer filme, o melhor que o filme pode dar.

Voltando ao FIFF, com que preocupação você organizou a retrospectiva “Fábulas da Favela”?

Bom, a iniciativa foi do diretor do Festival, Edouard Waintrop. Foi ele quem me procurou, querendo compor um programa de filmes que tratassem da questão da favela no Rio de Janeiro. Abrimos um pouco o espaço, mas se enfoca basicamente a relação do Rio com as favelas da cidade.

Na conversa, nós chamamos a atenção para o fato de que os filmes estabeleceram com as favelas no Rio uma relação não apenas de denúncia, quer dizer, existe a pobreza, a pobreza está dentro de um dos centros urbanos mais desenvolvidos do país.

Mais que denunciar, era preciso demonstrar que os filmes tinham aprendido a enfrentar a questão de como filmar a favela, os filmes tinham aprendido a desenvolver um modo próprio de filmar. A relação com a favela, a decisão de olhar a favela, discutir as questões da favela, de se relacionar com o outro, com seu igual que vive na favela, nos ensinou a filmar.

E isto vem de longe…

Desde a metade da década de 50 com Rio 40 Graus e Zona Norte, entre outros filmes. Tratava-se, então, de fazer isso, de permitir essa compreensão de que uma boa parte da invenção do cinema no Brasil vem desta fonte.

Quer dizer, a favela é uma das fontes, ou seja, essa grande contradição da vida brasileira, essa grande expressão da diferença, da desigualdade econômica foi ao mesmo tempo um estímulo para fazer cinema. O entusiasmo, a criatividade, as soluções encontradas pelas pessoas que moram nas favelas para sobreviver em condições materiais horrorosas, sem atendimento básico…

O fato de que as pessoas tenham conseguido sobreviver nessas condições e gerar uma expressão cultural: música, desfiles das escolas de samba… foram inspirações para que pudéssemos inventar um cinema diferente.

swissinfo, J.Gabriel Barbosa, Friburgo.

O 23° Festival Internacional de Filmes de Friburgo, encerrado no fim de semana, incluiu Fábulas da Favela uma retrospectiva de filmes brasileiros relacionados com o ‘morro’. Organizada por José Carlos Avellar, a retrospectiva englobava Tropa de Elite, um filme “inconfortável”, realizado por José Padilha (primeiro prêmio em Berlim, em 2008).

No filme, o excesso de brutalidade policial, qualificada de gratuita e suspeita, já havia suscitado polêmica, principalmente na França. O filme chegou a ser qualificado de fascista por crítico norte-americano. Em conseqüência, ele nem foi distribuído na Suíça. Em Friburgo, a polêmica foi reativada num debate que opôs o mais feroz adversário do filme, o crítico francês José Roy (do jornal Libération), ao seu colega brasileiro, J.C. Avellar.

Para Roy, Tropa de Elite, pelo fato de impor “sua verdade e estetizando a violência”, inclui tudo o que detesta. Já Avellar descarta qualquer conotação fascista no filme – grande sucesso no Brasil – filme que pinta uma realidade, “diante da qual se exige uma posição crítica”. Se, inicialmente, o espectador se identifica com os policiais, aos poucos ele se questiona e questiona o comportamento dos mesmos policiais.

Pablo Trapero – cineasta argentino , realizador de Mundo Grúa que levou 4 prêmios no FIFF, em 1999, inclusive o principal – estima que a película mostra o ponto de vista de um personagem bastante miserável, bastante triste, com o qual o diretor não se identifica.

Um crítico suíço (jornal La Liberté – 17.03), que resumiu o debate Roy-Avellar acha que o crítico francês devia ter reconhecido a exatidão com que são mostrados “os mecanismos da corrupção policial, na primeira parte de Tropa de Elite, antes que o filme naufrague na violência condescendente”.

Quanto à Avellar – acrescenta – ele poderia ter reconhecido que a profusão de efeitos especiais dificultam a reflexão sobre um problema que exige uma abordagem mais profunda . E conclui que o público, numeroso no debate, entusiasmou-se com o filme e não se sentiu de maneira alguma manipulado.

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