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Casas na árvore da linguagem: por dentro de uma fundação de literatura suíça

Fundação Jan Michalski
A fundação foi estruturada ao longo de muitos anos por diferentes arquitetos. Keystone

Rousseau, Hesse, Highsmith, Mann – fabulosos, sim, mas algum destes já escreveu um livro em uma casa na árvore? Um novo centro de literatura está oferecendo a escritores de todo o mundo a oportunidade de fazer exatamente isso.

Chegando à pequena cidade suíça de Montricher, cercada por terras agrícolas e plantações de uva, você pode se perguntar sobre a grande construção que fica localizada na região leste do vilarejo. Seria um centro futurístico de pesquisas? O complexo totalmente branco, com diversas cabines que se assemelham a varas suspensas por baixo de uma grande marquise com formato elíptico, parece ser um sonho espacial de um bilionário do Vale do Silício.

Mas não é, pelo menos não o bastante. Trata-se da Jan Michalski FoundationLink externo, fundação para escritores e literatura, um empreendimento filantrópico administrado por Vera Michalski-Hoffmann, uma editora suíça e patrona que nomeou o centro após o falecimento de seu marido polonês. Avançando entre os pilares desta arquitetura ultramoderna, você encontrará uma biblioteca de cinco andares e oito idiomas; um espaço de exposição (atualmente dedicado a Federico Garcia Lorca); e, desde o início deste ano, um grupo de escritores vindos de toda parte do mundo, selecionados para vir e permanecer nesta base rotativa.

Até o momento, diz Aurélie Baudrier, chefe de comunicação do centro, os resultados são positivos. Após anos de desenvolvimento, concepção e aberturas graduais para o público, ter os escritores a bordo foi o último “pedaço do quebra-cabeça”, utilizando-se de uma frase falada por sua chefe, Michalski-Hoffmann. E a qualidade das candidaturas, bem como o seu volume, tem sido fenomenal: 900 foram recebidas para as residências este ano, das quais apenas 29 foram aprovadas.

Seria sinal de um boom literário na Suíça? Afinal, a poucos quilômetros da estrada de Montricher, o igualmente impressionante Château de LavignyLink externo recebe escritores globais para residências similares; às margens do Lago de Genebra, também a poucos minutos, são recebidos diversos festivais internacionais de literatura ao longo do ano – o “Salon du LivreLink externo“, o Festival de NyonLink externo, o “‘Le livre sur le quaisLink externo“, em Morges – e tudo isso falando apenas da Suíça francófona.

“Incendeie seu cérebro”

De qualquer forma, com uma história que varia de Rousseau a Hesse, bem como o interesse na atual literatura suíça (estimulada por sucessos globais como o do genebrino Joël Dicker), é uma pequena maravilha que tantos autores estrangeiros estejam interessados em participar. As condições em Montricher também não são nada ruins: é custeada a viagem do país de origem para Montricher, o café da manhã e uma refeição por dia, alojamento em uma das varas suspensas (mais sobre isso mais tarde) e uma quantia mensal de CHF 1.200.

Fui ao encontro de alguns desses escritores. A primeira, Taran Khan, é uma jornalista e ensaísta de Mumbai. Ela está a meio caminho de uma estada de três meses na fundação, escrevendo um livro sobre a vida cultural de Cabul. O que faz uma escritora indiana vir à Suíça escrever um livro sobre o Afeganistão? A bela localização, a calma e a biblioteca de 60 mil volumes oferecem “uma ruptura com as estruturas de sua vida cotiadiana” em Mumbai, diz. Ela pode ter recuo e tempo para “ver as conexões em seu próprio trabalho que de outra forma não teria visto”.

Há também outros “escritores em residência”.  A todo tempo, cerca de meia dúzia de autores internacionais permanecem no centro – trocando ideias, cozinhando juntos, caminhando juntos pelo terreno. E o fato de terem vindo de partes tão diversas do mundo (este ano os escritores vieram da Polônia, Brasil, Estados Unidos, Cingapura, Islândia, Egito e País de Gales, entre outros) permite que eles façam diferentes interações. Isso pode ajudar a “incendiar seu cérebro”, diz Khan, e evitar que você fique atolado em um projeto.

