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Diretor suíço conta os mistérios da fotografia de cinema

Renato Berta, fotografado em 2007 no Festival de Solothurn. Keystone

O diretor de fotografia Renato Berta, suíço de Bellinzona, nos recebe para um café, nos jardins do Lido de Venezia, para uma entrevista exclusiva. Ele já trabalhou com grandes diretores e tem muitas histórias para contar. E a conversa já começa com uma surpresa.

Renato Berta:

Entrei para o cinema pelas mãos de um diretor brasileiro, o Glauber Rocha, sabe quem é? Eu o conheci  durante o Festival de Locarno, em 1965

swissinfo.ch: O senhor estava começando?

R.B.: Não, não, eu era apenas um cinéfilo; entramos logo em sintonia porque ele era muito caloroso. E frequentávamos o festival de Locarno. Ele foi a primeira pessoa que fazia filmes e que eu pude tocar, fisicamente. Para mim o cinema era e é algo abstrato. Foi ele quem me disse “por que não vai estudar numa escola de cinema?!” Eu nem sabia que existia escola de cinema!

swissinfo.ch: Como o senhor chegou à fotografia?

R.B.: A formação é sempre muito importante, mas nem tanto a formação em si, mas a questão da disciplina, um modo de pensar, uma maneira de enfrentar as adversidades. Não é o conhecimento específico que faz um grande cirurgião, um grande advogado, um grande político. O mais importante é como você se relaciona com as coisas. No cinema nos relacionamos com um público muito amplo e,  conscientemente ou não, essa questão gira na tua cabeça. Aqui temos que refletir sobre o que é cinema e o que não é, porque hoje 90% das imagens que vemos não tem nada a ver com o cinema.

swissinfo.ch: Estamos no século da imagem. Com um fluxo enorme de pixels. Qual é a qualidade do que vemos ao redor?

R.B.: Zero.

swissinfo.ch: Um diretor de fotografia deve prestar contas a quem?

R.B.: Ele tem que ser um equilibrista. Não apenas o diretor de fotografia, mas todas as pessoas envolvidas no processo devem ser equilibristas. Eu não separo muito o trabalho que faço porque não posso me fechar num discurso. A fotografia não existe sozinha no cinema, um ator não existe sozinho nem o som.

O cinema é um equilíbrio muito frágil de tudo isso. A dosagem é como fazemos na cozinha porque, mesmo com bons produtos, o segredo é saber dosar bem os ingredientes, em qual momento colocar cada um. Essa é uma boa cozinha, mas se você pega tudo e joga na panela para ficar pronto em dois segundos acaba estragando o prato. Hoje, temos sempre que fazer filmes com pressa e não se pode funcionar assim. Mas o masoquismo é tão grande na nossa época que é um suicídio.

swissinfo.ch.: Como funciona o seu trabalho, antes, durante e depois da gravação?

R.B.: Eu me coloco à disposição de um projeto, dando a ele um sentido muito largo, os meus conhecimentos e a minha capacidade de diálogo. Eu falo com o diretor, quando me dão o roteiro; conversamos mas, geralmente, o que sobra de um roteiro, depois de uma leitura, são muitos pontos de interrogação. Mas isso é normal pois o roteiro é uma fase do trabalho.

swissinfo.ch: Isso nas origens e hoje em dia?

R.B.: Hoje em dia, os roteiros são feitos apenas para financiar um filme. Por isso são escritos de maneira rebuscada, para poder ter acesso ao dinheiro e a todo o resto. O roteiro é importante para a largada, mas depois tudo depende do que se faz do roteiro; um roteiro excelente nas mãos de um diretor desastroso vai implodir.

swissinfo.ch: O senhor trabalhou bastante com Alain Tanner, cineasta suíço com o qual realizou seis filmes. Como foi esse trabalho?

R.B.: Claro que tinha um diálogo aberto entre nós. Enfrentamos alguns problemas ligados ao roteiro, à filmagem, à organização narrativa dos filmes e existem sempre escolhas e decisões que devem ser tomadas juntas. Por exemplo: vamos ver dois ambientes, hesitamos em um e em outro, e eu digo, “olha, este aqui te oferece essas possibilidades, este outro oferece outras opções, agora vamos dar uma olhada no roteiro para ver qual seria o mais adequado…olha que para filmar aqui o espaço é muito pequeno, temos 12 personagens para colocar nesse seria um pouco mais complicado”…temos que ser muito pragmáticos para enfrentar os obstáculos que surgem. O importante é poder contribuir naquilo que o cineasta procura. E, assim, ajudamos na realização de um filme.

swissinfo.ch: Quando se percebe que um filme vai na direção certa?

R.B.: Posso comparar um filme ao crescimento de uma criança. O filme é uma criança que, lentamente, vai crescendo, assume sua personalidade e o filme se torna quase autônomo. O interessante é quando o filme “escapa” das nossas mãos e adquire uma grande autonomia, isto falando de um nível de criatividade muito elevado. Aos poucos nos damos conta dessa autonomia e, quase sempre, essa sensação é a garantia de um bom resultado.

swissinfo.ch: Foi assim com Louis Malle, com o quem o senhor trabalho em “Au Revoir les Enfants”, ganhando um César da fotografia?

