Tessin lembra seus contrabandistas
No alto do vale Muggio, próximo a Chiasso, um castelo abriga uma exposição única consagrada à época dos contrabandistas no cantão do Tessin.
Cinco mil “spalloni” caminhavam trilhas quilométricas para levar chocolate, relógios e cigarros à Itália e trazer salame, arroz, seda ou mesmo pneus para a Suíça.
É preciso ter coragem para ir de carro até Scudellate. De Chiasso, uma cidade do cantão do Tessin com oito mil habitantes, a viagem leva o turista montanha acima por caminhos estreitos nos flancos do Monte Generoso, até os confins da Itália.
Íngreme e selvagem, de uma beleza de tirar a respiração, o vale Muggio – da cidade com o mesmo nome – é repleto de vilarejos pitorescos com suas igrejas romanas ou barrocas, um espetáculo para os amantes da arquitetura. As cores ocre, amarela, rosa ou branca das típicas casas no Tessin fazem o ambiente quase “mediterrâneo”, tão diferente do resto da Suíça.
No alto de Muggio, a pouco mais de mil metros de altitude e distante um quilômetro do vale do Intelvi, na Itália, Scudellate recebe calorosamente os visitantes. Ao lado do restaurante Osteria Manciana, a antiga escola primária transformada em albergue da juventude recebe uma exposição para homenagear uma época muito especial.
O tempo dos últimos “spalloni”
Durante muitas décadas, o vale Muggio estava estreitamente ligado ao fenômeno do contrabando. Os últimos “spalloni”, como eram chamados os contrabandistas em italiano, desapareceram há trinta anos da região.
Porém seus habitantes não esqueceram esses homens jovens e rudes que, para sobreviver nos meses difíceis, transportavam sobre os ombros uma espécie de suporte de madeira, os “spalle” (o que explica a origem da expressão). Nele eram trazidas diversas mercadorias como sacos cheios de café, açúcar, chocolate e, sobretudo, cigarros suíços.
Através do arame farpado
Intitulada “Ramina e sigarette” (arame farpado e cigarros), a exposição apresenta vinte fotos em preto-e-branco. Elas foram tiradas entre o final da guerra e o início dos anos 70 pelo fotógrafo Christian Schiefer, falecido em 1998, em Lugano, aos 102 anos de idade. Ela apresenta também uma série de documentos de arquivos e objetos ligados ao contrabando.
Originados do vale do Intelvi, nas proximidades ou na borda do lago de Coma, os “spalloni” entravam clandestinamente no vale de Muggio, carregados de arroz, salame, seda e pneus usados, que eram caros na Suíça. Eles retornavam carregados de cigarro.
A marcha pelas trilhas era feita durante a noite, até atravessar a “ramina”, o muro de arame farpado que marcava a fronteira entre a Itália e a Suíça. Se os buracos tivessem fechados, era necessário cortar o arame. Grande era o risco de ser flagrado a qualquer momento pela polícia aduaneira italiana.
As trilhas passavam pela Erbonne, na Itália, antes de chegar a Scudellate. Hoje em dia, o minúsculo povoado italiano e a aldeia do Tessin estão ligadas por uma passarela para pedestres, que transpõe o rio Breggia. Construída em 2005, ela reforça os laços já sólidos entre as duas comunas. Antes, para chegar ao vale Muggio, os “spalloni” precisavam descer até o fundo do vale, entrar na água do rio e depois subir pelo outro lado.
Ao mesmo tempo em que Scudellate apresenta sua exposição, Erbonne organizou uma festa popular de dois dias dedicada ao tema do contrabando. Ela também abriu um museu num antigo posto da polícia aduaneira.
Laços particulares unem as duas localidades. Dez entre onze habitantes de Erbonnen são suíços. De fato, o vilarejo fazia parte do vale de Muggio até 1604.
Testemunha viva
“O contrabando nos uniu. Temos um passado comum”, comenta Guerino Piffaretti, 62 anos, dono do restaurante Osteria Manciana e responsável pela exposição. Ele também é uma testemunha viva do tempo dos “spalloni”.
“Eu ainda era uma crianças em meados dos anos 50, quando tinha que ajudar meu pai a preparar as mercadorias. Não tenho boas lembranças dessa época, pois meu lazer era fabricar os sacos especiais que nós vendíamos aos contrabandistas. Eu nunca tinha tempo de jogar com meus amigos após a escola”.
Fernando Bisso, 75 anos, de Chiasso, se lembra com nostalgia da época. Durante décadas ele também fabricou os sacos especiais, feitos de papelão e cobertos de juta, servindo para transportar a mercadoria, sobretudo cigarros. Também conhecido como “bricolle”, eles podiam carregar de 25 a 50 quilos do produto, distribuído em pacotes de até 25 maços.
Gerente do depósito das “Fábricas de Tabaco Reunidas” de Neuchâtel, de 1958 a 2002, Fernando Bossi, não se contentava apenas de fabricar os sacos. “Eu comprava os cigarros do varejista Attilio Morosoli de Lugano e os revendia aos contrabandistas”.
Monopólio italiano
“Para nós, esse tipo de exportação era legal. Nós recebíamos da alfândega regularmente a mercadoria. Para os italianos, tratava-se de contrabando, pois o Estado detinha o monopólio sobre a comercialização do tabaco. Em 1973 a exportação paralela foi encerrada devido às taxas de câmbio pouco vantajosas entre o franco e a lira. Ao mesmo tempo o preço dos cigarros suíços aumentou. Esses fatores acabaram com a era do contrabando no Tessin”, conta Bisso.
Para o septuagenário – que passa sempre os verões no vale Muggio – essa era não pode ser esquecida. A exposição o trouxe de volta. Inclusive alguns dos sacos de transporte fabricados por ele estão expostos.
“Em duas décadas, fabricando 40 peças por dia, eu acredito ter feito algo em torno de 250 mil delas. Elas eram conhecidas pela sua boa qualidade. Eu era conhecido do vale de Intelvi até as margens do lago de Coma”.
swissinfo, Gemma d’Urso
– Como outros vales no cantão do Tessin como o Val Colla e o Val Morobbia, o Val Muggio foi durante várias décadas um importante centro do contrabando na Suíça.
– Do fim da Segunda Guerra Mundial até aproximadamente 1973, cerca de cinco mil “spalloni” contrabandeavam arroz, seda, salame e pneus para a Suíça e café, chocolate, relógios e cigarros à Itália.
– Se eles eram presos pela polícia aduaneira italiana ou a “Guardia di finanza” (polícia financeira), os contrabandistas perdiam sua mercadoria, pagavam multas pesadas e podiam até ser presos.
– O contrabando nos vales do Tecin foi marcado por diversos dramas. Muitos dos participantes foram abatidos pela polícia aduaneira, outros morreram acidentalmente nas montanhas durante tentativas de fuga.
A exposição intitulada “Ramina e sigarette” está aberta até 20 de outubro no albergue da juventude de Scudellate diariamente, com exceção da quarta-feira. A entrada é gratuita.
Nela são exibidas vinte fotos de Christian Schiefer, emprestadas pelos arquivos cantonais de Bellinzone. Ela também apresenta objetos utilizados na época como uma “bricolle” (mochila), “pedule” (sapatos de montanha feitos de juta para caminhar sem fazer barulho) e outros.
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