“Perdão América”

Eu conheci outro desses escritores, Philippe Rahmy, em sua “casa na árvore”. Acontece que as varas penduradas – elas não estão penduradas, é claro, mas artisticamente erguidas em níveis escalonados – são chamadas de casas na árvore, e nelas os escritores vivem e trabalham. Como o meu pedido para passar uma noite em uma destas foi educadamente rejeitado (por falta de vagas), Rahmy recebeu-me para um café na dele. O alojamento se assemelha a uma grande caixa, como um container, com uma ampla vista para o planalto em direção ao Lago de Genebra. Este alojamentio é grande e especificamente adaptado para escritores incapacitados (Rahmy é cadeirante).

Philipp Rahmy no seu apartamento na Fundação Jan Michalski.
Philipp Rahmy no seu apartamento na Fundação Jan Michalski. Keystone

Ele tem pouco interesse em falar sobre as instalações. Mal nos sentamos e ele contou sobre seu projeto atual, seus projetos anteriores, seus pontos de vista sobre a escrita, sua recente viagem a áreas desfavorecidas da Flórida, seus antecedentes de parentesco alemão e egípcio com criação na Suíça, suas lutas para superar uma doença óssea debilitante. Um preconceito meu, antes de vir para a Fundação, era que ele poderia ser sóbrio e chato; porém Rahmy afastou essa impressão em um minuto.

Aqui, ele está trabalhando em um projeto sobre as suas viagens pelos Estados Unidos, onde passou um tempo com prisioneiros injustamente condenados e crianças sem documentação que trabalham em plantações de frutas, crianças que – segundo ele – eram literalmente acorrentadas por seus “donos” à noite para que não tentassem fugir. Rahmy quer reunir estas histórias em um livro que se chamará “Perdão América” e que não terá nada de ficção, nem de não ficção, nem de jornalismo, mas uma combinação de características dos três estilos.

Acima de tudo, explica, escrever é um ato de empatia, que vai além das questões de estilo e estrutura, que, segundo ele, sufocaram a literatura durante décadas, principalmente no mundo francófono. Ele, então, me presenteia com uma cópia do seu último trabalho, “Monarques”, e diz que escrever significa “levar seu cordão umbilical subjetivo e mostrar como você vê o mundo”.

Lamentavelmente, Rahmy morreu de repente no último dia 1° de outubro.

“Todos precisam de palavras”

Isto soa ótimo na teoria, mas e na prática? Tal fundação, assim como percepções da literatura em geral em uma era obcecada pela economia, poderia facilmente ser uma torre de marfim inalcançável pendurada confortavelmente na encosta da montanha enquanto o mundo logo abaixo gira despreocupado.

O terceiro grupo de escritores que eu encontrei, o “coletivo letras móveis” de Lausanne, não longe de Montricher, está tentando romper barreiras. Em vez de gastarem seus dias em suas casas na árvore, eles montaram um escritório em uma mesa do lado de fora do principal shopping center da cidade; a cada manhã, por várias horas, eles atendem a “pedidos” de residentes locais para preparar textos curtos – poesia, prosa, experimental – em tópicos específicos.

Escritores para contratar? Não, diz Mathias Howald, um dos membros. Esta é uma nova maneira para a abordagem do processo de escrita: a inspiração não é mais a de um indivíduo isolado, mas sim nascida de interações frescas com integrantes do seu público. “Nós somos um pouco como escribas”, diz Benjamin Pécoud, se referindo ao papel de “escritor público” que é muito comum no mundo francófono. “Mas, nós somos mais como ‘autores públicos’ do que escritores públicos”.

Eles me mostram um exemplo. Uma montagem de uma página de poesia, com as palavras formando espirais que se bifurcam e tomam a forma de uma árvore, que o terceiro membro do grupo, Catherine Favre, preparou para um homem local que queria alguma coisa que representasse seu trabalho em silvicultura. Outros têm pedido textos mais pessoais, réquiens para familiares mortos, divórcios, a vida com Síndrome de Down.

Até o momento, o retorno é esmagador. Eles receberam mais de cem pedidos e o prefeito da cidade solicitou ao grupo que preparasse o texto de seu discurso deste ano para o Dia Nacional da Suíça, em 1º de agosto. Após o período em Montricher, o grupo planeja reunir todos os trabalhos em uma coletânea, uma pequena genealogia da cidade, antes de repetirem o experimento em outro lugar, talvez na Suíça de língua alemã. 

Este é um projeto que tem pernas, eles acreditam, e vale a pena. Porque, finalmente, “nós todos precisamos de palavras”.

Adaptação: Maurício Thuswohl

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