R.B.: Sim! Mas lembro sempre que temos que administrar bem a psicologia. Com Louis Malle se tratava de uma história que ele realmente vivenciou na primeira pessoa. Então, sabia muito bem do que estava falando.

E quando um cineasta vive profundamente algo assim, muito doloroso no seu caso, você vai um pouco mais devagar. Mas se você encontra um filme totalmente inventado, que não é parte de eventos reais vividos pelo diretor, você se sente muito mais livre. Isso não tira nada da nossa relação de criatividade.

Eu tive uma relação muito forte com Louis Malle, em todas as escolhas que fizemos juntos, e fizemos muitas. Foi uma experiência muito positiva, muito interessante no momento de fazer o filme.

swissinfo.ch: Como se reconhece um grande diretor?

R.B.: O grande diretor é aquele que sabe trabalhar com todos os elementos, com o ator, com o câmera, com as luzes. O problema é quando existe  contradição total. Se quer filmar na China com o sol do fim de tarde. Tudo isso tem que ser muito bem administrado.

swissinfo.ch: Qual é a sua relação entre luz natural e artificial?

R.B.: É muito difícil responder a essa pergunta de maneira definitiva. Porque depende sempre do filme que se faz. Não existe uma lei fundamental. Filmando em estúdio, tendo à disposição uma certa tecnologia, ou filmando em ambientes reais nos confrontamos com uma série de problemas imprevistos. Aconteceu comigo de ler num roteiro uma cena na beira do lago, as nuvens chegam, o temporal se aproxima, começa a chover. Administrar algo assim é impossível.

swissinfo.ch: O senhor já abandonou um set, por exemplo?

R.B.: Sim, sem dar nomes, porque são coisas delicadas e exigiriam explicações muito longas; às vezes, quando nos dizem de fazer um filme no polo norte, com uma série de preparativos. Dou um exemplo caricatural. Quando você sobe no avião descobre que está voando para o deserto do Saara. O equipamento é um problema pois não corresponde ao que iria fazer. Quando sucede coisas assim temos que dizer: “olha, não nos entendemos” arrivederci.”

swissinfo.ch: Como nasceu a sua paixão pelo cinema?

R.B.: Com a cinefilia. E depois o festival de Locarno que representou para mim uma revelação onde eu encontrei pessoas que faziam cinema e com as quais eu podia falar e debater. Para mim o cinema era uma tela e eu tinha dificuldade em compreender que pessoas fabricavam aquilo.

Temos que nos colocar no contexto da época. Havia muito menos câmeras, hoje elas estão por todos os lados. Antes era algo aristocrático e exclusivo. Hoje, é claro que o cinema se democratizou, mas a democracia é muito difícil de ser administrada. E neste sentido a situação é trágica.

swissinfo.ch: Na época, na Suíça, vocês estavam conscientes de que escreviam uma página da nouvelle vague nacional?

R.B.: Nunca sabemos nem somos conscientes quando vivemos experiências como essa. Evidentemente, existia uma grande vontade de realizar coisas. Tinha uma certa energia que hoje não existe mais. Mas isso faz parte da decadência da Europa. A nível europeu isto não existe mais.

swissinfo.ch: O que o senhor diria para um jovem aspirante à direção de fotografia?

R.B.: Hoje é muito mais complicado trabalhar como diretor de fotografia. Primeiro, porque tem esse processo de democratização que entra na família do cinema. Segundo, porque fazer imagens agora é muito mais simples, mas isso é cinema ou não? O cinema se faz com a cabeça, pensando, e não vai ser um suporte que vai decidir se o filme é bom ou não.

Para mim o digital é apenas um suporte a mais. O que me chateia é o desaparecimento de outros suportes. Todo o processo fotoquímico praticamente desapareceu. Nem sempre quando se perde alguma coisa se ganha uma outra. Bom, mas os dinossauros também não existem mais.

swissinfo.ch: Qual é o maior interesse no seu trabalho?

R.B.: O interesse do nosso trabalho é que quando se faz um filme, se faz um protótipo e se começa sempre da zero.

Renato Berta nasceu em 2 de março de 1945, em Bellinzona, sul da Suíça.

Em 1965 estudou no Centro Experimental de Cinematografia de Roma.

A estreia foi no final dos anos 1960 e em 1969, como diretor de fotografia, participa do premiado filme de Alain Tanner, “Charles mort ou vif”, no Festival de Locarno.

No começo dos anos 1980, mudou-se para a França devido aos convites de trabalho que recebia de diretores importantes.

Colaborou com cineastas como Jean-Luc Godard, Louis Malle, Manoel de Oliveira, Amos Gitai

Em 1987 vence o prêmio  César do cinema francês, como melhor diretor de fotografia pelo filme Au Revoir Les Enfants, de Louis Malle.

Em 2011, vence o prêmio Donatello, do cinema italiano, como melhor diretor de fotografia pelo filme Noi Credevamo, de Mario Martone.

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